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Exemplos a serem seguidos, imóveis tombados têm portas abertas e histórias compartilhadas
Vida & Arte

Exemplos a serem seguidos, imóveis tombados têm portas abertas e histórias compartilhadas

Tombamento abre caminhos para modelos de ocupação que conciliam memória e dinamismo econômico. Iniciativas de reabilitação urbana, como centros gastronômicos e turísticos, são exemplos de vitalidade a partir do patrimônio
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Na revitalização do prédio do Café Comércio foram encontradas sete camadas de tinta - simbolizando as várias intervenções pelas quais a estrutura passou (Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Na revitalização do prédio do Café Comércio foram encontradas sete camadas de tinta - simbolizando as várias intervenções pelas quais a estrutura passou

Há quase três séculos, Fortaleza passou, oficialmente, de povoado à vila. Não à toa, Fortaleza coleciona estilos arquitetônicos perceptíveis ao primeiro olhar. Basta circular pelo Centro e bairros tradicionais e observar traços, cores e elementos que compõem fachadas.

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O tombamento - ou seja, as ações realizadas pelo poder público para preservar, por meio da aplicação de legislação específica, bens de valor histórico, cultural, arquitetônico, ambiental e também de valor afetivo para a população, além de impedir que venham a ser destruídos ou descaracterizados - atua como ferramenta estratégica de desenvolvimento urbano, promovendo não apenas a conservação do passado, mas a ativação de novas vocações para os centros urbanos.

Em grandes cidades, o avanço imobiliário tende a apagar traços identitários. Assim, preservar imóveis e áreas tombadas permite que a memória coletiva se mantenha viva. Além disso, valoriza saberes locais, ofícios tradicionais e manifestações culturais que resistem ao tempo, criando um campo fértil para políticas públicas de inclusão e regeneração urbana.

O processo de tombamento

Ao fomentar o uso adaptativo de prédios históricos, o tombamento contribui para modelos contemporâneos de ocupação, como equipamentos culturais, moradias acessíveis e negócios de impacto. Essa requalificação consciente gera empregos, atrai investimentos e impulsiona o turismo, funcionando como um motor para o desenvolvimento econômico territorial. Preservar é sinônimo de inovar com raízes, conectando passado e futuro em uma mesma paisagem.

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Para a arquiteta, urbanista e presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU), Brenda Rolim, o tombamento só é visto como entrave porque a maneira como se trata o patrimônio foi sempre mal-interpretada e conduzida: "Os proprietários de imóveis históricos enxergam o tombamento como uma 'paralisação econômica' do seu imóvel, quando deveria ser visto como potencialização. Falta ao poder público fazer a sua parte junto aos proprietários para tornar os tombamentos iniciativas bem-sucedidas e financeiramente sustentáveis".

Para a presidente do CAU, o futuro das cidades e do urbanismo é de uma abordagem cada vez mais humana, identitária e inteligente quanto ao aproveitamento do que já existe, então uma cidade que preserva o seu passado está no caminho do seu futuro.

"As boas cidades do futuro não são as que irão nos oferecer os prédios mais altos com materiais modernos e com todos esses penduricalhos desafiadores da engenharia. O homem do futuro vai precisar, ou melhor, já precisa, de cidades acolhedoras, de escalas aprazíveis, com identidade, vida nas ruas e muita natureza para garantir a boa saúde mental, que é o principal desafio dessa nova era digital. O desenvolvimento urbano deverá buscar esse equilíbrio entre tecnologia e humanidade", atesta Brenda.

Em um mundo globalizado, quando as cidades parecem cada vez "mais do mesmo", se destacam as que conseguem oferecer singularidade. Segundo a titular do CAU, quando se aliam arte, gastronomia e arquitetura tem-se a trinca perfeita para atrair o turismo de qualidade, vocação de Fortaleza, que investe e traz desenvolvimento econômico de verdade, gerando empregos. Ainda é deixado um rastro de valorização e difusão cultural e não de exploração e destruição, como é visto constantemente.

Brenda revela que em cidades com sítios históricos tombados e protegidos com boas políticas públicas temos como resultado cenas culturais que atraem gente do mundo todo. Como é o caso das conhecidas metrópoles europeias, e de cidades como Paraty (RJ) e Ouro Preto (MG).

