Há poucos anos, se tornou popular nas redes sociais a frase "colecionando momentos", usada por pessoas que se referem à valorização de antigas e novas experiências de vida. Tradicionalmente, no entanto, o termo "coleção" se refere a itens materiais reunidos pelos humanos conforme relação que estabelecem entre si.
Para Rafael Ayres, psicólogo, psicanalista e filósofo de formação, o ato de colecionar é historicamente comum para os seres humanos e acontece por três razões principais: afetividade, consumo e ciência.
"O hábito de colecionar sempre esteve presente na trajetória da humanidade. Se a gente fizer um resgate histórico, antropológico ou até sociológico, vai perceber que colecionar é algo que acompanha o ser humano há muito tempo", expõe o pesquisador.
Sob uma perspectiva individual, ele analisa: "Qual o sentido que determinado objeto tem para uma pessoa? Pode ser um chaveiro, uma boneca, qualquer coisa. O importante é entender o significado que aquilo carrega. É interessante observar que, muitas vezes, o colecionador busca, por meio dos objetos, uma forma de simbolizar ou elaborar uma história, uma memória".
"É muito comum ouvir pessoas dizendo que começaram a colecionar algo ainda na infância ou na adolescência. E essa lembrança vem sempre carregada de afeto. Eles ganham um valor simbólico e representam histórias e projeções, sejam elas ligadas ao passado ou até mesmo ao futuro", acrescenta.
Rafael considera ainda valores capitalistas, de incentivo de mercado, somados à cultura de coleção. Segundo ele, as propagandas, principalmente a partir dos anos 2000, impulsionam um novo mercado para crianças e jovens: "Isso girava em torno de campanhas de marketing, de estímulos do mercado. É impossível não considerar a influência do mercado e da lógica de consumo"
"Além disso, existe uma dimensão ligada à ciência. Um exemplo interessante é Aristóteles, o filósofo da antiguidade clássica. Ele foi tutor de Alexandre, o Grande. E Alexandre, durante suas expedições, enviava para Aristóteles espécies de animais e plantas. Aristóteles colecionava esses espécimes e os estudava. Ou seja, havia aí uma articulação entre colecionismo e conhecimento científico", adiciona o pesquisador.
Mais de 500 Barbies
Priscila Cavalcanti e a boneca Barbie dividem algumas semelhanças: além de loiras, possuem a mesma idade e a mesma crença de que podem conquistar o mundo. Para a colecionadora, que já conta com mais de 500 itens em seu acervo, a boneca é uma ferramenta de transformação social. "Ela é formadora de opinião", acredita.
A relação das duas começou com a ideia de montar uma festa de 50 anos para si, que contaria com 50 bonecas para um chá da tarde. Priscila - hoje com 66 anos - até buscou por uma "Suzie", brinquedo que lhe era mais familiar, mas acabou escolhendo a Barbie para fazer parte de sua celebração.
"A festa foi um sucesso. Mas, no dia seguinte, veio a pergunta: o que fazer com 50 Barbies? Foi aí que surgiu a ideia de fazer uma ação social. Comecei a visitar a Casa de Jeremias, que acolhe crianças à espera de adoção. Depois, há cerca de 8 anos, passei a colaborar com o Lar Amigos de Jesus, que cuida de crianças com câncer vindas do interior do Ceará", explica Priscila, que começou há 16 anos sua coleção.
No repositório, exposto anualmente no Shopping Benfica, há edições raras da Barbie, incluindo a primeira boneca lançada pela Mattel, em 1959 — sua favorita.
A coleção está tão presente na vida de Priscila que elas se tornaram verdadeiras companheiras. Desde a decoração do seu casamento até combinar roupas com a Barbie, a colecionadora vive um universo compartilhado com a boneca. Na exposição que ela monta, esses registros pessoais também são exibidos. "No começo me chamavam de louca (risos), mas hoje todos da minha família estão comigo", celebra.
"Eu sou o Batman"
Tradicionalmente, a identidade secreta do Batman não é revelada. Mas, quando o contexto são as aulas de geografia, André Luis Cavalcante, 59 anos, assume a sua "batpersonalidade". O "alter ego" do professor surgiu no ano 2000, com a popularidade da trilogia nos cinemas e a associação que os próprios alunos faziam dele, trajado com camisas do personagem.
"Algumas coisas que o professor André não podia falar diretamente, o Batman podia. Quando eu pedia para o aluno guardar o celular, por exemplo, a reação era outra dita pelo Batman. O aluno guardava o celular sorrindo. A ação era mais eficaz. Então, muitas coisas que o Batman fazia em sala, o professor André não conseguia fazer com o mesmo efeito", explica André, com voz grave e intimidadora, ao O POVO.
A interpretação ganhou fama nas escolas onde trabalhava e os alunos e pais de alunos passaram a lhe dar presentes relacionados ao morcego. "A minha coleção é bem diferente de tudo que você já viu. Não se trata de gastar dinheiro ou ir atrás de itens raros. Tudo o que tem no 'quarto do Batman' foi presente dos meus alunos. Cada boneco, miniatura ou acessório carrega uma história de carinho, reconhecimento e respeito. Por isso, minha coleção tem um valor imensurável para mim", diz.
"São mais de 300 itens. Tem bonecos, carrinhos, vários Batmóveis, miniaturas… Tudo presente dos alunos ao longo do tempo. Um carrinho foi de um, um boneco foi de outro. Cada item veio com uma história", esclarece o docente, que tem um quarto de sua casa destinado ao Batman — a Batcaverna.
