Logo O POVO+
Escritora cearense reflete sobre voz de Maria Madalena em nova obra
Vida & Arte

Escritora cearense reflete sobre voz de Maria Madalena em nova obra

A escritora cearense Patrícia Bezerra lança em Fortaleza a obra "Entre Tempo - Reflexões Filosóficas Sobre o Evangelho da Grande Dama do Cristianismo"
Edição Impressa
Tipo Notícia Por
Patrícia Bezerra lança biografia de Mara Madalena (Foto: Acervo Pessoal)
Foto: Acervo Pessoal Patrícia Bezerra lança biografia de Mara Madalena

Dia 22 de julho é celebrado o dia de Maria Madalena. A data aprovada por papa Francisco em 2016 lança luz sobre o apagamento sistemático da importância ao longo dos séculos da "Apóstola dos Apóstolos". Nesta terça-feira, 22, a escritora e tradutora Patrícia Bezerra lança o livro "Entre Tempo - Reflexões Filosóficas Sobre o Evangelho da Grande Dama do Cristianismo", em Fortaleza.

A publicação analisa e contextualiza historicamente o Evangelho de Maria. O texto que foi excluído do Novo Testamento e teria sido escrito por volta do ano 120 d.C, na mesma época que o Evangelho de João, revela "um capítulo silenciado do cristianismo", conta a escritora cearense que já traduziu para português a obra "O Legado de Maria Madalena", de José Luis Giménez Rodriguez.

O livro "Entre Tempo - Reflexões Filosóficas Sobre o Evangelho da Grande Dama do Cristianismo" traz na íntegra os trechos recuperados do Evangelho de Maria e a autora analisa cada um deles com diversas referências filosóficas, contexto histórico em linguagem clara. "Um convite coletivo para lembrar quem somos, de onde viemos — e para onde, em essência, podemos voltar", diz.

Em entrevista escrita via WhatsApp, Patrícia fala sobre alguns dos pontos que a jornada de resgatar o Evangelho de Maria nos conduz. E esclarece: "Ao recuperar o papel de Madalena, recuperamos também o papel de todas as mulheres: como portadoras de autoridade e visão espiritual".

O POVO - Quem foi Maria Madalena? E como o Evangelho de Maria se tornou um capítulo do cristianismo?

Patrícia Bezerra - Em Mateus 26:13, Jesus declara que, onde quer que o evangelho seja pregado, também será contado o que Maria fez, para sua memória. Maria Madalena é, portanto, essa mulher eterna, que apesar de todas as incontáveis tentativas de silenciamento que sofreu, deixou uma marca tão poderosa na história humana que jamais poderá ser apagada. A tradição bíblica a reconhece como a primeira testemunha da ressurreição. Mas, para além da narrativa oficial, há textos antigos que a mostram como discípula proeminente, iniciada nos ensinamentos mais profundos de Jesus. Entre eles, está o chamado Evangelho de Maria, um manuscrito que, segundo estudos arqueológicos e históricos, foi redigido nos anos iniciais de nossa Era. Esse texto circulou entre comunidades cristãs primitivas e influenciou correntes espirituais que buscavam uma experiência interior da fé. Embora tenha sido excluído da composição final do Novo Testamento, o Evangelho de Maria revela um capítulo silenciado do cristianismo, onde a voz feminina — e especialmente a de Maria Madalena — anuncia uma sabedoria centrada na compaixão, na escuta interior e na liberdade da alma.

OP - Maria Madalena teve sua história por mais de mil anos deturpada. Por que isso aconteceu e quais têm sido os esforços para revisar sua identidade?

