Ainda que não estivesse viva quando Cazuza atravessou seu auge na música brasileira, a jovem Gabrielle Oliveira, 17, conseguiu ser impactada pelo trabalho do cantor. “As letras são muito carregadas de significados”. “A forma como são cantadas também me intriga e é algo que adoro”. Sem pestanejar, faz com tranquilidade tais afirmações.
Não à toa pediu aos seus pais para que em sua festa de 15 anos tocassem apenas as músicas do artista. Gabrielle faz parte de uma geração vinda após a morte dele, mas, devido aos seus pais, conhece bem seu repertório. De formas diversas, o trabalho de Cazuza é transmitido e ressaltado até hoje.
Essa constatação se dá não somente pelos fãs que perpetuam seu legado ao ouvirem suas músicas, mas por iniciativas que retratam sua trajetória a partir de filmes, livros e exposições. Nesta segunda-feira, 7, a morte de Cazuza completa 35 anos. O cantor faleceu precocemente, aos 32 anos, devido a um choque séptico causado pela aids.
Um dos principais nomes da história da música brasileira, ficou marcado pela postura irreverente, contestadora e corajosa, principalmente ao falar, de forma aberta, sobre a aids, quando o assunto era tratado como um grande tabu. Além disso, é lembrado pela sua qualidade enquanto compositor.
Vocalista da banda de rock Barão Vermelho no início dos anos 1980, foi responsável por sucessos como “Pro Dia Nascer Feliz” e “Bete Balanço”. Em 1985, começou a carreira solo e criou escreveu canções como “Exagerado”, “Ideologia” e “O Tempo Não Para”. Foram cinco álbuns lançados, além do póstumo “Por Aí”.
Muito já foi falado sobre Cazuza, tamanha é sua representatividade. Seu nome voltou a estar em alta recentemente, ao ser vivido por Júllio Reis em “Homem Com H”, cinebiografia de Ney Matogrosso. Os holofotes se viram novamente para seu nome com o lançamento de documentário ainda neste mês e, em Fortaleza, de uma exposição sobre o artista. Importante, então, revisitá-lo.
As marcas de Cazuza na música brasileira são apontadas fortemente pela sua capacidade enquanto compositor, não à toa recebeu a alcunha de “poeta do rock”. Mas, afinal, é possível considerá-lo, de fato, um poeta? Ou a expressão amplifica uma qualidade do cantor para outro lugar?
Para Rafael Julião (professor, poeta, doutor em Literatura Brasileira e pesquisador de poesia e de canção popular brasileira), há duas respostas possíveis a essa pergunta: sim e não. Autor do livro “Segredos de Liquidificador” (2019), que analisa a obra de Cazuza e seu lado enquanto compositor de canções, ele tece suas considerações.
Cazuza pode ser considerado poeta porque ele fazia letras, e letras são “textos literários, com imagens e recursos de estilo”. Nesse sentido, ele é um poeta, porque fazia textos poéticos. Além disso, há a imagem “mítica” em sua obra de um poeta como um “visionário”, “iluminado”, alguém capaz de formular imagens que “revelam coisas”.
Como exemplo, cita versos de “O Tempo Não Para” (“Eu vejo o futuro repetir o passado / Vejo um museu de grandes novidades”): “Tudo isso tem um tom profético e visionário bem característico desse mito em torno da imagem do poeta. Ele também se alimentava dos textos poéticos da literatura”.
Julião complementa: “A própria trajetória dele contribui para a ideia do poeta, principalmente da poesia marginal, aquele que está à margem da vida burguesa organizada e ao mesmo tempo revela coisas sobre ela com imagens poderosas. Nesse sentido, ele é poeta. Ele até se autointitula assim em ‘Malandragem’. A música ‘O Poeta Está Vivo’ (Frejat e Dulce Quental’ está em torno disso”.
Entretanto, há o lado oposto. O pesquisador aponta que, para quem é estudioso da canção popular, há, às vezes, a tentativa de desconstruir a ideia de que quando um compositor popular é muito bom ele ganha o título de poeta. Para Julião, é “muito importante pensar que a canção é um gênero particular”.
Com Cazuza, às vezes até há textos poéticos não musicados que talvez tenham alguma intenção de poema, mas a maior parte de sua obra “foi pensada para a página em branco, não para ser recitada, mas para ser cantada com acompanhamento de melodia, instrumentos, intencionalidades da performance vocal”.
“Às vezes, é bobagem querermos promover um compositor a poeta, porque deixamos de olhar a grandiosidade que é alguém que pensa esse objeto complexo que é a canção. “Vamos avaliar ‘Exagerado’. Muitas das coisas grandiosas e geniais que a fazem uma grande canção estão ligadas ao fato de ser um ótimo letrista, mas se tiro a música e a performance vocal, muito dos sentidos e das dualidades dessa atuação se perdem. Nesse sentido de quem estuda canção, é interessante pensá-lo como ‘poeta da canção’, mas sem a preocupação de elevá-lo ao título de ‘poeta’ para reconhecermos sua grandeza no seio da história da música popular do Brasil”.
