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Exemplos a serem seguidos, imóveis tombados têm portas abertas e histórias compartilhadas
Vida & Arte

Exemplos a serem seguidos, imóveis tombados têm portas abertas e histórias compartilhadas

Tombamento abre caminhos para modelos de ocupação que conciliam memória e dinamismo econômico. Iniciativas de reabilitação urbana, como centros gastronômicos e turísticos, são exemplos de vitalidade a partir do patrimônio
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FORTALEZA-CE, BRASIL, 28-07-2025: Prédios tombados e que passaram por processos de restauração. Na foto, o Café Comércio. (Foto: Fernanda Barros/ O Povo) (Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS FORTALEZA-CE, BRASIL, 28-07-2025: Prédios tombados e que passaram por processos de restauração. Na foto, o Café Comércio. (Foto: Fernanda Barros/ O Povo)

Há quase três séculos, Fortaleza passou, oficialmente, de povoado à vila. Não à toa, Fortaleza coleciona estilos arquitetônicos perceptíveis ao primeiro olhar. Basta circular pelo Centro e bairros tradicionais e observar traços, cores e elementos que compõem fachadas.

O tombamento - ou seja, as ações realizadas pelo poder público para preservar, por meio da aplicação de legislação específica, bens de valor histórico, cultural, arquitetônico, ambiental e também de valor afetivo para a população, além de impedir que venham a ser destruídos ou descaracterizados - atua como ferramenta estratégica de desenvolvimento urbano, promovendo não apenas a conservação do passado, mas a ativação de novas vocações para os centros urbanos.

Em grandes cidades, o avanço imobiliário tende a apagar traços identitários. Assim, preservar imóveis e áreas tombadas permite que a memória coletiva se mantenha viva. Além disso, valoriza saberes locais, ofícios tradicionais e manifestações culturais que resistem ao tempo, criando um campo fértil para políticas públicas de inclusão e regeneração urbana.

O processo de tombamento

Ao fomentar o uso adaptativo de prédios históricos, o tombamento contribui para modelos contemporâneos de ocupação, como equipamentos culturais, moradias acessíveis e negócios de impacto. Essa requalificação consciente gera empregos, atrai investimentos e impulsiona o turismo, funcionando como um motor para o desenvolvimento econômico territorial. Preservar é sinônimo de inovar com raízes, conectando passado e futuro em uma mesma paisagem.

Para a arquiteta, urbanista e presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU), Brenda Rolim, o tombamento só é visto como entrave porque a maneira como se trata o patrimônio foi sempre mal-interpretada e conduzida: "Os proprietários de imóveis históricos enxergam o tombamento como uma 'paralisação econômica' do seu imóvel, quando deveria ser visto como potencialização. Falta ao poder público fazer a sua parte junto aos proprietários para tornar os tombamentos iniciativas bem-sucedidas e financeiramente sustentáveis".

Para a presidente da CAU, o futuro das cidades e do urbanismo é de uma abordagem cada vez mais humana, identitária e inteligente quanto ao aproveitamento do que já existe, então uma cidade que preserva o seu passado está no caminho do seu futuro.

"As boas cidades do futuro não são as que irão nos oferecer os prédios mais altos com materiais modernos e com todos esses penduricalhos desafiadores da engenharia. O homem do futuro vai precisar, ou melhor, já precisa, de cidades acolhedoras, de escalas aprazíveis, com identidade, vida nas ruas e muita natureza para garantir a boa saúde mental, que é o principal desafio dessa nova era digital. O desenvolvimento urbano deverá buscar esse equilíbrio entre tecnologia e humanidade", atesta Brenda.

Em um mundo globalizado, quando as cidades parecem cada vez "mais do mesmo", se destacam as que conseguem oferecer singularidade. Segundo a titular da CAU, quando se aliam arte, gastronomia e arquitetura tem-se a trinca perfeita para atrair o turismo de qualidade, vocação de Fortaleza, que investe e traz desenvolvimento econômico de verdade, gerando empregos. Ainda é deixado um rastro de valorização e difusão cultural e não de exploração e destruição, como é visto constantemente.

Brenda revela que em cidades com sítios históricos tombados e protegidos com boas políticas públicas temos como resultado cenas culturais que atraem gente do mundo todo. Como é o caso das conhecidas metrópoles europeias, e de cidades como Paraty (RJ) e Ouro Preto (MG).

Para a presidente da CAU, transformar um imóvel tombado em um ativo econômico sustentável, em vez de um "peso", exige criatividade, planejamento técnico, apoio legal e uso inteligente dos instrumentos de incentivo. "É preciso que se criem estratégias que ajudem o proprietário a transformar o tombamento em vantagem econômica e simbólica".