Patrícia - Maria Madalena foi alvo da maior campanha de difamação da história. A mulher que testemunhou e anunciou a ressurreição de Cristo — o grande evento fundante do cristianismo — foi relegada a papéis que jamais exerceu. Apagaram sua autoridade espiritual, silenciaram sua voz e a transformaram em símbolo de arrependimento, quando ela representava, na verdade, o saber, a coragem, a lealdade e a comunhão espiritual com o Cristo. Essa deturpação foi parte de um processo sistemático de exclusão do princípio feminino da estrutura religiosa e social. Sem o reconhecimento da inteireza da mulher, nos tornamos uma civilização desequilibrada, marcada pela violência extrema, pela destruição sistemática do planeta e pela dificuldade de acolher o outro — sinais claros de uma humanidade que adoeceu ao silenciar o feminino. Diante desse colapso, a figura de Maria Madalena ressurge em sua inteireza. Ela retorna não apenas como personagem histórica, mas como força arquetípica, expressão do princípio feminino que foi calado. O descobrimento do Evangelho de Maria — o único evangelho na história a carregar o nome de uma mulher — convida a humanidade a lembrar o que havia sido esquecido: que sem o feminino não há cura, não há compaixão, não há inteireza. Em todo o mundo, pessoas percorrem rotas de peregrinação em sua busca, leem livros, assistem a filmes, investigam sua história e tentam entender os mistérios que envolvem Maria Madalena. Revisitar sua verdadeira história é, antes de tudo, um ato de restauração — da memória, da dignidade e da alma humana.

OP - O livro fala que o Evangelho de Maria expande e preenche lacunas dos evangelhos aceitos pela ortodoxia. Do que se trata essa expansão?

Patrícia - Os evangelhos canônicos nos revelam aspectos fundamentais da vida de Jesus, mas há silêncios abissais nos textos bíblicos. O Evangelho de Maria, assim como outros textos descobertos a partir do século XVII, nos oferece fragmentos dessa memória esquecida. Ele lança luz sobre acontecimentos posteriores à ressurreição e nos apresenta um Cristo mais íntimo, mais interior, profundamente conectado à alma humana. Esses textos não se colocam em oposição aos evangelhos canônicos; ao contrário, eles constroem juntos. Os evangelhos aceitos pela ortodoxia são como os tijolos de uma antiga construção — firmes, essenciais, estruturais. Já os apócrifos (que significa "aquilo que esteve escondido, não revelado"), como o Evangelho de Maria, são a argamassa sutil que preenche os intervalos, conecta os blocos e dá coesão ao edifício. Sem eles, a parede permanece incompleta e cheia de vazios. Com essa argamassa recuperada, podemos, enfim, reconstruir um edifício espiritual mais inteiro — uma morada capaz de acolher a diversidade da experiência humana, onde o Cristo que fala ao coração e a mulher que o compreendeu possam, ambos, ter voz.

OP - Em um dos textos Jesus fala que não há pecado. O que devemos entender sobre essa afirmação e como isso transforma moralmente os ensinamentos ortodoxos?

Patrícia - A mensagem de Jesus é profundamente libertadora. Mesmo nos evangelhos canônicos, sua ênfase está sempre no amor, na compaixão e no perdão. No Evangelho de Maria, essa libertação vai ainda mais longe: Jesus afirma que o pecado não existe por si só, mas nasce quando nos afastamos de nossa verdadeira natureza — que é, em essência, boa. Esse ensinamento desloca completamente a moral baseada no medo e na culpa. Não somos o mal que precisa ser punido ou resgatado, mas seres bons em sua origem, chamados a lembrar quem somos. É uma ética do autoconhecimento e da liberdade: somos responsáveis não diante de um tribunal externo, mas diante da nossa própria consciência. Reencontrar o divino em nós - e não fora - é o caminho.

OP - O livro cita as aproximações do Evangelho de Maria com as ideias filosóficas de Platão. Quais são as aproximações?

Patrícia - No livro "Entre Tempos — Reflexões Filosóficas sobre o Evangelho da Grande Dama do Cristianismo", busco aproximar o Evangelho de Maria de diversas tradições filosóficas, entre elas o pensamento de Platão, que exerceu profunda influência sobre a espiritualidade dos primeiros séculos. Dentre os muitos pontos de contato, o mais significativo talvez seja a teoria platônica do mundo das ideias — o mundo ideal, invisível, ao qual nossa alma pertence por natureza. No Evangelho de Maria, vemos a alma empreendendo uma jornada de retorno, vencendo os poderes que tentam detê-la no mundo inferior, até reencontrar sua origem luminosa. Essa trajetória ecoa fortemente a visão platônica: a alma como exilada em um mundo material imperfeito, mas chamada a recordar sua verdadeira morada — um reino de plenitude, sabedoria e liberdade. Assim como em Platão, também aqui o conhecimento de si é o primeiro passo para a libertação. Maria, ao vencer os poderes e retornar ao lugar de onde veio, mostra esse caminho não só para si, mas para todos nós. Sua jornada espiritual não é apenas pessoal: é um convite coletivo para lembrar quem somos, de onde viemos — e para onde, em essência, podemos voltar.

