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Maricona e Cacura: existe um conflito geracional na comunidade gay?
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Maricona e Cacura: existe um conflito geracional na comunidade gay?

A história de resistência LGBTQIA+ de um casarão no Centro de Fortaleza e o público que o frequenta pode evidenciar um suposto conflito geracional na comunidade gay
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Vitor Hugo Sampaio, o Seu Coronel, proprietário da Toca do Javali  (Foto: FCO FONTENELE/ O POVO)
Foto: FCO FONTENELE/ O POVO Vitor Hugo Sampaio, o Seu Coronel, proprietário da Toca do Javali

A pergunta no topo desta reportagem é facilmente respondida na Avenida Universidade, número 2226, no bairro Benfica - endereço da Toca do Javali. "Maricona" e "cacura" são termos recorrentes para se referir a um gay maduro na comunidade. O tratamento, que pode ser lido em tom de brincadeira em um primeiro momento, abre margem para a reflexão de um suposto conflito entre as gerações: será que gays da geração atual lembram o que fizeram as "mariconas"?

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Boa parte do público que frequenta a Toca do Javali é de um faixa etária 40+, parte da justificativa desse movimento pode ser explicada pela experiência do jornalista Luciano Almeida, 59 anos. Segundo ele, ao visitar outras boates gays em Fortaleza, no bairro Varjota, por exemplo, já foi vítima de etarismo.

"A maior contribuição (da Toca do Javalí) é justamente esse espaço de mistura de idades, onde evita-se as manifestações de etarismo que são tão comuns nas outras, infelizmente. Nas outras, onde só vai o pessoal mais novo, as pessoas queriam só exibir seus corpos de academia. Eu mesmo me senti vítima de preconceito de etarismo quando eu estava numa boate que tinha na Varjota e não rolava qualquer interação com as pessoas. Se tinha barba branca, que não fizesse parte daquilo", relata Luciano.

Para o diretor teatral Francis Wilker, 47 anos, o lugar é um espaço representativo e gera orgulho, mas há desafios a serem enfrentados na própria comunidade: "Existe certo preconceito também com o lugar, é um espaço de resistência, singular na sua arquitetura e decoração, que foge dos padrões das boates gays tradicionais. Então, tem uma complexidade interessante que é atrair determinado segmento e também desinteressar outra parcela".

Distanciamento e conflito geracional

Quem elabora sobre o distanciamento da geração mais jovem desses esses espaços é a ativista LGBTQIA Labelle Rainbow. "Infelizmente, vejo que parte da geração atual, muitas vezes atravessada por um mercado LGBT higienizado e pasteurizado, ainda não reconhece o valor desses espaços. Preferem consumir a estética da luta sem se conectar com a raiz dela. É como se quisessem o brilho, mas não a história que o sustenta", defende.

Na visão do antropólogo Antonio George Paulino, acontecem processos de identificação diferentes em cada geração. "Um espaço onde predomina um público mais maduro agrega pessoas que lá não serão adjetivadas pejorativamente e acho que pela própria trajetória conservam o hábito do gueto ou do lugar exclusivo, discreto, um lugar que não fica exposto. E a geração atual não parece buscar essa descrição. Elas ocupam ruas, praças, shoppings, shows abertos", defende o professor e pesquisador de gênero e diversidade na Universidade Federal do Ceará (UFC).

"As gerações mais jovens chegam na urgência, com coragem, com novas linguagens e pautas. Mas, por vezes, esquecem que houve também quem abriu caminhos, até com a própria vida, enfrentando um país ainda mais hostil e invisibilizador. O orgulho e as conquistas de hoje são fruto do sangue, da rua, dos enfrentamentos de ontem. Que as juventudes possam olhar para nós com respeito, mas também com curiosidade, gosto e vontade de aprender junto. E que nós, mais experientes, possamos acolher essas novas formas de existir com generosidade", afirma Labelle sobre a relação entre essas gerações.

Pelas paredes rosas do casarão passaram memórias vivas de luta, que por vezes viveram a reclusão em espaços como o Toca para sentirem o gostinho da liberdade. "O que não se pode esquecer é que ali tem um espaço de resistência que sobrevive faz muitos anos como ponto de encontro da comunidade gay de ontem, hoje e amanhã", elucida Francis.

A longevidade da Toca do Javali

E se a Toca jamais foi escondida e permanece há mais de 20 anos mesmo com os desafios do tempo, das luzes neons mais atrativas da cidade e das casas mais badaladas, qual seria então seu futuro? Para Seu Coronel no auge de seus 88 anos não há previsão de fim. E se, ao acaso, o fim bater à porta do dono do casarão na Avenida da Universidade e a administração do espaço precisasse ser continuada, ele responde com boas risadas: "Não avanço essa responsabilidade pra ninguém não".

E se para homens livres a Toca é lugar de refúgio e liberdade, o que é então a Toca para um Coronel: "Uma maneira de eu escapar na vida e me redimir de certas coisas. Ver as pessoas alegres, fluindo. Porque no meu tempo era proibido. Ver todas as categorias: tem professor, tem médico, posição que até surpreende por ser liberto. Aqui é um espaço pra ser livre". E Seu Coronel? Na sigla da diversidade, onde
ele encontra um espelho?
Ao responder a minha pergunta, ele apenas se restringiu a dizer que era um "homem livre".

 

Toca do Javali

  • Onde: Avenida Universidade, 2226 - Benfica
  • Quando: toda sexta-feira, das 23 às 4 horas
  • Mais informações: @tocadojavali.oficial
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