Em 6 de março, o Vida&Arte publicou o artigo "Oscar: falta de letramento audiovisual é gargalo na escola brasileira", de autoria do professor Bruno Marques. Em seu texto, ele aproveita os holofotes de "Ainda Estou Aqui", filme de Walter Salles vencedor do Oscar, para propor reflexões sobre o audiovisual nacional.
O professor cita a "eterna luta em ser autossustentável, ou pelo menos sair da eterna condição de formação de plateia". Ele destaca a educação básica como um pilar para a tal formação de plateia em meio a uma visível "falta de letramento audiovisual" atravessada pelo Brasil.
A preocupação de Bruno ilumina uma discussão que não é recente, mas que segue reverberando entre pesquisadores e profissionais da educação: como inserir o audiovisual no ambiente escolar. A proposta não é sedimentada em achismos ou movimentos aleatórios.
Embasada, ela evidencia benefícios como estímulo ao reforço de identidades e ampliação de potenciais criativos. No Brasil, a Lei 13.006/2014 obriga a exibição de filmes de produção nacional por, no mínimo, duas horas mensais como componente curricular integrado à proposta pedagógica da escola.
Mas esse processo é cumprido e respeitado no Ceará? Entre iniciativas pontuais de acesso e produção audiovisual e oportunidades de aprendizagem por meio de escolhas das Unidades Curriculares Eletivas (UCE), o assunto provoca reflexões sobre medidas estruturadas para o campo.
Com mestrado em Ensino de História e professor da rede estadual de educação, Bruno é movido pela compreensão de que o contato com o audiovisual consegue trazer benefícios aos alunos.
Não à toa, sua dissertação ocorreu na perspectiva da produção audiovisual com o ensino de História. Como realizador, desenvolveu o documentário "Misturados", no qual narra a trajetória de alunos indígenas em escolas não-indígenas.
Para Bruno, entre os pontos essenciais associados ao audiovisual na educação estão aspectos como identidade, narrativa e memória. Como explica, a "identidade" ocorre a partir das várias histórias que podem ser conversadas e trazidas para a escola pelos próprios alunos, que conseguem se ver nas telas por meio dessa produção.
Quanto à "narrativa", são apresentadas outras formas de contar histórias (como ficção ou documentário). A "memória" é enfatizada quando se depreende que "uma das funções sociais da escola é dar ao aluno o que foi construído historicamente pela sociedade". Isso pode ser feito a partir do cinema.
Na avaliação do docente, apesar da Lei 13.006/2014 ser valiosa, ela "não existe na prática" e é "extremamente inoperante". "Nas escolas da educação básica no Ceará há um desconhecimento em relação à lei e, mesmo quando se conhece, há pouca operação dos professores de trabalhar o audiovisual de forma pedagógica. Assim, é importante não o utilizar somente como entretenimento, mas como um processo de construção pedagógica", diz.
Assim, defende o letramento audiovisual para os professores a partir de formações e oficinas, como oferecidas no Centro de Formação e Desenvolvimento para Profissionais da Educação (FormaCE) e também ao longo do processo de graduação dos docentes.
Apesar de reconhecer a importância de iniciativas como o festival "Alunos que Inspiram" (criado pela Secretaria da Educação do Ceará para valorizar a produção artística estudantil e com o cinema em uma das categorias), defende operação estruturada e contínua. Além disso, percebe a necessidade de repositórios com produções nacionais.
As mobilizações em torno do tema não são isoladas. Em setembro de 2023, sob autoria do deputado federal Idilvan Alencar (PDT), hoje secretário de educação de Fortaleza, foi apresentado o projeto de lei 3342/2023, que institui a Política Nacional do Audiovisual nas Escolas de Ensino Médio do Interior do Brasil.
Outra proposta é o Programa Nacional de Cinema na Escola, que visa integrar o cinema às práticas pedagógicas nas escolas brasileiras, com foco na produção nacional. A iniciativa é idealizada pela Rede Latino-Americana de Cinema e Educação (Rede Kino) e busca construir nas escolas um ambiente de reflexão sobre o cinema.