O autor destaca como a obra de Cazuza se entrelaçou com sua obra. Adolescente ao longo dos anos 1970, viveu a experiência da contemporaneidade entre o encerramento da ditadura civil-militar no Brasil e a força da contracultura no País. Assim, muitos debates em torno do sexo, das drogas, do rock n’ roll e da rebeldia jovem, simultaneamente à perspectiva da ascensão de discursos nacionalistas e moralistas. Nos anos 1980, o fortalecimento do rock brasileiro (com o surgimento do Circo Voador e de bandas como Barão Vermelho e Legião Urbana) e o processo de redemocratização.
Na segunda fase de sua obra, se volta para a temática amorosa, mas como afirmação própria de identidade “muito incisiva”, marcando sua carreira solo. A virada para a fase final de sua obra, em 1988, com “Ideologia”, atravessando a aids e seu entendimento sobre a doença. Cazuza se consolida como “leitor do Brasil”, como destaca Julião.
Pela sua capacidade de fazer metáforas e traçar imagens poéticas, a escrita de Cazuza o tornou diferenciado em relação a outros compositores. Natural pensar que ele influenciou, em níveis diferentes, nomes como Ney Matogrosso, Cássia Eller, Almério e Jão. O pesquisador reforça como Cazuza tem “canções muito poderosas”, desde as que falam sobre amor às que têm cunho político.
“A canção ‘Brasil’ merece muito destaque. A forma como ele consegue conjugar imagens do rock e do samba com uma leitura muito potente do País. Existem outras partes da obra do Cazuza que são menos exploradas e que valeriam a pena. Um álbum como ‘Burguesia’ tem canções como ‘Azul e Amarelo’, ‘Quando eu Estiver Cantando’, ‘Cobaias de Deus’ e têm imagens muito poderosas”, afirma.
O percurso pela obra de Cazuza pode ser feito não somente a partir de textos e livros - como no trabalho de Rafael Julião -, mas também por meio do audiovisual. Um exemplo é o filme “Cazuza - O Tempo Não Para” (2004), estrelado por Daniel de Oliveira. Como já abordado nesta matéria, o poeta do rock também é citado em “Homem com H”.
Neste mês, uma nova produção chegará ao público: o documentário “Cazuza: Boas Novas”. A obra tem pré-estreia exibida no Cineteatro São Luiz, em Fortaleza, no próximo domingo, 13. A estreia oficial nos cinemas ocorre no dia 17. O filme revela um dos períodos mais intensos, produtivos e simbólicos da trajetória do cantor: entre 1987 e 1989.
Nesse intervalo, lançou três álbuns, recebeu premiações e realizou mais de 40 apresentações do espetáculo “O Tempo Não Para”, mesmo enfrentando o diagnóstico de aids e com a saúde cada vez mais debilitada. Com imagens de arquivo, vídeos inéditos e depoimentos de pessoas próximas, o longa “revela a urgência criativa de Cazuza, sua luta por um legado e o impacto profundo que deixou em quem o cercava”.
Participam do documentário nomes como Ney Matogrosso, Gilberto Gil, Frejat e Lucinha Araújo. A produção é do canal Curta! e é dirigida por Nilo Romero, músico, amigo e diretor musical do último show de Cazuza. Também produtor musical e compositor, construiu carreira ao lado de nomes como Marina Lima, Leo Jaime e Kid Abelha.
Nilo virou parceiro de composições de Cazuza (“Brasil”, por exemplo), mas sua relação com o artista foi além do trabalho. Assim, compreende que o público, ao ver o documentário, vai conhecer sua personalidade descrita por seus amigos, com relatos engraçados, particularidades e cenas inéditas.
“O que mais me chamou atenção nessa revisitação foi constatar a amizade e o carinho que todas as pessoas as quais entrevistei tiveram com ele. Não foi apenas eu quem viu o Cazuza como um ser humano especial, para além do músico, compositor, cantor e ‘maluco’ (risos) que ele era”, indica em entrevista por telefone ao Vida&Arte.
A escolha do período de 1987 a 1989 ocorreu por ter sido a época em que o diretor esteve junto ao Cazuza, começando a tocar na turnê “Exagerado”: “Eu o vi no auge físico e ele já estava escrevendo super bem. De repente, fica doente. Como ele tratou isso sempre me impressionou. Por isso quis contar a história a partir desse momento”.