Para ele, incorporar o Batman foi uma forma de causar interesse em suas aulas e ganhar mais respeito dos estudantes. Na pandemia, o universo do personagem se tornou o plano de fundo da aulas, como estratégia para conectar mais alunos à tela.
"O Batman, assim como na sala de aula, não tem superpoderes. Mas tem um coração enorme e uma mente afiada. E é isso que quero que meus alunos levem: coragem para enfrentar o mundo com conhecimento, porque o conhecimento é uma arma poderosa que às vezes a gente não valoriza o suficiente", destaca.
Nas aulas de "batgeografia" do professor André, o lúdico perde espaço para somente uma coisa: o aprendizado. "É algo que ninguém pode tirar de você. E é exatamente isso que o mercado de trabalho exige hoje. Pessoas com conhecimento vencem os desafios do cotidiano. E é isso que os pais e mães desejam para seus filhos", conclui.
Monalisas
Entrar na casa de Veridiana Brasileiro (à esquerda na foto) é uma experiência imersiva sem volta: a grandiosidade da coleção artística da médica otorrinolaringologista faz refletir sobre a diversidade de técnicas e materiais que compõem uma obra de arte. Isso porque, desde criança, ela desenvolve o hábito de colecionar e já reuniu acervo de inúmeros objetos.
"Eles eram uma companhia. Eu nunca me sentia só, nunca estava sem algo para fazer. Tinha sempre aquela curiosidade sobre o que viria depois, o que eu ainda poderia conquistar, adquirir. Sempre foi algo muito instigante para mim", conta.
Veridiana tem uma coleção de quase 800 pinturas e esculturas inspiradas em "Monalisa", quadro de Leonardo da Vinci exposto no Museu do Louvre, em Paris. No acervo, ela contabiliza a participação de aproximadamente 500 artistas de outros estados e outras nacionalidades. Há, também, expostos com muito carinho, peças originais e encomendadas de 250 artistas, artesãos e pintores cearenses.
"Quando vi a 'Monalisa' no museu pela primeira vez, fiquei impactada com a energia do lugar. Tinha gente do mundo inteiro ali, de diferentes etnias, todos conectados àquela obra centenária. Muitos queriam apenas tirar uma selfie, marcar que estavam lá. Isso me impactou muito", relatou a médica, que viajou à Europa em 2006.
Sobre o início da coleção, ela destaca: "Eu voltei da viagem e fui desfazer as malas, percebi haver trazido oito 'Monalisas'. Sem perceber, já tinha formado um pequeno acervo, todas com estilos e técnicas diferentes. Aquilo me chamou atenção".
Desde então, ela passou a encomendar quadros da Monalisa a artistas que ela já tinha apreço pelo trabalho. Nesse percurso, seu repertório de arte do Ceará e de todo o Brasil foi expandido.
"A coleção é uma verdadeira amostra da arte cearense — com artistas desde a década de 1960 até os contemporâneos. Muitos passaram a se identificar como artistas após participar da coleção. Ela tem um poder transformador real", compartilha Verdiana, que reúne esculturas em bronze, cerâmica, barro cru, madeira, papel machê, fibra, tecido; além de pinturas a óleo, acrílica, aquarela, carvão, pastel. Bordados, colagens, metais e litogravuras também estão presentes.
A coletânea de Veridiana é administrada juntamente com Andréa Dall'Olio (à direita na foto), sua esposa e curadora das obras. Juntas, elas já expuseram a coleção em diversas cidades do interior cearense e em equipamentos públicos da Capital.
Futebol não midiático
É de conhecimento geral que o futebol é uma paixão nacional. Mas o professor da rede pública Bruno Marques leva esse amor para fora da curva. Ele cresceu ao lado do pai, repórter cinematográfico envolvido com o universo esportivo, e decidiu tornar essa memória mais palpável.
Bruno tem um acervo de mais de 100 camisas de clubes de futebol "de menor expressão midiática", ou seja, times de menor visibilidade e fora do radar nacional. "Mas não 'times ruins', porque isso machuca, viu?", destaca Bruno.
"Hoje isso pode não parecer tão marcante, já que temos acesso a tudo, mas, nos anos 1990, a maioria das pessoas conhecia apenas os grandes times. Daí essa massa de torcedores do Flamengo, Corinthians… Mas quem ouvia falar do XV de Piracicaba? Ou dos próprios times cearenses?".
Enquanto falava com O POVO, o professor usava uma das peças mais importantes de sua coleção: a blusa do time do Crato. "Ela foi a primeira de todas, em 2003, quando acontecia a segunda divisão do Campeonato Cearense. Eles foram jogar com o Guarany de Sobral e eu comprei de um jogador. A partir dali, comecei a coleção".
"Com o tempo, percebi haver uma lógica nisso tudo. Uso as camisas em sala de aula para despertar o interesse dos alunos. Já aconteceu, por exemplo, de eu entrar no elevador com a camisa do Tiradentes e uma criança, vestindo Real Madrid, perguntar: 'Que time é esse?'. Ou seja, às vezes a gente conhece o futebol do mundo, mas não conhece o do próprio quintal. É uma forma de preservar memórias que estão fora do circuito midiático", explica Bruno.
Cada peça conquistada ganha um significado maior quando é levada à pele de quem a veste. O professor, que tem duas filhas, conta que compartilha suas camisas com as crianças, que o pedem para usá-las para dormir.
"Elas vivem esse mundo comigo. Acho que, com o tempo, elas vão criando sua própria identidade. Talvez não com futebol, ou com camisas, mas com algo que represente memória, afeto, permanência. Tento mostrar a elas que essa coleção é sobre isso: memória afetiva, resistência num mundo volátil. Tudo é tão descartável hoje em dia… Colecionar é resistir a isso", finaliza.