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Do Ceará para o mundo: estúdios de animação contam histórias e expandem fronteiras
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Do Ceará para o mundo: estúdios de animação contam histórias e expandem fronteiras

Com trabalhos de repercussão internacional, estúdios cearenses ressignificam a produção nordestina e renovam o mercado da animação
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Animação cearense "O Medo Tá Foda" participou de festivais nacionais (Foto: Carlos Junior/Divulgação)
Foto: Carlos Junior/Divulgação Animação cearense "O Medo Tá Foda" participou de festivais nacionais

Criado em 1824 pelo médico e físico inglês John Ayrton Paris, o taumatrópio consiste em um disco com dois lados diferentes, que, ao ser girado rapidamente, combina imagens, gerando uma ilusão de movimento.

Frequentemente representado pela figura do pássaro que entra e sai de uma gaiola - referenciada na capa do Vida&Arte deste domingo -, o brinquedo foi inventado para demonstrar o princípio da persistência da visão na animação.

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Com exatos 97 anos desde que Walt Disney revolucionou o mercado da animação com o lançamento do primeiro desenho animado sonoro com Mickey Mouse, o princípio óptico segue sendo o mesmo.

Para o animador Esaú Pereira, apesar de diversos softwares e inovações, a essência que move a animação reside justamente na simplicidade da criação desvinculada do real.

"Acho que estamos sempre reinventando a animação, mas ela segue vindo desse local de como contar uma história da forma mais fantástica possível por meio de uma sequência de imagens. Mesmo com todas as inovações, o princípio não é novo. Já estamos fixando e ficcionando as nossas imagens de maneira animada há muitos anos", argumenta.

Aos 29 anos, o jovem dirigiu a animação "O Medo Tá Foda", responsável por representar o Ceará na Mostra Competitiva de Curtas da 13ª Mostra Wallace, em São Paulo.

Com referências ao cotidiano das periferias do Ceará, o filme apresenta uma história de ficção científica com toques de romance. Para Esaú, a costura narrativa foi tecida com uma fina película entre seus traumas e curas.

"O curta tenta relatar em imagens essa Fortaleza que a gente conhece, que às vezes só tem ruínas proféticas e grandes locais. Fortaleza te trai no olhar, mas, de alguma maneira, ela te acolhe também. E acho que o filme chega muito no ponto de tentar mudar as nossas perspectivas de como representar essa Capital", conta o roteirista, nascido no bairro Jardim Iracema.

Com mais de 10 anos no mercado e circulação por diversos festivais, Esaú reflete sobre como a animação, por vezes, ainda é subestimada em comparação às demais searas do cinema.

"Quando falam de animação, as pessoas pensam em temas infantis e simples, como se não pudéssemos abordar temas adultos, profundos e ficcionar ideias com esse tipo de linguagem. E, pelo contrário, com a animação conseguimos dizer muito mais com a imagem, pois ela abre brechas para diversas outras interpretações", defende.

 

Lunart

Um grupo de estudantes de computação que, na década de 1990, se reunia para brincar com as descobertas dos jogos tridimensionais e das animações 2D. Esses eram os lunáticos, coletivo comandado por Neil Rezende, que, posteriormente, daria origem à Lunart Produções.

Os objetivos do grupo embrionário mudaram quando, em 1998, o projeto fez uma animação para o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), abordando os direitos infantis, que foi transmitida nos intervalos da Copa do Mundo de Futebol em mais de 60 países.

Desde então, o estúdio fundado em 2001 já produziu mais de 400 minutos de animação, entre comerciais, séries e curtas-metragens veiculados em canais como TV Cultura, TV Brasil, Amazon Prime, Canal Curta, Zoomoo e outros de distribuição internacional.

Com 24 anos animando vivências, Neil reflete que, ao entrar para o mercado de animações nos anos 2000, o terreno no Ceará era quase inóspito.

"Nessa época, acho que quase ninguém produzia ou exibia séries de animação no Brasil. Hoje, o mercado tem recebido muito bem as animações nacionais, mas foi uma conquista de anos de fomento, e um fomento direcionado, sobretudo, para o Sudeste. Passamos no início por muito preconceito, mas as empresas internacionais aos poucos começaram a ter consciência da qualidade da nossa animação", reflete.

No rol dos desafios, o animador lista, ainda, uma trajetória edificada em um setor audiovisual que, por vezes, não é prioridade no repasse de verba em editais, em comparação a outras áreas do cinema.

"Eventualmente, há editais de desenvolvimento, mas acabamos investindo nós mesmos, sem apoio, em grande parte. Boa parte dos editais não são feitos para projetos de animação, o que implica que pagam para fazer somente o roteiro escrito, e não partes como o desenvolvimento visual dos personagens, cenários e teasers", explica.

Apesar dos contrapontos, Neil reforça a liberdade que a animação oferece para o cinema, pois, desvinculada do não-ficcional, ela permite a exploração de narrativas distintas.

