Transformar uma forma artística secular em uma experiência que se aproxima do regionalismo pode parecer uma missão desafiadora, mas não impossível. Em “Ópera em Cordel”, a apresentação idealizada por Haroldo Guimarães reúne o ator que se une ao também cearense Igor Jansen para expressar elementos típicos nordestinos no formato de ópera.
Com estreia neste sábado, 22, no Teatro RioMar, a dupla de artistas apresenta o espetáculo baseado no texto “Turandot”, de Giacomo Puccini (1858-1924), em duas sessões que prometem divertir e emocionar o público de Fortaleza. Na proposta de “colonizar o mundo com a nordestinidade”, os atores seguem para outras capitais e até mesmo fora do Brasil, com a apresentação que une música cearense, elementos da ópera e técnicas de cordel.
Dia Mundial do Teatro: conheça equipamentos culturais em Fortaleza
Um drama épico que aborda romance, suspense e grandes reviravoltas, “Turandot” marca o lançamento do projeto CE em Cena, promovido pelo RioMar Fortaleza, que busca celebrar e fomentar os artistas e a produção local.
O POVO - Como se deu a construção da “Ópera em Cordel”? E, porque “Turandot” foi a ópera escolhida?
Haroldo Guimarães - A construção se deu de maneira muito lenta e amadurecida. Dentre tantas óperas, essa foi a primeira porque, desde mais jovem, eu usava a estória de “Turandot” para chamar atenção das meninas [risos]. Na maioria das vezes, não dava certo, mas sempre ajudava. Na época, eu contava essa estória em que uma princesa só aceitava casar se o pretendente acertasse três adivinhações, sem errar nenhuma, sob pena de morrer. Então, no dia de mais uma execução, um príncipe desconhecido se apaixonou pela beleza e pela maldade da princesa, se candidatou e acertou as três perguntas. Quando eu falava das três perguntas e das três respostas – que são bem interessantes –, a menina que eu estava afim já estava envolvida com a narrativa e olhava para mim com curiosidade. Isso me deixava muito feliz. Turandot, após ouvir respostas corretas, sofre muito. Mas aí a estória tem uma nova virada, quando o príncipe, notando a infelicidade da princesa, faz outra aposta mortal: se ela descobrir seu nome até o amanhecer, ele morre; caso não descubra, eles se casam. Daí a expressão “Nessun Dorma”, tão famosa na Ópera, que significa “Ninguém Durma”, nada mais é que o comando da princesa para manter seus súditos acordados até descobrirem o nome do príncipe.
OP - Nas apresentações de sábado, vocês vão usar canções populares para contar a história de “Turandot”. Quais canções vão ser ouvidas no momento?
Haroldo - Vamos cantar músicas de Ednardo, Fagner, Belchior, Alceu Valença, Roupa Nova e algumas árias de ópera [solos dramáticos], tudo de maneira surpreendente e sempre conectado com a estória que contamos.
OP - Quais elementos do Nordeste, para além do uso das técnicas do cordel, o público vai poder verificar durante a apresentação?
Haroldo - A enunciação de estórias também é uma marca do Nordeste que estará na peça. É uma tradição que temos a honra de homenagear, que está no músico Jessier Quirino, nos contadores Paulo Afonso Tomé e Seu Quira; o próprio Patativa do Assaré, que sempre usou o verso; Bráulio Bessa igualmente, dentre muitos outros. O artista nordestino conta muito bem as estórias, talvez porque tenha se acostumado com isso. Outro elemento da nordestinidade, digamos assim, é o humor. Nossa peça é completamente tomada por uma molecagem que insiste em aparecer em quase todos os números e falas. Isso é um “molho” que, eu reconheço, eu encontro com abundância só aqui no Ceará. Isso não teve como tirar [da apresentação], e a gente acha lindo… Mais que isso, não posso falar [risos].
OP - Serão duas apresentações no mesmo dia, como estão os preparativos para a data? Já que, além de ser uma apresentação teatral, vocês também usam a voz para o trabalho.