A proposta é estudada pelo Ministério da Cultura (MinC) e pelo Ministério da Educação (MEC), segundo a cineasta, professora e pesquisadora Clarisse Alvarenga. Ela integra a Rede Kino e faz a curadoria dos encontros anuais da Kino realizados na Mostra de Cinema de Ouro Preto (Cine OP).
Ao longo de sua trajetória, Clarisse construiu como cineasta atuação mais situada no ambiente escolar, promovendo oficinas e mostras. Sua pesquisa envolve processos poéticos e pedagógicos realizados com coletivos e cineastas ameríndios.
"A relação entre fazer e ensinar cinema é muito próxima, como se fossem duas faces da mesma moeda. Quando você ensina, você também acompanha os processos de criação audiovisual das pessoas, então também está envolvida nessa construção", diz Clarisse.
Como Bruno Marques, ela percebe a necessidade da oferta de formação audiovisual aos professores para o planejamento de atividades com o cinema, bem como condições e equipamentos para exibição de filmes. Ela, porém, destaca: "Não adianta só colocar sinal de internet nas escolas. É preciso pensar a qualidade dos filmes que vão ser mostrados, da formação dos professores e das pedagogias".
Em um mundo "inteiramente tomado por imagens em movimento", a exemplo do que é exibido nas redes sociais, torna-se mais importante apresentar aos alunos contextos para compreenderem como essas imagens são construídas. Para Clarisse, o cinema pode ser uma dessas pontes para que "os jovens não se percam em meio aos estímulos".
"O conhecimento sobre a linguagem audiovisual é fundamental hoje para a formação de um cidadão emancipado, autônomo e que possa se relacionar com as imagens de forma mais independente, sem se colocar como um mero espectador do que está sendo vendido para ele pelas redes sociais. O cinema provoca a ampliação do repertório", elucida.
Ela acrescenta a relevância de destacar a diversidade nas produções, com aberturas a narrativas de povos originários, negros e mulheres: "Queremos que o cinema seja uma experiência transformadora, crítica e emancipadora para esses jovens que precisam se expressar no mundo de imagens e sons".
Compartilha Animação
No bairro Aldeota, em Fortaleza, uma rua sem saída abriga uma casa cujas possibilidades são infinitas. Nas grades brancas da residência, um pôster sinaliza o projeto capaz de expandir horizontes para 20 estudantes de escolas públicas. Para muitos, é o primeiro contato com o audiovisual.
Eles produzem um curta-metragem de animação a ser exibido na noite de abertura do 35º Cine Ceará - Festival Ibero-americano de Cinema, realizado em setembro. Essa é a proposta do Compartilha Animação, voltado a estudantes da rede pública de Fortaleza.
A iniciativa é desenvolvida pela Enel Ceará em parceria com a Associação Cultural Cine Ceará e promovida em duas etapas. A primeira, em junho, apresentou a técnica do cinema de animação a 100 alunos de cinco escolas dos bairros Vicente Pinzón, Passaré, Messejana, Vila União e Granja Lisboa. Em julho, 20 alunos foram selecionados para a segunda etapa.
Nesta fase, os participantes criaram roteiro, personagens e cenário para produzir a animação quadro a quadro do curta, cujo tema é "Segurança da População: Comportamento e Uso da Energia Elétrica". Foram aulas teóricas e práticas, com acesso a equipamentos e softwares utilizados por estúdios cinematográficos.
O POVO acompanhou uma manhã de produção do curta-metragem. Inicialmente previsto para ocorrer de 7 a 11 e de 14 a 18 de julho, o processo foi acelerado devido à dedicação dos estudantes, como compartilha o cineasta Telmo Carvalho, especialista em Cinema de Animação e orientador.
"Quando eles têm a oportunidade de trabalhar o primeiro curta, ficam realmente entusiasmados, de fazer o melhor filme da vida deles. Isso é um reforço que vem no sentido de ampliar também o cinema de animação cearense. Estamos com seis produções de longas de animação. Requer mais pessoas capacitadas, porque animação não é só o movimento do desenho. Há a arte, a composição, a edição e a trilha sonora", explica.
Como em uma linha de montagem, há divisão em grupos de tarefas. Há os animadores, que fazem os desenhos; a equipe de "clean up", responsável pela limpeza dos traços; e a arte final, que é a pintura. Posteriormente, serão adicionados os efeitos e a trilha sonora.
