Horário de pico, o sinal está fechado e os veículos buzinando. Raiva, ansiedade e estresse começam a aparecer, mas, ao olhar para frente, no semáforo fechado, existe um artista. Um malabarista, um cantor, um brincante ou uma dupla circense. São artistas de rua que, ao expressarem seus trabalhos, tornam a rotina de quem a percebe mais leve.
Além de usar o espaço aberto como palco, o artista transforma tudo aquilo que está ao redor. "A rua é um lugar de estresse e quando ele (artista) leva a arte, o mundo se expande", diz Gleilton Silva, mais conhecido como Capim Brincante. Para o multiartista que trabalha principalmente com expressões populares, a cultura leva até a rua novas experiências e encantamentos.
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O tempo de um semáforo fechado dura poucos minutos. São instantes para o artista se dividir entre apresentar e passar o chapéu. Nesse intervalo, ele proporciona um respiro àqueles que estão enfrentando o trânsito. "Eu levo para o sinal a minha energia. É muito sobre a história da pessoa e a visão dela para aquele lugar", explica Gleiton.
Assistir uma apresentação de rua é diferente de ir assistir uma linguagem em algum equipamento cultural. A arte feita na rua rompe a rotina dos passantes. No meio de uma semana, como explica Capim Brincante sobre seus propósitos, um artista pode fazer "a pessoa olhar para o lado, respirar, se encantar e sorrir".
Para muitos artistas, apenas o fato de conseguir afetar positivamente a vida de quem está ali assistindo, já vale o esforço. "O que é gratificante é você levar o entretenimento à rua e que as pessoas gostem", conta o colombiano Hernan Bermudez. O malabarista complementa explicando que a atenção recebida, as palmas e os comentários - "você merece mais reconhecimento" - são tão bem recebidos quanto o retorno financeiro.
Romper o cotidiano, por mais que seja um grande propósito, também é um desafio. O artista Alysson Lemos trabalha com a arte circense e conta que, em uma sociedade na qual tudo é imediato, é desafiador reter a atenção do espectador em qualquer lugar, mas "na rua é duplamente mais difícil".
O artigo 215 da Constituição Federal do Brasil reconhece a cultura como direito humano fundamental e atribui ao Estado a responsabilidade de proteger, promover e garantir o acesso. Porém, muitas vezes, conforme os artistas ouvidos pelo O POVO, quem faz possível esse acesso raramente possui oportunidades e auxílio do Estado para segurança e propagação de seus trabalhos.
Mas a arte de rua é livre e, sendo assim, é permitido que ela aconteça em qualquer lugar. Os artistas percorrem não apenas o mapa de Fortaleza, mas ultrapassam territórios. No Ceará, as expressões artísticas invadem também o interior.
Só na amostra ouvida nesta reportagem, tem-se representação de artistas atuando em Fortaleza, no litoral cearense e no sertão do Estado. "A rua é de todos, nós fazemos uso dela para trabalhar de forma honesta e é um trabalho muito versátil, nos permite conhecer muitos lugares", explica Hernan Bermudez.
O artista que tem a rua como seu palco não se limita apenas aos cruzamentos e aos semáforos: ele se move na cidade. As expressões ocupam até o transporte público, como foi o caso de Mateus Fazeno Rock. O cantor, no começo da sua carreira, fez dos ônibus seus palcos diários.
Os coletivos, à época, começaram como uma solução financeira e se tornaram um grande ensino. "O 'busão' me fez permanecer na música", explica Mateus, lembrando que, até hoje, ele carrega aprendizados, mesmo que não se apresente mais no espaço aberto. Mateus conta que foi nas rotas dos ônibus que aprendeu a "se jogar". "Trabalhar com a arte na rua foi e ainda é a minha base como artista", diz, e complementa: "Eu não trabalho mais nos ônibus, mas vai sempre continuar na minha essência".
Já o Coletivo FusCirco produz teatro e o seu palco é um fusca. O grupo viaja levando a arte para diferentes cidades. Atualmente, está em um circuito de três meses na estrada do Interior do Ceará. A dupla formada pelos palhaços Rupi (Amanda Santos) e Pitchula (Henrique Rosa) tira o teatro de dentro das quatro paredes e leva ao ar livre. "Nós queremos encantar quem está passando, a rua é viva e usamos isso nas nossas produções", conta Henrique. O FusCirco foi idealizado para ser itinerante e passar temporadas viajando. "O fusca é ao mesmo tempo nosso meio de transporte e nosso cenário", explica Amanda.