O filme também apresenta um panorama de quem foi Cazuza antes desse período. Nilo complementa: “Ficava impressionado, porque nunca o vi reclamando de nada. Sempre o vi querendo melhorar artisticamente. Nunca cantou tão bem na vida, mesmo sendo um ‘fiapo’ de gente. Começou a escrever de forma diferente, as músicas de cunho político que não escrevia antes, até mesmo as comportamentais ficaram diferentes, como ‘Blues da Piedade’. Até quando falava de amor era de outra forma. Foi o período que vivi mais próximo dele”.
Entre as cenas inéditas estão gravações do casamento de George Israel (compositor, saxofonista e ex-Kid Abelha). No palco, tocam nomes como Paula Toller, Fernanda Abreu, Léo Jaime, Frejat, Nilo Romero, João Barone e, claro, Cazuza. A música “Pro Dia Nascer Feliz” é destaque. Cazuza já estava doente e fez transfusão de sangue para conseguir participar da festa.
A reação de perfis na internet à personalidade de Cazuza em “Homem com H” se encaminhou para avaliações negativas, com afirmações de que era um “playboy mimado”. Questionado sobre como encarava esses comentários, Nilo Romero opina que a visão do filme sobre o artista “não corresponde à realidade”, mas acha verdadeiro porque Cazuza realmente “mexeu” com Ney Matogrosso.
Acha, então, injusto reduzir Cazuza a um “menino mimado”, porque ele “era mais que isso”. No filme, ele estava como o namorado de Ney Matogrosso. Para ele, a internet “comprou” a visão de que é um cara que machucou Ney, mas o próprio cantor relata no documentário como era sua relação com Cazuza. Ele até foi diretor do seu último show.
Quanto à apresentação, Nilo relata que a banda estava ensaiando sem “saber se ele realmente conseguiria fazer o show”. No fim, ele acabou fazendo quatro shows seguidos em um fim de semana e depois conseguiram rodar pelo Brasil. “Cazuza continua vivo muito pela forma como os amigos e a mãe cuidam para que a memória dele não seja esquecido. Nem sei se precisaria disso, mas também é um fato que contribui. Ele era único. Sua obra é realmente única”, atesta.
Guardião de Memórias
Entre os quadros diversos que preenchem as paredes do restaurante e espaço cultural Bruta Flor, em Fortaleza, duas molduras chamam a atenção. Em uma delas, um moletom azul com marcas de desgaste. Na outra, logo abaixo, uma bandana roxa. Em comum, os itens pertenceram originalmente ao mesmo dono: Cazuza.
Proprietário do Bruta Flor, César Sabino guarda com orgulho — e nostalgia — os itens recebidos. Não há como esquecer os presentes dados por Xicão Alves, amigo de Cazuza. Esses não são, porém, os únicos artigos de sua coleção relacionados ao cantor. De revistas a VHS de show, César tem acervo especial dedicado ao artista.
Não só do Cazuza, aliás. Ele guarda objetos ligados a nomes como Elis Regina, Cássia Eller e Maria Bethânia. "Tive sempre a certeza de que um dia poderia usar esse material, achando que a memória do Cazuza estaria esquecida. Na época que comecei a colecionar e pensava em ter filhos, queria, de repente, mostrar para eles. É como se eu tivesse a missão de guardar a memória dele".
Com essa "missão", ele volta a montar exposição sobre o artista no Bruta Flor. O lançamento é nesta quarta-feira, 9. Intitulada "Um Trem para as Estrelas - Cazuza: 35 anos de Saudade", a mostra reúne jornais da época (incluindo edição do Vida&Arte), revistas e itens pessoais.
Além disso, são exibidos vídeos raros, fotos e ativação interativa. Na quinta-feira, 17, às 19 horas, há roda de conversa sobre Cazuza com César, Marcos Sampaio (jornalista, crítico de música e editor-adjunto do Vida&Arte), George Hudson (vocalista da banda Altos Versos) e Fylipe Lima (guitarrista da Altos Versos).
Esta não é a primeira exposição montada por César em tributo a Cazuza. Além de ter feito edição da mostra no Bruta Flor em 2021, ele contribuiu para uma exposição realizada em 2013 pela Chilli Beans em São Paulo. Na época, ele trabalhava na marca de óculos como coordenador de franquias e sugeriu a elaboração de uma coleção temática do Cazuza.
A ideia foi posta em prática e, para lançar a coleção, foi inaugurada a exposição em São Paulo, no ano em que Cazuza faria 55 anos. A mostra contou com itens pessoais de Cazuza guardados por um de seus amigos, Xicão, e ainda por Lucinha Araújo. César ficou amigo de Xicão e aí ganhou de presente tanto o moletom quanto uma das bandanas do poeta do rock.
