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"Ensaio Sobre a Cegueira", de Saramago, completa 30 anos em jogo entre utopia e distopia
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"Ensaio Sobre a Cegueira", de Saramago, completa 30 anos em jogo entre utopia e distopia

Publicado há 30 anos, "Ensaio sobre a cegueira", do Nobel de Literatura José Saramago, é um convite a relembrar as utopias
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. (Foto: COMPANHIA DAS LETRAS/DIVULGAÇÃO)
Foto: COMPANHIA DAS LETRAS/DIVULGAÇÃO .

Vivemos uma época em que algoritmos buscam ditar nossos desejos e aspirações. Guerras são travadas, ao mesmo tempo, em campos de batalha e telas de celulares. Encurralamo-nos entre crises climáticas, inteligências artificiais e a solidão hiperconectada. Noutros tempos, nos questionávamos como construir um futuro melhor. Hoje, mesmo que nem sempre pronunciada, ouvimos outra pergunta: ainda acreditamos que um futuro é possível?

O romance "Ensaio sobre a cegueira", de José Saramago, nos inquieta com essa questão há 30 anos. O livro, que traz um enredo pós-apocalíptico em que uma misteriosa cegueira branca assola os habitantes de um país, conversa com as tradições da literatura utópica e distópica de um muito único para refletir sobre um sentimento humano básico — a esperança.

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De um lado, a tradição literária utópica tem clássicos como "Utopia" (Thomas More), "A cidade do sol" (Tommaso Campanella) e "Nova Atlântida" (Francis Bacon), obras que trazem o relato de viagem a uma ilha "perfeita", onde tudo é milimetricamente pensado. Do outro, temos a literatura distópica, que muitas vezes mantém conexão com a ficção científica e a pós-apocalíptica.

Nela o autor não compactua com a sociedade descrita, apresentada como um projeto totalizante, fundado no medo e na opressão. "1984", de George Orwell, e "Admirável Mundo Novo", de Aldous Huxley, são exemplos.

No "Ensaio", o jogo com a utopia e a distopia se estabelece pelas relações feitas entre as experiências históricas remotas e recentes e pela tentativa de constituição de comunidades fundamentadas na solidariedade e na autonomia.

Ensaio Sobre a Cegueira: relembre enredo

O grupo de cegos que se une no primeiro dormitório do manicômio, núcleo de personagens que acompanhamos durante todo o romance, é uma comunidade prototípica — um "mundo desconhecido", uma ilha, como observa o narrador.

Porém essa primeira tentativa de organização coletiva falha, porque o manicômio, como representação hiperbólica de tudo que corrói as relações humanas no mundo contemporâneo, já não possibilita, com os valores que o sustentam, outra possibilidade de ser.

Ali nunca se havia pensado em futuro, reflete a "mulher do médico", única personagem que não chega a cegar. Diante dessa constatação, ela decide, num ato de desespero, pôr fogo em camas que tapavam a saída do dormitório de seu grupo, o que acaba por desencadear um incêndio e dar fim ao manicômio.

O fogo é usado na literatura como elemento metafórico de ruptura. Como observa o escritor cearense Linhares Filho, este incêndio "significa baliza entre duas situações, mudança de estrutura ou recomeço".

Já fora do manicômio, a cidade fracassa como possibilidade de comunidade, pois ela representa um modelo de sociedade falido (o capitalista). Em entrevista à revista "Bravo!" em 1999, o escritor confessa que seu romance "é sobre tudo, a podridão, a sujeira, o lixo, o homem, o ser humano conduzido à degradação suprema. Não é nada que a gente não conheça".

No desenrolar do livro, as personagens continuam a ser desafiadas a imaginar essa nova sociedade. O "marido da mulher do médico" nota que "o mal é não estarmos organizados, devia haver uma organização em cada prédio, em cada rua, em cada bairro, Um governo, disse a mulher", ao que ele corrige: "Uma organização, organizar-se já é, de uma certa maneira, começar a ter olhos".

Noutro momento, ainda na busca por onde se fale de organização, a mulher e o marido se deparam com uma ágora onde se profere todo tipo de discurso do nosso mundo conhecido, desde "o fim do mundo" até a "a visão do sétimo dia", da "castração sem dor" à "cegueira voluntária, o pensamento convexo, o côncavo, o piano, o vertical, o inclinado, o concentrado, o disperso, o fugido, a ablação das cordas vocais, a morte da palavra". A tudo isso, ela responde ao marido: "Aqui não há ninguém a falar de organização".

O livro termina e não chegamos a encontrar alguém que fale. E isso não é um problema. Porque foi assim que Saramago construiu seu romance: passeando entre utopia e distopia sem um projeto definido. A utopia se desenvolve a partir de um hiato entre a história e o projeto utópico, ainda não experienciado. A distopia, em vez disso, dá continuidade ao processo histórico que vivemos, a partir de tendências negativas capazes de nos conduzir a sociedades perversas. O "Ensaio" se nutre dessas duas vertentes.

O que Saramago diria de um tempo que, mesmo sem epidemia de cegueira branca, escolhe diariamente não ver as desigualdades, as mentiras e o vazio de sentido? Ele foi um iconoclasta. Talvez seu romance, 30 anos depois, seja menos um alerta e mais um diagnóstico: sem utopias, caminhamos tateando em direção ao abismo. Por isso nos convida a fechar os olhos, mas também a manter os ouvidos atentos aos sons de um futuro coletivo melhor. Escutemos!

 *Análise feita pelo redator publicitário Wilton Cavalcante, graduado em Letras e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com dissertação dedicada à obra de Saramago

Sobre o autor

É graduado em Letras e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com dissertação dedicada à obra de José Saramago. Atua como redator publicitário.

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