A saída de Fortaleza rumo ao Sertão Central proporciona estrada extensa que perpassa por mais do que apenas municípios. O percurso abre visão para os monólitos, trilha caminho para sítios arqueológicos e pode desaguar em açudes a ponto de sangrar. Formada por Quixeramobim, Quixadá, Senador Pompeu, Banabuiú e Solonópole, a região ganha destaque na rota turística e entra na mira no planejamento de instituições como o Sebrae.
Na rota dentro de cidades como Quixeramobim e Quixadá, respectivamente a 212 quilômetros e 84 quilômetros de Fortaleza, equipamentos culturais propõem a salvaguarda da cultura popular e atraem visitantes inspirados por nomes de conterrâneos como Antônio Conselheiro e Rachel de Queiroz. O Vida&Arte percorre roteiro pelos principais pontos dedicados à preservação e memória da arte na região.
Casa de Saberes Cego Aderaldo
Os monólitos da estrada indicam a primeira parada do trajeto. Aos poucos, as impressionantes estruturas geológicas cedem em meio ao fluxo de carros e pedestres. A movimentação do Centro da Quixadá aponta a proximidade com uma casa secular, de fachada verde e vermelha, que carrega o nome de um dos principais poetas cearenses: Cego Aderaldo (1878-1967).
Quem recepciona os visitantes são os bolsistas do Núcleo Educativo, parte da célula de formação do equipamento cultural, responsáveis pelo desenvolvimento de pesquisas e projetos para a construção de produtos que vão ser transformados em acervo. Um dos educadores é Raffael Pereira, que explica como os registros documentais sobre o cantador ainda são escassos. "Não tem material que conte a história da casa. Até os repositórios das universidades têm poucas pesquisas. Estamos fazendo esse levantamento para contribuir, de alguma forma, com a cultura popular e com as necessidades desse público", desenvolve.
Apesar das poucas informações, eles compartilham uma aula sobre o repentista que desbravou o sertão cearense numa vida que se hoje se desdobra entre mitos e verdades daquelas difíceis de acreditar. Numa das paredes, xilogravuras de alunos dos cursos de formação ilustram os caminhos percorridos nos 89 anos. Nascido no Crato, Aderaldo Ferreira de Araújo chegou em Quixadá com meses de vida e manteve no município o próprio ponto de reencontro: "Tenho aqui minha morada/ como residência e pouso/ Vivo alegre e cheio de vida/ Que não me falta conforto/ Penso que só saio daqui/ Um dia depois de morto".
Entre os desenhos, um chama atenção: a representação da música "As Três Lágrimas", canção popular de sua autoria. A imagem demonstra os três prantos do artista: a perda do pai, ainda na infância; a perda da mãe na juventude; e a cegueira repentina aos 19 anos, após perceber forte dor de cabeça causada pelo trabalho sob alta temperatura em uma fábrica de algodão. A sequência de traços também exibe o início das andanças itinerantes com a rabeca - a inclinação para a arte aconteceu após um sonho, transformado em realidade com cavaquinho, rabeca, bandolim e triângulo -, a ligação com o cinema e a extensa família criada com 26 filhos adotados ao longo da estrada.
"Ele veio para Quixadá fugindo da fome, trabalhou, perdeu a visão, a mãe, o pai... Mas houve uma parte muito grandiosa da vida dele, apesar de não ser em forma de dinheiro. Vinha em forma de criar relações, de viver nessa comunidade com trocas, conhecendo grandes líderes", pontua o educador enquanto migra para as salas expositivas que, a partir de terça-feira, 24, recebem a exposição “Viva o Cego Aderaldo” . Também é possível percorrer um café, adornado por árvores e pinturas, até chegar à varanda, o maior espaço da casa. É por lá onde acontecem os eventos musicais e lançamentos.
Toda essa área comportou, em 2024, 3.874 visitantes, além de ações formativas e ações em conexão com municípios próximos, como Banabuiú, Senador Pompeu e Pedra Branca, segundo panorama obtido pelo site do Instituto Mirante. O interesse dos moradores firma o espaço como pilar de fruição e formação cultural, visto que “a casa sempre está com esse link com a comunidade”. A inauguração, realizada em dezembro de 2017, foi impulsionada pela ocupação de artistas que se apropriaram do local para chamar atenção do Estado. Oito anos depois, o equipamento continua permeando a intenção do home aneado: “O Cego Aderaldo foi um homem que teve um apelo nacional pela cultura muito forte”, enlaça Raffael.