Assim como o FusCirco, outros artistas atingem lugares que vão além de Fortaleza. Gleilton Silva trabalhou na capital cearense, mas há seis anos reside em Cascavel, no Litoral Leste, e leva sua arte para as ruas da cidade. Ele explica que sua atuação como artista de rua é versátil. "Me apresento no sinal, vendo cordel na rua, toco pandeiro na feira. (A arte) se expande para outros espaços, além do sinal", conta.
Ocupação do espaço público
A cultura feita nas vias públicas, na opinião dos artistas ouvidos pelo O POVO, é a forma mais democrática das pessoas acessarem esse direito. A palhaça Rupi comenta que "assiste quem quer e paga quem pode", pois não se tem a obrigação de pagar para assistir as intervenções artísticas feitas em ambientes públicos.
De acordo com a Política Nacional de Mobilidade Urbana, Lei 12.587, de 2012, são permitidas apresentações culturais e manifestações artísticas em vias e demais logradouros públicos. Se apresentar na rua não se faz por não ter algo melhor, como dizem os brincantes, mas, sim, por acreditar na importância da arte.
Gleilton Silva considera um ato político. O brincante conta que ir para rua tem "suas flores e dores", pois "é extremamente rico e prazeroso levar o sorriso às pessoas mas também perigoso". O risco é algo que faz parte do cotidiano de todo cidadão e o artista está ainda mais exposto a acidentes de trânsito, insegurança com seu dinheiro e violência física e verbal.
Passar o chapéu
É por meio do trabalho nas ruas que muitas pessoas tiram seu sustento. Os artistas entrevistados falam sobre o conceito de "passar o chapéu". O ato é conhecido assim pois, como afirma Alysson Lemos, antigamente, os artistas se apresentavam em praças e colocavam chapéus no chão para o público depositar suas ajudas.
Esse retorno vem de várias formas - como aplausos, dinheiro e até mesmo comida. "Quando tocadas e com condições de darem alguma ajuda, elas (pessoas) se sentem livres para auxiliar da forma que conseguem", segue Alysson. Esse retorno, diz, é político por reconhecer o trabalho artístico.
O dinheiro é o suficiente para necessidades básicas, mas não é o que vai deixar alguém rico - como define o circense colombiano Jorge Nicolas Galvis. Para ele, o retorno funciona para o dia a dia, mas "poder viajar e conhecer culturas" é o que o torna rico.
Gleilton Silva, o Capim Brincante
O multi-artista Gleilton Silva - que se considera um "artevista" por lutar pelo espaço do artista de rua - trabalha desde 2006 nos espaços abertos. Teve contato com a arte no Centro Cultural do Bom Jardim e no ABC do Bom Jardim - e, a partir daí, deu início às apresentações.
Ele atribuiu esse conceito de artista/ativista a si - pois seu trabalho tem ido além de suas apresentações. Gleilton tem desenvolvido pesquisas sobre a visão das pessoas sobre a arte de rua. A iniciativa mais recente culminou em um documentário produzido em parceria com a Escola Porto Iracema das Artes, chamado "Dossiê: O Sinal Narrativas Artivistas".
"Como as pessoas percebem esse tipo de ação?", é a pergunta que o cerca ao realizar a pesquisa e ao se apresentar em Cascavel. O Capim Brincante também proporciona encontros e cursos de arte, com o intuito de profissionalizar cada vez mais o artista que faz da rua um palco. "A sustentabilidade desse artista deve ser algo para nos preocuparmos", finaliza.
Coletivo FusCirco, a dupla de palhaços Rina e Pitchula
Idealizado em 2019 como um projeto de circulação, o Coletivo FusCirco nasceu da vontade da Amanda Santos, a Rina, e do Henrique Rosa, o Pitchula, juntarem seus trabalhos - pois ambos já vinham de outras experiências artísticas.