Para a presidente do CAU, transformar um imóvel tombado em um ativo econômico sustentável, em vez de um "peso", exige criatividade, planejamento técnico, apoio legal e uso inteligente dos instrumentos de incentivo. "É preciso que se criem estratégias que ajudem o proprietário a transformar o tombamento em vantagem econômica e simbólica".

De forma geral, Brenda chama atenção para alguns instrumentos que, infelizmente, não são aplicados atualmente para os tombamentos do Estado, como por exemplo, a Lei Rouanet (Lei nº 8.313/1991), que permite captar recursos com isenção fiscal para projetos culturais, incluindo restauração; Recursos do Fundo Nacional de Cultura e fundos estaduais/municipais; e o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) reduzido para imóveis preservados, isenção de Imposto Sobre Serviços (ISS) da obra e isenção de Imposto de Transmissão de Bens Imóveis (ITBI).

No Estado, alguns órgãos são responsáveis pelo olhar coletivo e pela fiscalização da preservação desses patrimônios, a exemplo Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE). Segundo o promotor de Justiça e coordenador auxiliar do Centro de Apoio Operacional de Defesa do Meio Ambiente do MPCE, Francisco das Chagas Vasconcelos Neto, a arquitetura diz muito sobre os modos de se viver de um povo.

"Por diferentes períodos, as construções mostram um pouco como nós cearenses habitamos e nos socializamos. Os prédios também contam por si só a forma como construímos durante esse tempo. No meio de tantos estilos arquitetônicos temos a arquitetura vernacular cearense, com casas típicas da nossa cultura, projetadas com base nas nossas condições climáticas: alta incidência solar, bons ventos", detalha.

Vasconcelos analisa que os bens culturais edificados são marcos arquitetônicos e deveriam ser melhor explorados economicamente até para garantir a sustentabilidade de sua preservação. Para ele, a cidade que preserva sua história é uma cidade que garante a salvaguarda de sua identidade, possibilitando que ela seja única.

"Mas o tombamento, sozinho, é insuficiente para a garantia da proteção do bem cultural. Testemunhamos a derrubada do Edifício São Pedro e presenciamos várias dificuldades na proteção do Farol do Mucuripe, por exemplo. Há sinais claros de que o poder público e iniciativa privada precisam investir no entorno dos edifícios protegidos e no seu adequado uso, para garantir que eles não se tornem estranhos a mudanças de contextos visuais ou de uso da área", diz o promotor de Justiça.

Segundo ele, quando deixa-se que tais bens edificados se tornem desinteressantes do ponto de vista econômico, cultural ou turístico, eles sofrem pressões de diferentes setores que tentam relativizar a necessidade e adequação de tais bens continuarem ocupando o espaço. Quando isso ocorre, o tombamento tem se mostrado incapaz de proteger a edificação.

"Mais do que tombados, os edifícios precisam ganhar vida. E eles ganham vida com o bom uso. Eles podem servir de espaço para diferentes setores culturais e comunitários, representativos dos vários segmentos da população cearense", defende Vasconcelos Neto.

Café Comércio atrai visitantes e educa profissionais do turismo

Há pouco mais de um mês, fortalezenses e turistas que visitam a Terra do Sol têm mais um local para conhecer a história, apreciar a arquitetura e se deliciar com diferentes sabores no Centro da Cidade.

Instalado em uma construção do século XIX, tombada pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico-Cultural de Fortaleza (Comphic), o Café Comércio, iniciativa do Sistema Fecomércio Ceará, ocupa parte do prédio da Associação Comercial do Estado do Ceará, em frente ao Passeio Público.

A diretora Regional do Senac Ceará, Debora Sombra, conta que o estabelecimento nasce com a proposta de ser um espaço que une tradição, cultura e formação profissional: "Buscamos resgatar elementos históricos e simbólicos do Centro de Fortaleza, incorporando referências do passado à experiência gastronômica oferecida no local".

Com tons terrosos, em uma paleta pastel que representa a natureza, e azul-marinho, no melhor estilo Art Nouveau, o prédio demorou mais de um ano em todo processo de revitalização. Tecnicamente, são sete camadas de restauro - representando, em teoria, sete reformas realizadas ao longo do tempo.

Toda a ambientação, a arquitetura preservada e o menu cuidadosamente elaborado, conforme diz Débora, refletem o compromisso do Senac com a valorização da identidade cearense.