De forma geral, Brenda chama atenção para alguns instrumentos que, infelizmente, não são aplicados atualmente para os tombamentos do Estado, como por exemplo, a Lei Rouanet (Lei nº 8.313/1991), que permite captar recursos com isenção fiscal para projetos culturais, incluindo restauração; Recursos do Fundo Nacional de Cultura e fundos estaduais/municipais; e o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) reduzido para imóveis preservados, isenção de Imposto Sobre Serviços (ISS) da obra e isenção de Imposto de Transmissão de Bens Imóveis (ITBI).

No Estado, alguns órgãos são responsáveis pelo olhar coletivo e pela fiscalização da preservação desses patrimônios, a exemplo Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE). Segundo o promotor de Justiça e coordenador auxiliar do Centro de Apoio Operacional de Defesa do Meio Ambiente do MPCE, Francisco das Chagas Vasconcelos Neto, a arquitetura diz muito sobre os modos de se viver de um povo.

"Por diferentes períodos, as construções mostram um pouco como nós cearenses habitamos e nos socializamos. Os prédios também contam por si só a forma como construímos durante esse tempo. No meio de tantos estilos arquitetônicos temos a arquitetura vernacular cearense, com casas típicas da nossa cultura, projetadas com base nas nossas condições climáticas: alta incidência solar, bons ventos", detalha.

Vasconcelos analisa que os bens culturais edificados são marcos arquitetônicos e deveriam ser melhor explorados economicamente até para garantir a sustentabilidade de sua preservação. Para ele, a cidade que preserva sua história é uma cidade que garante a salvaguarda de sua identidade, possibilitando que ela seja única.

"Mas o tombamento, sozinho, é insuficiente para a garantia da proteção do bem cultural. Testemunhamos a derrubada do Edifício São Pedro e presenciamos várias dificuldades na proteção do Farol do Mucuripe, por exemplo. Há sinais claros de que o poder público e iniciativa privada precisam investir no entorno dos edifícios protegidos e no seu adequado uso, para garantir que eles não se tornem estranhos a mudanças de contextos visuais ou de uso da área", diz o promotor de Justiça.

Segundo ele, quando deixa-se que tais bens edificados se tornem desinteressantes do ponto de vista econômico, cultural ou turístico, eles sofrem pressões de diferentes setores que tentam relativizar a necessidade e adequação de tais bens continuarem ocupando o espaço. Quando isso ocorre, o tombamento tem se mostrado incapaz de proteger a edificação.

"Mais do que tombados, os edifícios precisam ganhar vida. E eles ganham vida com o bom uso. Eles podem servir de espaço para diferentes setores culturais e comunitários, representativos dos vários segmentos da população cearense", defende Vasconcelos Neto.

 

Café Comércio atrai visitantes e educa profissionais do turismo

Há pouco mais de um mês, fortalezenses e turistas que visitam a Terra do Sol têm mais um local para conhecer a história, apreciar a arquitetura e se deliciar com diferentes sabores no Centro da Cidade.

Instalado em uma construção do século XIX, tombada pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico-Cultural de Fortaleza (Comphic), o Café Comércio, iniciativa do Sistema Fecomércio Ceará, ocupa parte do prédio da Associação Comercial do Estado do Ceará, em frente ao Passeio Público.

A diretora Regional do Senac Ceará, Debora Sombra, conta que o estabelecimento nasce com a proposta de ser um espaço que une tradição, cultura e formação profissional: "Buscamos resgatar elementos históricos e simbólicos do Centro de Fortaleza, incorporando referências do passado à experiência gastronômica oferecida no local".

Com tons terrosos, em uma paleta pastel que representa a natureza, e azul-marinho, no melhor estilo Art Nouveau, o prédio demorou mais de um ano em todo processo de revitalização. Tecnicamente, são sete camadas de restauro - representando, em teoria, sete reformas realizadas ao longo do tempo.

Toda a ambientação, a arquitetura preservada e o menu cuidadosamente elaborado, conforme diz Débora, refletem o compromisso do Senac com a valorização da identidade cearense.

Ao mesmo tempo, o novo espaço segue o modelo de educação profissional, funcionando como empresa-escola e ambiente de prática para alunos dos cursos de Gastronomia e Hospitalidade do Senac. É laboratório e sala de aula para trabalhar qualificações de padeiro, cozinheiro, confeiteiro, garçom, barista e bartender.

"É uma iniciativa que conecta patrimônio, qualificação e inovação a serviço do desenvolvimento do Centro da cidade", declara Débora, ressaltando ainda a conexão do novo estabelecimento a outros equipamentos e ações da entidade.

A novidade funciona de segunda-feira a domingo, das 7h às 17 horas, serve café da manhã e almoço e oferece uma confeitaria com bolos, bombons moldados e chablonados, brigadeiros, macarons com recheios regionais, além de pães diversos.

 

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