Antes de optarem pelo fusca, eles pensaram em uma moto, mas não seria prático para as longas viagens. Depois, pensaram em uma kombi, porém seria tradicional demais. Amanda conta que sempre quis ter um fusca e, ao levar a ideia a Henrique, o aperto não foi um problema. E assim escolheram o meio de transporte que seria também o cenário de suas peças.
A dupla se preparou por seis meses para a primeira viagem - que durou um mês e percorreu o interior do Ceará. Com a programação pronta para ter início em março de 2020, a pandemia de Covid-19 os impediu de começar. "Nós tivemos que ficar em casa, e, com esse tempo, ao invés de só juntar o meu trabalho com o dele, nós criamos um espetáculo nosso", relata Amanda.
Somente em 2021, após a primeira dose da vacina de Covid, o FusCirco saiu em seu circuito apresentando o que é até hoje o seu principal espetáculo, "A Revita". "Temos, hoje, diversos números, então passamos a ser um coletivo", explica Henrique. A dupla circense está sempre em trabalho de pesquisas, cursos e oficinas para poder se capacitar em todas as vertentes. "O artista de rua é político", finaliza Amanda.
Alysson Lemos e a arte circense
"Eu tenho alguns momentos diferentes, mas sempre ligados à rua", conta o artista que começou a se apresentar na rua em 2011 e nunca mais parou. Alysson Lemos se aventurou em diversos formatos, começou no malabarismo e estudou artes circenses.
Ele conta que não tinha nenhum tipo de "romantização, pois via a rua como esse ambiente para "trabalhar e fazer dinheiro". Passou sete anos trabalhando em semáforos e essa visão foi se perdendo ao passar dos meses.
Em 2014 ingressou no grupo "As 10 Graças", no qual permanece até hoje. O palco principal do grupo era a Praça do Ferreira: "Eu sentia que ali era o nosso lugar". Nesse período, conheceu aqueles que considera seus mestres: os artistas "Quebra Coco" e "Eduardo, show da vida".
"Eu vejo a rua como um lugar de encontro de amizades e profissão", diz Alysson, explicando que a rua forma muitos artistas. Na sua opinião, além de ensinar sobre arte, a rua cria um senso de responsabilidade.
Alysson define o trabalho como "disciplina e coragem". A disciplina é necessária em qualquer ramo profissional, e na arte de rua não é diferente. A coragem é necessária para se colocar no mundo de forma tão vulnerável para expor sua arte.
Mateus Fazeno Rock nos ônibus de Fortaleza
O cantor Mateus Fazeno Rock começou a carreira nos saraus e nos ônibus da capital. Ele é conhecido pelos álbuns "Rolê nas Ruínas" (2020) e "Jesus Ñ Voltará" (2024), mas talvez, o público não saiba que o primeiro palco foi o transporte público.
A iniciativa surgiu da necessidade financeira. E, graças a suas apresentações de rimas e poesias dentro dos circulares de Fortaleza, ele permaneceu na música. O retorno financeiro dos ônibus com alguns outros trabalhos foram fundamentais para a produção do seu primeiro álbum de estúdio.
Mateus conta que muitas referências e elementos que ele incluiu no álbum "Rolê nas Ruínas" vieram do período em que trabalhou na rua. Ele estava vivendo Fortaleza das mais diversas formas.
"(A rua) foi o lugar que me acolheu, me salvou e me ensinou muita coisa", conta. O músico conta que entendeu como se colocar nos espaços públicos e como conquistar a audiência com respeito.
Hernan Bermudez, o artista colombiano
Os artistas de rua não transitam apenas em uma cidade ou estado, eles passam as fronteiras de países. Hernan Bermudez apresenta a arte circense nos semáforos de Fortaleza e é um exemplo dessa itinerância da arte. Nascido e criado na Colômbia, encontrou na arte a possibilidade de conhecer novas culturas.
"Foi em Fortaleza que tive mais oportunidades de aprender arte", diz, explicando que as escolas de arte na capital são receptivas para estrangeiros. "Foi uma inclusão muito boa", afirma, lembrando dos cursos gratuitos feitos no Theatro José de Alencar e na Vila das Artes.
Hernan também compartilha da ideia de que a arte de rua serve para alegrar a rotina daqueles que a cruzam: "Às vezes, a pessoa não está tendo um bom dia e assistir por alguns segundos pode mudar o humor dela".