"Podemos extrapolar ainda mais os formatos e ideias das animações, bem além do que seria possível em live action. Mas nos inspiramos na realidade, pois grande parte das obras vieram de ideias que tiro da vida, das situações, das realidades e filosofias que desejo expressar", finaliza.

Mais informações: @lunart.estudiodeanimacao

 

Ilustração feita para as Olimpíadas de Tóquio
Ilustração feita para as Olimpíadas de Tóquio

Rapadura atômica

O município de Cascavel - distante 60 quilômetros de Fortaleza - é conhecido por uma feira gigantesca realizada nas manhãs de sábado, onde são vendidos itens de artesanato e produtos regionais com castanha, mel e rapadura. A cidade transformou o produto doce em símbolo cultural, atração turística e manifestação comunitária.

Reafirmando o potencial da cidade e ressignificando existências, o estúdio Rapadura Atômica surgiu em 2016, com o intuito de gerar oportunidades de profissionalização para artistas locais.

Criado pelos amigos Lucas Carvalho e Daniel Cavalcante, o hub oferece cursos de Animação Tradigital, Animação Cut-Out, GameDev com Unity, GameDev com Godot, que se complementam com workshops de desenho e ilustração.

Além dos cursos pagos para o público em geral, o estúdio comanda o Laboratório de Aprendizagem Beneficente em Tecnologia, Educação, Cultura e Arte (Labteca), uma instituição sem fins lucrativos voltada para a formação artística nas áreas de animação e desenvolvimento de jogos.

Por meio do projeto, o estúdio atua em parceria com escolas públicas e outros Pontos de Cultura na capacitação de jovens artistas que desejam seguir carreira.

"A depender das condições do estudante, o Labteca pode pagar a faculdade e oferecer uma bolsa de ajuda financeira no valor de meio salário mínimo durante a participação no nosso programa de formação. Além de beneficiá-los, é uma forma de selecionar jovens que possuem o potencial de seguir na carreira, já que muitos fecham contrato com o estúdio ao final do programa", conta Daniel.

Além de acessibilizar os conhecimentos sobre animação, que, para Lucas e Daniel, parecia uma ideia distante em suas infâncias, o estúdio nasceu da proposta de representar o Ceará nos frames de uma animação.

Para Lucas, essa representação acontece de forma intrínseca aos processos do estúdio e está presente desde as vozes originais até as piadas do roteiro.

"Um exemplo é o da nossa série 'Tarik', que se passa no Ceará pré-histórico. Nela, lugares como a Pedra da Galinha Choca, em Quixadá, são retratados. Já no longa 'Sofia e o Mundo das Coisas Perdidas', temos uma trilha sonora composta por músicos de uma orquestra de barro de Cascavel", exemplifica.

Levando a atomicidade para além dos limites do município, Lucas destaca no portfólio do estúdio produções como o teaser de Brawl Stars, a animação de abertura das Olimpíadas de Tóquio na Globo e o longa-metragem "Mi Amigo El Sol", em coprodução com o México.

Mais informações: @rapaduraatomica

 

Miríade Produções

Fundada em 2020, a Miríade Produções tem atuado com estratégias de produção para séries, curtas e filmes de animação. Com foco na área formativa, ao lado das demais sócias, a produtora Mari Lage se propõe a desmistificar o processo produtivo das animações.

"A animação tem um pipeline, uma cadeia produtiva e uma formação de equipe própria, então ensinar esse processo é passar por todas as fases e integrá-las de certa forma também. No nosso caso, ensinar animação é ensinar como tirar esse projeto do papel e transformá-lo em realidade", conta.

No portfólio, a produtora conta com predominância da execução de séries, que exigem técnica específica para atender às nuances do formato narrativo.

"Para séries, temos pouco tempo para animar, e para cobrir isso com um custo não tão alto, usamos a técnica de 2D cut-out. Ela consiste em um 2D digital em que não precisamos desenhar os personagens um por vez, apenas animamos os riggings, que são estruturas esqueléticas virtuais para animação de modelos", explica.

Não se atentando apenas a séries, a Miríade foi responsável por assinar a direção criativa de toda a parte animada do longa "O Auto da Compadecida 2".

Para Mari, ver um trabalho feito por tantas mãos nas telonas, em cadeia nacional, é fruto do espaço que a animação cearense vem ganhando aos poucos na indústria do audiovisual.

"A animação tem crescido no Brasil, mas sobretudo em seus territórios regionais. Não somente no Nordeste, mas muito no Norte e Centro-Oeste também", defende. Atualmente, o estúdio está em fase de produção de um longa que se passa em Fortaleza, no início dos anos 2000. Para Lage, contar a história da Cidade por meio da animação é motivo de celebração.

"Na produção, trazemos referências muito próprias do Nordeste, do Ceará, que temos sempre dentro da gente, mesmo quando não sabemos. Então, ao ver as animações, conseguimos notar esse jeito de falar, andar e tantas outras características nossas que partilhamos", relata.

Mais informações: @miriadeprod

 

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