Há cem anos nascia Janete Emmer Dias Gomes, mais conhecida como Janete Clair, considerada a maior autora de telenovelas do Brasil. Nascida em Conquista (MG), no dia 25 de abril de 1925, a escritora reinventou a dramaturgia na televisão ao combinar ritmo acelerado, linguagem acessível e emoção intensa, estilo que cativou milhões de brasileiros e transformou a telenovela no principal produto cultural da TV nacional.
No centenário de seu nascimento, homenagens celebram a autora que escrevia com a alma. Uma exposição no Museu da Imagem e do Som (MIS), no Rio de Janeiro, exibe manuscritos, troféus, fotos e vídeos de arquivo.
Intitulada "Janete Clair - A Usineira de Sonhos", a mostra também inclui um curta-metragem produzido por seu filho, Alfredo Dias Gomes, feito com imagens geradas por Inteligência Artificial (IA). "Ela era apaixonada por música clássica, passava horas cantarolando 'Clair de Lune'. Foi daí que veio seu nome artístico", relembra Alfredo.
Antes de se tornar a autora das oito, Janete começou a carreira no rádio, como atriz e roteirista de radionovelas. Foi nesse formato que aprendeu os truques que mais tarde moldariam a linguagem das novelas brasileiras: ganchos fortes, reviravoltas dramáticas e personagens complexos.
"Tudo veio do rádio. Ela sabia como prender o público. Sabia o que o povo queria assistir", aponta o jornalista Cleodon Coelho, autor da biografia "Nossa Senhora das Oito: Janete Clair e a Evolução da Telenovela no Brasil". Segundo ele, Janete praticamente inventou o modelo de telenovela brasileira, e todos os que vieram depois, direta ou indiretamente, beberam de sua fonte.
A virada definitiva veio com "Irmãos Coragem" (1970), novela que misturava faroeste, futebol e política. O folhetim marcou o início da hegemonia da Globo no horário nobre, superando a TV Tupi, e consolidou o chamado "padrão Globo de qualidade".
"Lembro da rua inteira parando pra assistir. Tinha comoção em torno da história", conta Luciano Alves, professor de educação física que assistiu a novela ainda criança. O impacto foi tão grande que Janete passou a ser vista como uma força criadora nacional, a dama das novelas.
Apesar de atuar em um meio predominantemente masculino, Janete se impôs com talento e disciplina. Ao lado de Ivani Ribeiro (1922-1995), foi uma das poucas mulheres autoras de TV nos anos 1970 e 1980. Mesmo rebaixada ao horário das sete com a novela "Bravo!" (1975), foi aclamada pela crítica ao tratar da música erudita e chamada de volta às 20 horas após a censura militar vetar "Roque Santeiro" (1985).
A habilidade para lidar com temas populares, costurados com personagens femininas fortes, foi uma de suas marcas. "As mulheres de Janete tinham vontade própria. Lucinha de 'Pecado Capital' era operária. Lili de 'O Astro' era taxista. Não eram bibelôs decorativos", lembra Cleodon Coelho.
Manuela Costa Bandeira de Melo, mestre em Comunicação e autora do livro "Telenovela, o Amor em Doses Diárias", destaca que Janete renovou a linguagem televisiva ao aproximar a ficção do cotidiano. "Ela trouxe tramas ágeis, linguagem coloquial e romance em doses generosas. A audiência se reconhecia ali", pontua.
O estilo narrativo de Janete é até hoje reconhecível. Para seus admiradores, ela tinha uma ousadia rara: a capacidade de driblar a lógica para manter o interesse do público e ainda assim ser crível. "Ela era livre. E quando um autor é livre o suficiente para desafiar até a lógica, isso é Janete", diz Cleodon.
Sua técnica permitia reações rápidas ao gosto do público. "Se um personagem não agradava, ela mudava a história. E dava certo. Ela escrevia quase em tempo real com os sentimentos do País", analisa Manuela. Isso foi o que tornou "Pecado Capital" (1976) um dos maiores sucessos da história.
Na história, Carlão (Francisco Cuoco) é um motorista de táxi que encontra uma mala cheia de dinheiro e se vê dividido entre devolver à polícia ou resolver os próprios problemas financeiros. Fugindo do melodrama tradicional, "Pecado Capital" conta com um anti-heroi, uma mulher forte e trabalhadora (no lugar da mocinha ingênua) e temas como ética, machismo, lealdade.
Janete Clair morreu em 1983, aos 58 anos, vítima de um câncer no intestino. Mas sua obra continua reverberando. É possível encontrar ecos de seu estilo em autores como Manoel Carlos, Glória Perez, Aguinaldo Silva e Gilberto Braga.
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A autora também conquistou um feito inédito: ter uma novela com 100% de audiência, um dado simbólico que mostra o poder de sua escrita. "Ela criou um modelo que foi exportado para o mundo e influenciou gerações", resume seu filho Alfredo.
Mais do que audiência, Janete Clair criou uma linguagem que fez o Brasil sonhar junto. Suas histórias costuraram a memória afetiva de um país em transformação da ditadura militar aos anos 1980. Sua escrita era, como ela mesma dizia, feita "com emoção, suor e café".
No centenário de seu nascimento, Janete continua sendo a referência maior da teledramaturgia nacional. Uma autora que entendia o público como poucos, mas que também era capaz de fazer do simples algo épico.