Logo O POVO+
Por diversos bairros e públicos, veja histórias de quem joga xadrez em Fortaleza
Vida & Arte

Por diversos bairros e públicos, veja histórias de quem joga xadrez em Fortaleza

Da realeza ao Barroso e, do Barroso, ao Curió; histórias de quem joga xadrez
Edição Impressa
Tipo Notícia Por
Jogadores da Biblioteca Comunitária Viva Barroso, onde jovens aprendem a jogar xadrez (Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Jogadores da Biblioteca Comunitária Viva Barroso, onde jovens aprendem a jogar xadrez

Em meio à realeza e ao alto clero do tabuleiro, estão algumas crias do Barroso e do Curió. Miguel Rodrigues Cardoso, 12 anos, é uma delas. Ele, que já era chegado ao mundo dos games, encontrou na Biblioteca Viva, do bairro Barroso, a oportunidade de aprender um jogo diferente: o xadrez. Saindo das telas para o tabuleiro, Miguel começou a jogar por volta dos dez anos. Interessado pelo jogo, a sorte do menino é que acabou entrando no efeito dominó do xadrez no bairro periférico.

Quando idealizou a biblioteca, não estava nos planos de Raphael Montag que o espaço virasse um clube de xadrez. "Acontece que existe a necessidade e a biblioteca era o único espaço que poderia ser entendido como um centro cultural na época". A ideia era fazer empréstimo de livros. Um dia, um desses jovens entrou lá com um material de estudo específico - um tabuleiro e um livro de xadrez.

Há quase dez anos, Raphael não manipulava rei, damas, peões ou torres. Aquela cena é que reacendeu nele a vontade de jogar. Viva não só no nome, a biblioteca foi ampliando suas atividades de acordo com as demandas e possibilidades levadas pelos frequentadores. O xadrez foi uma delas.

Eder Abner, 29 anos, foi um dos jovens responsáveis pelo projeto de formar novos jogadores. Cria do Barroso que hoje vive em Minas Gerais, virou uma peça crucial no efeito dominó. Motivado pela vontade de ter mais pessoas com quem jogar, ele começou a disseminar o que aprendeu com a jogadora experiente Vanessa Sousa na biblioteca e virou o monitor das aulas.

As regras e movimentos básicos, Eder captou de um livro, mas foi com a oficina de Vanessa que ele começou a dominar as estratégias. Em 2019, quando foi criado o programa municipal Bolsa Jovem, que contempla fortalezenses com um valor em dinheiro, a iniciativa engatou de vez. Eles se articularam para promover um clube de xadrez na biblioteca recebendo o benefício.

A partir desse mesmo ano, a "palavra do xadrez" se espalhou até o Curió. De monitor do clube de xadrez na Biblioteca Viva, Eder virou o professor do jogo na Livro Livre Curió, biblioteca comunitária idealizada por Talles Azigon. Um dos alvos da vez nesse efeito foi Juan Dantas Vieira, 23 anos.

Ele é autodidata - algo que não recomenda -, mas considera Eder como seu professor. Cria do Curió, hoje, Juan é professor de História. E foi justamente os aspectos históricos do jogo que o fisgaram para o tabuleiro. Das aulas que teve com Eder, lembra da primeira: a origem do jogo.

Como "historiador não tem muito pra onde correr", ele gosta de "coisas medievais". Para Juan, as torres são como muralhas, o bispo é uma peça que, fisicamente, o lembra da figura de um padre "carequinha" e fica posicionada ao lado do rei, representando a relação entre império e igreja. O xadrez não foi paixão à primeira vista. Ele só "teve um estalo" quando era adolescente. É que ele entendeu o objetivo do jogo - e não é matar o rei, mas prendê-lo.

Para além do tabuleiro

Os dois anos de dedicação ao xadrez foram suficientes para Juan Dantas carregar para a vida o pensamento estratégico que desenvolveu com a atividade. Ele não acreditava muito nessa conversa de que o xadrez desenvolve a criança e o adolescente, mas acabou descobrindo na prática que até hoje se utiliza dos princípios do xadrez para tomar decisões importantes para si.

Investir o próprio dinheiro, ter disciplina para desenvolver a espiritualidade e até escolher a área de estudo e carreira foram decisões influenciadas pelo jogo que, segundo ele, é "impossível não mudar um ser humano" que o pratica. "Bom, eu sou pobre e o curso de Psicologia é integral e não vou ter como trabalhar, então eu vou fazer um curso noturno que eu gosto, mas não amo". Foi mais ou menos essa a linha de raciocínio de Juan quando decidiu que iria se formar na graduação em História.

Quando contou aos amigos, com naturalidade, que decidiu adiar o sonho sob essa justificativa, a reação de espanto deles mostrou-lhe que o xadrez desenvolveu nele um pensamento estratégico que ele aplica na vida. Acreditando que a realização do sonho de tornar-se psicólogo há de chegar, Juan, agora historiador, leva consigo o princípio de viver "en passant".

Do francês "de passagem", "en passant" é uma regra do xadrez para capturar peões do adversário com o seu próprio peão. Ele avança apenas uma casa, enquanto o peão adversário passa ao lado avançando duas de uma vez e, ao fazê-lo, pode ser capturado. Foi essa regra que o ensinou a viver "no seu tempinho, sem pressa" e sem se preocupar com o tempo do outro.

O trabalho de doutorado de Wilson da Silva, pesquisador residente em Curitiba, "Raciocínio lógico e o jogo de xadrez: em busca de relações", mostra que a prática regular do jogo estimula o pensamento lógico e aumenta as sinapses. "A expertise desenvolvida por quem joga xadrez como esporte pode ser transferida para outros domínios da cognição humana", pontua o professor. Ele também ressalta os benefícios sociais da prática.

Aprender a analisar as situações antes de agir e cumprir regras são parte dessas consequências mencionadas por Wilson da Silva. É por isso que bibliotecas comunitárias como a Viva Barroso e a Livro Livre Curió investiram no xadrez. De acordo com Talles Azigon, o idealizador da biblioteca do Curió, a inserção do xadrez nas bibliotecas serve para mostrar aos jovens das periferias de Fortaleza que "eles são capazes de participar de movimentos e atividades que ultrapassam as cercanias da nossa comunidade".

Os jogos de tabuleiro ainda estão disponíveis na Biblioteca Viva, mas o clube de xadrez não está tão ativo quanto antes da pandemia, quando ocorria todos os sábados. A partir da iniciativa de Raphael Montag, responsável pela biblioteca do Barroso, jovens de periferias de Fortaleza foram inseridos ao mesmo jogo que, conforme Wilson da Silva, Albert Einstein e Machado de Assis jogavam.

Quando os instrutores Raphael Montag e Eder Abner repassaram seus conhecimentos sobre xadrez para jovens como Miguel e Juan, eles estavam transmitindo um conhecimento que existe há dois mil anos e que, conforme aponta o pesquisador e enxadrista Wilson da Silva, é uma "manifestação cultural da nossa espécie". À procura de companhia para jogar xadrez, Miguel Rodrigues Cardoso dá continuidade a essa manifestação cultural milenar na biblioteca, na rua e na escola.

Biblioteca Viva Barroso

  • Endereço: Avenida Capitão Waldemar Paula Lima, 680 - Barroso
  • Instagram: @bibliotecavivaoficial 

 

Biblioteca Livro Livre Curió

  • Onde: Rua George Sosa, 109 - Curió
  • Instagram: @livrolivrecurio e no site livrolivrecurio.com.br

 

O que você achou desse conteúdo?