Semana Cego Aderaldo de Arte e Poesia
A vida de Cego Aderaldo é celebrada entre terça-feira, 24, e sábado, 28, com a Semana Cego Aderaldo de Arte-Poesia, realizada na Casa de Saberes Cego Aderaldo. Em 2025, o evento traz como tema "Guardiões da Cultura Tradicional Popular", uma forma de homenagear o poeta que completaria 147 anos. Entre ações de diferentes linguagens artísticas, destaque para o 34º Festival Cego Aderaldo de Repentistas e Violeiros do Sertão Central, cuja proposta é reunir grandes nomes da cantoria. Também terá a abertura da exposição “Viva o Cego Aderaldo”, da ceramista Liara.
Memorial Rachel de Queiroz
Saindo da Casa de Saberes Cego Aderaldo, são poucos minutos até rever a memória de uma grande amiga do repentista. O Memorial Rachel de Queiroz é visível até à distância, visto que é posto de maneira inusitada: o chalé que abriga o equipamento, construído na década de 1920, fica sobre um monólito. A construção em tom de rosa pastel contrasta com a modernidade adquirida na praça Gladson Martins, onde também está situado o Centro Cultural Rachel de Queiroz.
Uma estátua de bronze da escritora, feita pelo escultor Murilo Sá Toledo em 2012, dá as boas-vindas num banco da praça. Ao subir os degraus, alunos como os que estavam presentes no dia da visita do Vida&Arte, se deparam com um recorte do íntimo da autora. São três cômodos que ambientam o processo criativo, as obras e o cotidiano de Rachel.
O memorial exibe livros, réplicas de objetos pessoais, fotografias e citações da escritora. Até mesmo uma maquete, disposta no centro, trata de remendar os ambientes nos quais a escritora de livros como "O Quinze" cresceu.
Casa de Antônio Conselheiro
Além das paisagens naturais de Quixeramobim, algumas emolduradas pela Ponte Metálica, figuras marcantes como a de Antônio Conselheiro estão à frente de iniciativas que atraem turistas. O líder do movimento religioso que levou milhares a Canudos, na Bahia, segue sobrevoando o solo quixeramobinense.
A casa onde nasceu foi construída pelo pai, Antônio Vicente Mendes Maciel, no século XIX. Em 1949, Luis Costa reformaria o local para abrigar o filho, que também viria a se tornar um dos nomes expoentes da região. Foi nesta mesma rua, que leva à Praça da Matriz, onde o compositor e arquiteto Fausto Nilo brincou de conhecer a si e ao mundo. Hoje, o espaço tombado desde 2005 e reinaugurado em 2022 desdobra a conexão entre as duas figuras na exposição "Fausto Nilo: O tempo e o lugar".
As costuras são feitas desde o piso - metade da pavimentação do lugar é a mesma colocada pelo pai de Antônio; a outra, pelo pai de Fausto - até o teto, quando desenhos representando a trajetória de ambos se misturam em cortinas de linho. "Brinco muito que essa relação entre os dois é muito mais do que uma coincidência, é uma conexão. Se não fosse Fausto e a família, hoje aqui talvez fosse uma farmácia, um espaço que não um equipamento cultural com esse olhar, essa visão de trabalhar a memória de Quixeramobim", destaca o gestor Pedro Igor.
A visita guiada pela mostra traz um jogo que une cinema, literatura, música e história. É centrada em Fausto, mas acolhe parceiros como o músico Fagner e o cineasta Glauber Rocha, sem deixar de lado as memórias familiares e a relação intrínseca do homenageado com a região. "Tudo de Fausto parte do princípio de diálogo", dimensiona a curadora Jéssica Marques. "Fomos reunindo os elementos, conversando com o pessoal da cidade, procurando trazer perfis de gerações diferentes. Contamos essa história do Fausto na perspectiva dessa memória afetiva: trazer a memória dele para falar dessa memória coletiva", detalha.
A interatividade foi chave para a mistura geracional, visível nas visitas que são, majoritariamente, feitas por escolas. Para captar a atenção de pequenos que crescem com a tecnologia, a exposição integra imagens antigas de Quixeramobim em óculos de realidade virtual e elementos como áudios e projeções. Já os mais velhos podem se identificar por meio de capas de discos, fotografias e até mesmo cartas cedidas pelo compositor.