Segundo o cineasta, neste trabalho são produzidos 24 desenhos para cada segundo de animação. Em um curta de até três minutos, podem ser feitos até 4.320 desenhos. "Em cinco dias de trabalho, tivemos basicamente 80% do filme pronto", destaca.
No projeto estão alunos que vão dos 10 anos aos 19 anos. "O processo de animação é novo, eu só fazia desenhos 'parados'. O projeto está me ajudando a ter mais noção de movimento", indica Gabriela Nogueira, 16 anos, integrante da equipe de animação.
"Vim para o projeto para ter algo para fazer. Achei interessante, porque tenho que fazer um desenho igual ao original do artista. Estou fazendo meu desenho, mas, ao mesmo tempo, estou deixando a raiz do desenho do artista original. Se aparecer oportunidade futura (na animação) vou tentar", compartilha João Gomes, 19 anos.
Para Laís Rabelo, 11 anos, é uma experiência especial. Ela integra a equipe de pintura. "Eu tinha o costume de pintar e eu adoro pintura. Fico muito feliz de poder conseguir participar do projeto". "É um conhecimento para levar para a vida", indica Luana Sampaio, 12 anos, da equipe de traço.
Telmo Carvalho pontua a relevância do contato de estudantes com o audiovisual: "É uma forma de mudar um pouco a maneira tradicional da educação. Sempre falo para os alunos: 'Se vocês têm um trabalho de ciências para entregar, por que não fazem um filme sobre o tema e vocês mesmos animam?'. Acho que isso enriquece muito a educação. A parceria é muito benéfica".
Curtindo no Liceu
O contato com o audiovisual na Educação Básica pode ocorrer também a partir de iniciativas de professores. É o caso de Janaína Bacelo, que trabalha na EEM Liceu de Messejana, em Fortaleza. Ela criou o Festival de Curtas-Metragens Curtindo no Liceu.
Formada em Letras e Artes Cênicas, a docente leciona Artes e trabalha com "letramentos em outras linguagens artísticas". Assim, estimula os alunos a compreenderem as especificidades de cada área para "se tornarem leitores melhores". Uma das linguagens estudadas é o cinema.
Na sala de aula, são três momentos. De início, analisa o objeto a partir da linguagem. No caso do cinema, como a aula dura 50 minutos, dá preferência aos curtas-metragens. Há discussões sobre outros aspectos, como enquadramento e luz.
O terceiro momento ocorre quando propõe aos estudantes se expressarem a partir da linguagem. Em 2024, sugeriu aos alunos se comunicarem a partir de curtas-metragens, fossem de ficção, documentário ou animação.
"Foram feitos cerca de 42 curtas. Fiquei surpresa com o engajamento e com a quantidade de material produzido. Achava que algumas obras eram tão interessantes que mereciam um público maior. Foi aí que tive a ideia de propor um festival de curtas-metragens da escola", explica.
Um júri formado por professores avalia e premia as melhores obras em diferentes categorias. Neste ano, pretende promover a segunda edição. Os alunos gravam com a câmera do celular e na escola.
"Percebo que eles dominam de forma quase intuitiva a parte técnica, porque editam muitos vídeos, principalmente para o Instagram e o TikTok. Procuro trabalhar a questão estética, não só captação. Como posso contar a história? Se é um documentário, não precisa exclusivamente ficar com a câmera parada, por exemplo. Então, experimentamos juntos e, durante as orientações, conversamos sobre os materiais", explica.
Há desafios. Por não ser uma escola de tempo integral, as gravações precisam ocorrer no contraturno das aulas, sendo necessário convencer o aluno a permanecer na instituição para fazer as filmagens.
Outro cenário é a restrição do uso do celular nas escolas. Para isso, Janaína comprou coletes e fez crachás a fim de sinalizar que os estudantes estavam usando seus smartphones para fins didáticos.
Janaína avalia que o contato dos estudantes como a produção audiovisual ajuda na expressão da subjetividade, ainda mais em uma "sociedade extremamente materialista, em que as pessoas são apegadas ao visível e a subjetividade fica cada vez mais distante".