Ao mesmo tempo, o novo espaço segue o modelo de educação profissional, funcionando como empresa-escola e ambiente de prática para alunos dos cursos de Gastronomia e Hospitalidade do Senac. É laboratório e sala de aula para trabalhar qualificações de padeiro, cozinheiro, confeiteiro, garçom, barista e bartender.

"É uma iniciativa que conecta patrimônio, qualificação e inovação a serviço do desenvolvimento do Centro da cidade", declara Débora, ressaltando ainda a conexão do novo estabelecimento a outros equipamentos e ações da entidade.

A novidade funciona de segunda-feira a domingo, das 7h às 17 horas, serve café da manhã e almoço e oferece uma confeitaria com bolos, bombons moldados e chablonados, brigadeiros, macarons com recheios regionais, além de pães diversos.

 

FORTALEZA-CE, BRASIL, 23-07-2025: Reportagem sobre espaços tombados, em Fortaleza. Na foto, a padaria Pâine. (Foto: Fernanda Barros/ O Povo)
FORTALEZA-CE, BRASIL, 23-07-2025: Reportagem sobre espaços tombados, em Fortaleza. Na foto, a padaria Pâine. (Foto: Fernanda Barros/ O Povo)

Casa Painê mantém preservação arquitetônica e funcionalidade no Centro

Para manter viva essa memória, União, Governo do Estado e Prefeitura de Fortaleza contam com mecanismos de proteção, como o tombamento. O ato administrativo protege bens culturais considerados como Patrimônio Material, podendo ser monumentos, edificações históricas, sítios arqueológicos, obras de arte, utensílios, documentos e objetos de valor cultural. O processo inicia com o pedido de tombamento.

No Brasil, a lei do tombamento foi instituída pelo Decreto-Lei nº 25, 1937 - mais de 50 anos antes da Constituição vigente. O conjunto de regras estabelece diretrizes para a proteção do patrimônio cultural no País.

Em Fortaleza, a solicitação é garantida pela Lei nº 9.347/2008. A norma, conforme explica Diego Amora, coordenador da Coordenação de Patrimônio Histórico-Cultural (CPHC), da Secretaria de Cultura de Fortaleza (Secultfor), determina que qualquer cidadão pode entrar com o pedido de tombamento de um imóvel.

A solicitação deve ser protocolada na Secretaria Municipal da Cultura e cabe à CPHC analisar e elaborar um parecer técnico. "A gente verifica se o bem tem valores históricos, arquitetônicos. E então encaminha para o instrumento de proteção, que é o tombamento", descreve.

Casa Painê: conheça padaria artesanal situada em construção de 1919

Recentemente, Fortaleza teve mais um imóvel tombado. Localizado no número 938 da avenida Santos Dumont, no Centro, o prédio datado do ano 1919 foi reformado por empresários e abriga a padaria artesanal Casa Pâine. O coordenador da CPHC descreve o projeto como impactante, mas que respeita a materialidade do bem. O projeto também passou pelo Comphic.

"A gente teve conhecimento e prestou consultoria aos arquitetos. Nos reunimos algumas vezes para poder adaptar o projeto. A nossa atribuição é essa, fiscalizar, acompanhar o estado de manutenção desses bens. E quando é proposto um projeto, a gente cede essa consultoria, o acompanhamento técnico e aprova ou não a intervenção", explica Diego.

O tombamento do imóvel aconteceu no dia 27 de junho deste ano. No local, o prefeito Evandro Leitão destacou a importância do decreto para a Cidade e para o turismo.

"A Cidade iniciou seu crescimento, seu desenvolvimento, justamente nesta região. Fico muito feliz de poder aqui estar presenciando um equipamento como esse, além de certamente se tornar uma rota turística, onde as pessoas podem também conhecer um pouco da nossa história".

Conforme explica Juliana Cardoso, sócia da Casa Pâine, a escolha do imóvel não foi à toa. "Trabalhamos com a panificação tradicional, que preserva as propriedades naturais dos produtos, e prima pelo fazer à mão. As histórias por trás do nosso cuidado casam com a do casarão", conta.

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Assim, memórias arquitetônicas e afetivas estão desde a fachada até o interior da casa, preservando a história e inovando no uso do imóvel. Juliana completa: "Transformamos a antiga residência em um espaço vivo, onde o passado dialoga com o presente, criando uma experiência sensorial e cultural para quem visita e é apaixonado por pães artesanais".