A casa, gerida pela Secretaria de Cultura do Ceará (Secult-CE) em parceria com o Instituto Dragão do Mar, propõe o compromisso de salvaguarda com uma mostra que apresenta a cronologia da história do cantor em diferentes eixos. A palavra final da visitação, por exemplo, é de Fausto e das irmãs. Vídeos deles estão postos em uma área onde os visitantes podem sentar e escutar causos da família, como nas tradicionais conversas de calçada que continuam acontecendo pela cidade. É como ter um pouco da oralidade de Fausto, que se expande para composições, planos urbanísticos e monumentos, para si.
Três anos de reabertura
Os três anos de reabertura da Casa de Antônio Conselheiro são comemorados com programação que segue até o dia 28 de junho. A partir do tema "Casa em Movimento - 3 anos de Corpo, Memória e Caminho", as ações englobam solenidade neste domingo, 22, seguida de shows da banda Release 2000 e Selvagens à Procura de Lei.
Museu Oficina Antônio Rabelo
Entrar no ateliê do designer de joias Antônio Rabelo é, também, desvendar os processos que nascem na cabeça e no coração do criador. Ele recebe como quem já é de casa, ao lado dos filhos e com uma disponibilidade de quem aproveita a visita para aprofundar o diálogo. O lar agrega a fábrica de produtos desde 2002 e segue em expansão como o primeiro Museu Orgânico do Sertão Central, iniciativa de reconhecimento do Sesc pelo trabalho do artista plástico.
"É um trabalho que valoriza o saber desenvolvido ali, mas valoriza a pessoa que desenvolve o saber, dá a oportunidade a outras pessoas a entenderem esse processo e a se sentirem estimulados", expressa Antônio ao mencionar os três anos de atividade dentro desse formato. De acordo com o quixeramobinense, os dias vão se tornando mais interessantes conforme a quantidade de frequentadores aumenta. A curiosidade também é via de mão dupla, já que o proprietário guia pelo lugar com o mesmo entusiasmo de quem vê pela primeira vez.
O contato com o ofício do artesão acontece logo após a porta de entrada, onde há uma exposição de pedras da região. Rubi, safira e zircônia brilham aos olhos. No caminho da sala de criação, imagens de diferentes fases da vida de Rabelo ajudam a entender um pouco de como seu trabalho se estrutura. "Acredito que o design natural é tão perfeito que não deixa sobra. Se todo designer fizer um trabalho voltado ao natural, sustentável, tem um ganho muito grande", desenvolve.
Ele explica o que está por trás das esculturas detalhadas de personalidades como Raul Seixas e Lampião, feitas com barro, assim como os engenhos presentes nas ferramentas mecânicas que desenvolve. Repassa os materiais em mãos e elabora o processo de fabricação em cadeia enquanto mostra um espinho de xique-xique, cacto matéria-prima para brincos e colares.
"Dou aula em Fortaleza (na Escola Thomaz Pompeu Sobrinho), tenho que administrar a fábrica, mas tenho que desenhar joia. Quando faço uma coleção, as primeiras joias são eu que faço", destaca. "Insisto em produzir joia de forma artesanal. Sei que se eu quiser ganhar dinheiro, posso encher aqui de máquina, mas o grande lance é que não estou só vendendo joia. Estou contando uma filosofia, acho que é uma forma de contribuir para o mundo que você está vivendo".
Esse mesmo mote de transformação foi o que inspirou o desenvolvimento do Poço da Mina. No que seria o quintal de casa, Antônio desenhou e cavou uma mina, ao lado de um poço, revestida por paredes naturais com cristais. Começou, ainda, a cavar em solo composto de mica - um grupo de minerais presente em rochas - para uma nova empreitada: desenvolver uma galeria abaixo do solo, com oito metros de largura e quatro metros de altura, onde serão esculpidas mais de 200 esculturas para figurar a história da humanidade. Um projeto que deve durar, em média, dez anos para ser concluído com a ajuda de engenheiros e a perspectiva de ser um dos principais atrativos turísticos da cidade. Assim como tudo que já fez, é um sonho guiado pela emoção: “O grande lance da vida é fazer”.