Haroldo - Eu realmente tive um problema sério no palco em 2022. Precisei lidar com a desafinação com muito humor, e deu certo. Mas agora a responsabilidade é maior, até porque o Igor [Jansen] canta muito bem, há mais músicas e nem sempre eu vou poder fazer graça. Inicialmente, isso me preocupou, mas eu recebi uma ajuda divina. Temos uma parceira, que precisamos agradecer por estar nos ajudando gratuitamente, que é a Dra. Vanessa Claudia, fonoaudióloga, além do professor de canto Otávio Oliveira. Temos encontros semanais – com lições de casa para fazer com gargarejos, solfejos [técnica musical] e outros exercícios – e no dia eles estarão conosco. Esses profissionais acompanham artistas de segmentos bem mais remunerados que o teatro e, sabendo da nossa proposta, resolveram nos ajudar.
OP - A estreia de “Ópera em Cordel” acontece em Fortaleza neste sábado, 22, mas a peça seguirá em outras localidades. Quais as expectativas para as próximas apresentações?
Haroldo - As capitais do Nordeste, assim como o Rio de Janeiro e São Paulo, já estão na fase de agendamento. Depois, iremos para Portugal. A professora Malena Monteiro, da Universidade Estadual do Ceará (Uece), já está traduzindo o texto para o inglês, com os desafios próprios de rítmica e prosódia, e vamos “colonizar o mundo com a nordestinidade” [risos]… Mas isso é outro momento. Algumas prefeituras do Ceará também sinalizaram em levar nossa peça para o interior. Caso aconteça, vai ser mais uma página linda da nossa carreira. Que ninguém me escute, mas eu iria de graça para o sertão e para locais onde as pessoas não costumam ver teatro. É onde está a alma do cantador e do contador de história. Foi em busca de inspiração e desafio também que começamos em Fortaleza. O interior nos dará mais elementos e motivação.
OP - E quais seus desejos para o público que irá assistir?
Haroldo - A missão é fazer rir, chorar e cantar junto. Estamos ensaiando 8 horas por dia para isso. O texto tem um trabalho de quatro anos e o elenco foi escolhido para causar isso [emocionar]. Estamos bem confiantes.
OP - Você e o Igor Jansen já se conheciam anteriormente? Como é o trabalho em conjunto?
Haroldo - A gente ficou muito amigo em seu primeiro trabalho, quando ele viveu o Piolho, em “O Shaolin do Sertão” (2016), e eu fazia o Jesus. Ele e seus pais, que são meus compadres, sempre nos encontrávamos. Por dez meses, fomos colegas da novela “No Rancho Fundo” (2024), vizinhos da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, e nossa família sempre se encontrava. Trabalhar com o Igor é fácil pela amizade, mas também pelo profissionalismo. É alguém disciplinado, acorda cedo, não bebe, avesso a festas… Eu costumo dizer que ele é um “véi”. Talvez por isso tenha se dado tão bem comigo [risos].
OP - Para além da “Ópera em Cordel” você também lançou nos últimos dias o filme “Tac Tacs - Uma Aventura Ambiental”, ao lado do Bráulio Bessa. São duas produções cearenses e que, de alguma forma, dão destaque ao Ceará. Como você se sente, primeiro, em estar com uma agenda movimentada com trabalhos significativos, e também em seguir atuando em produções que elevam os talentos do estado?
Haroldo - Essa pergunta é maravilhosa. Em dado momento de nosso espetáculo, o ator pergunta: “Será, pro artista crescer / Ele terá que descer / Saindo de Fortaleza?”. A resposta ainda tem sido essa no nosso ramo, mas isso tem mudado. Produções como as de Halder Gomes e do Grupo Blitz são realizadas em solo cearense, com recursos humanos e materiais cearenses, e isso é uma mudança histórica, nunca vista, nesse nível de profissionalismo. É todo um contexto que tem a possibilidade de mudar. Emociona estar passando por isso, que pode ser uma transição. E que bom elevar o nome do Estado.
Ópera em Cordel