De residência a restaurante, passando por instituição religiosa, em mais de um século, a casa passou por desconfigurações de elementos originais, a exemplo de rebocos, pisos e compartimentações internas. O desafio, então, foi adaptar o imóvel, tornando-o funcional e, ao mesmo tempo, restaurar elementos originais.

"Foram realizadas prospecções construtivas, cromáticas e pictóricas, revelando detalhes como pinturas decorativas originais e esquadrias em madeira nobre. Elementos como o piso da sala de visitas, o telhado original (recomposto com telha metálica) e partes da alvenaria de tijolo de diatomita foram restaurados ou reproduzidos com base nos achados", diz Juliana.

A concretização do projeto foi um trabalho de parceria público-privada, com acompanhamento da Secretaria Municipal de Urbanismo e Meio Ambiente de Fortaleza (Seuma), Secultfor e Universidade Federal do Ceará (UFC). O projeto de restauro é do Escritório Nasser Hissa e o arquiteto Romeu Duarte fez o acompanhamento. O interior foi idealizado e executado pelo escritório da arquiteta Larissa Ary.

Projeto arquitetônico deveria focar em funcionalidade

Segundo Francisco Hissa, responsável pelo projeto arquitetônico, um dos desafios era tornar o terreno dos fundos funcional, algo que até então era inutilizado. Em paralelo, era preciso manter as características da casa.

A proposta, então, foi construir um prédio que, ao invés de brigar com o imóvel já existente, realçasse o tradicional. O resultado é visto por quem passa pelo endereço: um prédio com revestimento uniforme de vidro, que reflete a casa, de formas mais puras e com quatro pavimentos.

A interseção entre o clássico e o moderno é garantida pelo grande cubo de vidro, que parece levitar dentro da casa, unindo-se ao novo prédio.

Para Hissa, o cenário atual de Fortaleza e o processo que o município tem com a sua história envolvem alguns pontos, indo desde o descuido, tanto dos empreendedores quanto dos arquitetos, até a postura de entes públicos diante de alguns empreendimentos.

Por outro lado, o arquiteto cita como exemplo a relação "amigável" entre a iniciativa privada e o poder público ao longo do processo de tombamento da casa e durante as obras. "Os dois podem conviver bem. Ter uma resposta boa, eficiente, econômica tanto para o proprietário, quanto para a Cidade", completa. 

Casa Painê

  • Quando: terça a sábado, das 7h às 20 horas; domingo, das 7h às 13 horas
  • Onde: av. Santos Dumont, 938 - Centro
  • Reservas e mais infos: (85) 99273-4848 e @paine.casa

A memória e a cidade

Muito se tem falado sobre uma possível aversão do cearense à memória, que a nossa tradição é não ter tradição, que o que gostamos mesmo é de novidades. Após décadas de uma programada destruição do patrimônio cultural edificado, alguns acontecimentos exitosos têm se dado, o que diz que algo está mudando na nossa forma de nos relacionarmos com as reminiscências e a cultura, apesar da proteção da herança construída ainda não ser contemplada no âmbito do planejamento urbano e do urbanismo.

Dou dois exemplos, entre alguns recentes: as intervenções havidas na Rua Dr. João Moreira, no Centro de Fortaleza, e em uma antiga residência conhecida como "Dama do Outeiro", situada na Avenida Santos Dumont, hoje abrigando uma padaria fina. Sinal dos tempos?

No primeiro caso, assistimos a alguns edifícios tombados, alguns deles sem uso ou com destinação obsoleta, serem tomados por novas funções ligadas à cultura, como são os casos da superintendência da capital da Coelce e da Estação João Felipe, as quais se transformaram respectivamente no Museu da Indústria e na Estação das Artes, fazendo parte do grupo composto pelo Café Comércio, o Centur e o Passeio Público.

O patinho feio continua sendo a Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção (para quê serve um quartel no Centro?). Quanto à mansão aldeotense, quem lamentava uma triste sorte sua com uma iminente demolição, deve ter se alegrado com a sua atual utilização, que agregou o novo ao antigo. O que salva o patrimônio é o uso. Sigamos por essa via, que valoriza a cidade.

*Romeu Duarte é arquiteto e urbanista, professor de Arquitetura e Urbanismo da UFC e cronista do O POVO.

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