"A escola pública, mesmo com todas as limitações e dificuldades, é um espaço possível de experimentar e produzir. Estamos em uma rotina, principalmente via redes sociais, com muita reprodução de conteúdo. Ter a experiência de produzir algo é bem interessante", declara a professora de Artes.
O cinema na rede pública cearense
O POVO entrou em contato com a Secretaria da Educação do Ceará (Seduc) e com a Secretaria Municipal de Educação de Fortaleza (SME) para compreender como ocorre a oferta de cinema e audiovisual nas instituições de ensino tanto da Capital quanto de outros municípios cearenses.
Os órgãos foram questionados se as escolas têm exibido pelo menos duas horas por mês de produções audiovisuais brasileiras e, se sim, quais são os critérios para escolha das obras; se há acompanhamento das pastas para saber se as escolas estão cumprindo a Lei 13.006/2014; se os professores têm tido formação para a prática; e quais são as ações para promover o cinema e o audiovisual brasileiro aos alunos.
A Seduc informou que tem implementado no currículo do Tempo Integral novas oportunidades de aprendizagem por meio de escolhas das Unidades Curriculares Eletivas (UCE), nas quais há eletivas "que estimulam e desenvolvem a dimensão cultural". Entre as unidades disponibilizadas estão algumas relacionadas ao audiovisual e ao cinema.
A pasta cita UCEs como Literatura Através do Cinema, História e Cinema, A Sociologia vai ao Cinema, Geografia e a Sétima Arte. "As UCEs citadas têm como finalidade utilizar o cinema como ferramenta de ensino a fim de possibilitar uma aprendizagem diversificada e lúdica, além de crítica", pontua a Seduc.
Conforme a secretaria, são 40 horas/aula por semestre, incluindo mostra de filmes ou cenas relacionadas aos conteúdos vistos em sala. Geralmente há debate anterior à exibição e os professores têm material específico e "algumas formações". Segundo levantamento da Seduc, mais de 3.400 alunos tiveram acesso aos conteúdos vistos em sala de aula com relação ao audiovisual/cinema.
"A Seduc segue implantando ações no sentido de ampliar essa oferta nas escolas que funcionam em Tempo Integral. Mais de 77% da rede funciona com essa modalidade", informa.
A Secretaria Municipal de Educação de Fortaleza também se manifestou diante dos questionamentos:
"Em conversa com profissionais da educação, hoje são exibidos filmes nas escolas municipais. Durante o ano letivo, os professores explanam sobre a importância do cinema e do audiovisual brasileiro, mas não existe, por enquanto, um acompanhamento".
"Sem sair do meu lugar"
Em todas as oportunidades possíveis, realizei a exibição do longa "Lisbela e o Prisioneiro" (2003) com meus alunos da educação básica. Dirigido pelo cineasta Guel Arraes, o filme tem 1h46min e mostra o envolvimento romântico da protagonista com o Leléu. A obra, baseada em livro homônimo de Osman Lins, é uma delícia!
Nos primeiros instantes projetados, os alunos costumavam equilibrar o humor entre as similaridades do tédio e da apatia. Depois, com o avançar da narrativa, começavam as gargalhadas em plena sala de aula.
Claro, muitos são os obstáculos até chegar ao momento de ganhar a turma com o filme. Além da falta de interesse inicial da juventude, existe a dificuldade de equipamento para reprodução. Na escola pública, tudo falta: internet, notebook, datashow, caixa de som. Certa vez, desligamos o bebedouro para conseguir utilizar uma tomada funcional. Com isso, já vão perdidos 20 minutos de aula. Mas o desgaste é compensado quando os estudantes começam a entender e a reconhecer suas próprias histórias a partir do cinema. A memória destes momentos me faz sentir falta do chão da sala de aula.
Audiovisual é emoção, é transposição didática, é transdisciplinaridade, é conexão. Nas telas, encontramos os outros e a nós mesmos. Não são todos os professores que conseguem enfrentar a histórica falta de estrutura das nossas unidades de educação básica, mas, para aqueles se aventuram, minhas mais solenes congratulações..
Para quem desejar, atualmente, "Lisbela e o Prisioneiro" está disponível na plataforma de streaming Netflix.
*Isabel Costa é professora e jornalista