OP - Você escreve que é necessário receber o Evangelho de Maria "sem o pó de nossos antigos preconceitos". O que é mais desafiador nesse processo? De quais preconceitos você se refere?

Patrícia - O mais desafiador é abrir mão da herança de culpa e submissão que foi moldada ao longo dos séculos por uma construção ortodoxa que nos ensinou a duvidar de nossa própria bondade. Fomos acostumados a nos enxergar como indignos, como pecadores por natureza, sempre dependentes de mediações externas para alcançar qualquer possibilidade de redenção. É fácil, nesse modelo, terceirizar a salvação — entregá-la às mãos de uma autoridade, de uma doutrina, de um julgamento fora de nós. O Evangelho de Maria rompe com essa lógica. Ele nos convida a um mergulho radical na liberdade e na responsabilidade. A salvação não é algo que nos vem de fora, mas o fruto de um reencontro interior, de um esforço consciente de lembrar quem somos e de caminhar com lucidez por entre as sombras. É por isso que receber esse evangelho exige desaprender — desaprender os medos, os pesos, os véus que nos ensinaram a carregar. É preciso varrer o pó dos antigos preconceitos para que possamos enxergar com olhos limpos essa outra possibilidade de espiritualidade: uma fé que liberta, que reconhece nossa luz e nos devolve ao centro de nós mesmos.

OP - O que o Evangelho de Maria pode mudar no curso da história do cristianismo?

Patrícia - O Evangelho de Maria nos convida a uma mudança de paradigma radical: deixar de nos ver como seres essencialmente maus e condenados, e começar a nos reconhecer como bons em nossa origem — capazes de nos responsabilizar pela própria transformação . Ele desloca o eixo da salvação para dentro de nós: não como um prêmio que vem de fora, mas como um processo de reconexão com aquilo que sempre esteve em nós. O caminho para Deus, aqui, é o caminho para dentro. Esse evangelho também recoloca Maria Madalena no centro da tradição cristã — não como coadjuvante, mas como mestra, aquela que compreendeu profundamente os ensinamentos de Jesus e os transmitiu à humanidade. Sua presença abre espaço para o retorno do feminino à estrutura espiritual do mundo. Ao recuperar o papel de Madalena, recuperamos também o papel de todas as mulheres: como portadoras de autoridade e visão espiritual. Se compreendido e acolhido de verdade, o Evangelho de Maria pode inaugurar um cristianismo mais maduro, mais amoroso e mais justo — onde não se obedece por medo, mas se caminha por consciência. Onde homens e mulheres se reconhecem como iguais diante do divino. Onde Deus habita não no alto de um trono, mas no mais íntimo de cada ser.

OP - O que o Evangelho de Maria mudou na sua vida?

Patrícia - O Evangelho de Maria me aproximou ainda mais de Jesus. Ao ler as palavras dele e de Maria Madalena no texto, compreendi que, quanto mais me encontro em minha própria humanidade, mais me aproximo de Deus. A jornada humana não é um castigo — é um caminho sagrado, uma oportunidade de crescimento, de consciência e de amor. Maria Madalena é para mim uma guia amorosa. Assim como Jesus, não é um ícone a ser adorado à distância, mas um exemplo a ser seguido: uma mulher poderosa, corajosa e resiliente, que encarnou o evangelho do Cristo. Segui-los é lembrar quem somos, é caminhar com inteireza, é ousar trazer o Céu para Terra.

 

Lançamento do livro "Entre tempos — Reflexões Filosóficas sobre o Evangelho da Grande Dama do Cristianismo"

Quando: terça-feira, 22,

às 18h30min

Onde: Livraria Leitura - Shopping Iguatemi Bosque

(av. Washington Soares, 85 - Edson Queiroz)

Quanto: R$ 59,90

(valor da obra)

Entrada gratuita

Mais informações:

@guardia_editora

O que você achou desse conteúdo?