"Eu me senti realizado, porque aquela ideia que eu tinha de ajudar para a memória do artista nunca ser esquecida estava se concretizando - apesar de não precisar de mim, porque o Cazuza já basta. A poesia dele, sua presença, a importância na música brasileira… Ele, por si só, conseguiu que sua arte fosse passada de geração em geração", afirma emocionado.
O Poeta Está Vivo
Trinta e cinco anos após sua morte, Cazuza continua lembrado até por quem não nem havia nascido. É o caso de Gabrielle Oliveira, 17 anos. A partir dos seus pais, que apresentaram a ela o rock nacional desde a infância, teve a oportunidade de se debruçar sobre suas músicas.
O encantamento pelo cantor foi tanto que, em sua festa de aniversário de 15 anos, decidiu que a trilha sonora só podia ser uma: a obra do poeta do rock. Quem estava no palco? Justamente a Altos Versos, conhecida por fazer tributos a Cazuza. Depois que conheceu a banda, começou a frequentar seus shows. Foi inevitável, então, convidá-la.
"Quando decidi que faria a festa, perguntei aos meus pais se teria alguma banda. Como deixaram, não pensei duas vezes antes de escolher a Altos Versos. Não poderia ter coisa melhor do que uma banda que gosto tocando as músicas de um dos meus cantores favoritos em um dia especial. Para mim, isso foi incrível. Ouvi as músicas que gosto e aproveitei a noite ao som de Cazuza, o que, para mim, não tem preço", relata.
Ela destaca a qualidade da discografia de Cazuza: "As letras são muito carregadas de significados. Elas têm uma maneira muito clara de passar uma mensagem, seja em uma música romântica ou em uma que critica a sociedade e mostra sua desilusão. A forma como são cantadas também me intriga e é algo que adoro. A maneira como o Cazuza canta e usa sua voz me cativa e faz você se sentir imerso na música".
"Ele era corajoso"
Para George Hudson, bastava somente um sinal. Se ele aparecesse, seria o suficiente para aceitar o convite a uma jornada que passaria a ser importante em sua carreira. O ator cearense precisava de um indicativo para se convencer de que seu novo projeto não seria em vão. Quando veio, teve a certeza de que "estava autorizado".
O projeto, no caso, seria prestar um tributo a Cazuza como cantor. Ele, que tinha experiência majoritária na atuação - participando do coletivo artístico As Travestidas e de espetáculos como "Obrigado, Senhores" (2014) -, foi "descoberto" ao perceberem a semelhança do timbre de sua voz com o do autor de "Exagerado".
O convite foi para realizar a homenagem com a banda Altos Versos. Naquela altura, Hudson conhecia apenas os clássicos de Cazuza. Ao pesquisar sobre o artista, ficou encantado com o repertório. A admiração só aumentava — assim como a insistência para se apresentar em um show no saudoso Hits Brasil. Ele, porém, relutava em aceitar a missão.
Só aceitaria se aparecesse um sinal. No fim, foi saber que a data do nascimento de Cazuza (4 de abril) era a mesma do show no Hits Brasil. Ele achou que era proposital, mas depois descobriu que era somente a única data disponível para apresentação no local. Desde então, 11 anos se passaram e a banda segue na ativa prestando tributo ao cantor.
"O Cazuza tomou a Altos Versos de uma forma tão forte que acabou o trabalho autoral", relata ao resgatar o histórico da banda. George não esconde a admiração pelo "poeta do rock": "Fiquei impressionado com a coragem dele, acho que foi o artista mais corajoso. Falar de aids naquela época, quando todos se escondiam… Era algo que não se falava. Isso reforçava muito o preconceito. Quebramos o preconceito falando sobre ele, não escondendo. Fazer isso por meio da arte é essencial, para transformarmos em pauta".
Professor de artes, ele faz questão de apresentar aos seus alunos não somente a obra de Cazuza, mas de outros nomes do rock nacional. "Eu fiz um sarau na escola com o tema 'poetas do rock'. Cada turma tinha um poeta, como Rita Lee, Renato Russo, Raul Seixas e Cazuza. Foi a coisa mais linda ver os alunos descobrindo os artistas".
George complementa: "As meninas que ficaram com Rita Lee disseram como parecia que a cantora as conhecia. Um aluno difícil pegou Raul Seixas e falou: 'Tio, que massa! Que legal essa letra!'. A atividade era fazer um texto em cima da obra de cada poeta. Foi lindo. Quem pegou Cazuza disse como ele era corajoso".
Em mais de uma década de shows, George já se apresentou para gerações contemporâneas a Cazuza e gerações mais novas. "A obra dele atravessa o tempo, por isso ele é inspiração e referência". No domingo, 13, a Altos Versos se apresenta no Cineteatro São Luiz após a exibição do documentário "Boas Novas", de Nilo Romero.
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