O que é ser pai em 2025? A resposta não se limita aos laços biológicos ou à figura tradicional do provedor. Hoje, a paternidade se constrói na escuta, na escolha de estar presente e no vínculo que transforma.
Muitas vezes, ela nasce no afeto, cresce na convivência e se fortalece na criação compartilhada. No campo da arte, esses vínculos ganham formas singulares. É nesse território de trocas simbólicas que surgem relações que educam, cuidam e inspiram. Não há um manual, há encontros. E esses encontros deixam marcas.
Um exemplo é a relação entre o artista plástico Zé Tarcísio, 84 anos, e o também artista Gerson Ipirajá, 51 anos, seu parceiro de caminhada há mais de três décadas.
A entrevista aconteceu na casa de Zé, em Fortaleza, espaço onde obras, objetos, projetos e memórias convivem. Ali, cultura e existência se entrelaçam. É também onde Gerson atua ao menos duas vezes por semana, cuidando do acervo do mestre, organizando materiais e, acima de tudo, mantendo viva uma relação construída com tempo.
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"Olha, coincidentemente, a nossa história é muito simples. Foi a fome de arte, entendeu?", resume Zé. "Foi um filho que apareceu porque queria dar continuidade a um trabalho, a uma pesquisa dele, de cabeça de jovem. E eu dispunha de meios para amenizar essa fome", continua.
A história iniciou em 1991, quando Gerson, então com 17 anos, deixou Fortaleza e foi morar em Aracati. Órfão de mãe desde a infância e com conflitos com o pai, conheceu Zé Tarcísio, já reconhecido como uma das figuras centrais da arte cearense.
"O Zé era muito percebido na cidade (Aracati), tinha um visual diferente. Um dia, perguntei quem era. Meu tio respondeu: 'Esse é o Zé Tarcísio, o artista mais importante do Ceará'. Aquilo despertou algo em mim", relembra Gerson.
A aproximação começou quando Zé organizou encontros com jovens da cidade. Gerson foi convidado, passou a frequentar sua casa e logo ajudava nos trabalhos do ateliê.
"A cidade não oferecia muitas oportunidades. Eu estava meio perdido. O Zé era alguém da geração do meu pai, mas com um olhar generoso. Com o tempo, essa relação virou cuidado. Uma amizade que virou alicerce", pontua Gerson.
Em uma pausa durante a entrevista realizada pelo O POVO, Zé se emociona: "Essa reportagem me dá muita alegria. Eu tô sendo entrevistado por você, com um filho ao lado, ouvindo essas coisas todas. Isso mexe com a gente. E olha, é a primeira vez que a gente conta essa história desse ponto de vista. Que bom que há esse reconhecimento, que há essa possibilidade de viver a paternidade não apenas como adoção formal ou convivência familiar. Tem outros meios. É quando você sente que extrapolou você mesmo e se repassou para o outro".
Com o tempo, Gerson passou a ser figura constante na vida e na obra de Zé. Cuidou do arquivo, catalogou obras, participou de projetos e, recentemente, assumiu o papel de guardião da história. "Estamos agora construindo um projeto interno, de um instituto que vai cuidar da memória e da obra do Zé. É arte e vida, vida e arte, tudo junto".
Zé reconhece esse cuidado como algo que vai além da amizade: "Hoje, ele é meu filho. E o filho dele me chama de 'vô'. Tenho a satisfação de ter um filho legal e um neto despontando para a vida. A gente se dá muito bem. E foi ideia do menino me chamar de vovô".
O carinho entre os dois se mostra no dia a dia, que mistura silêncio, conversas e conselhos: "Quando estamos juntos, é papo de vida e arte. Tudo se mistura. Não tem essa divisão entre trabalho e lazer".
"Eu sinto que é meu filho. Fico feliz quando ele vai bem, quando recebe um prêmio, tem uma exposição. Mas não é aquele orgulho besta. É um orgulho de ver o resultado de uma trajetória".
Gerson guarda o momento em que percebeu a força desse vínculo: "Na época, eu ficava na varanda desenhando. Um dia, o Zé chegou sem eu perceber e olhou meu trabalho. Aí ele disse: 'O caminho é esse. É você experimentar, desenhar sempre que vai encontrar a sua (marca)'. Aquilo ficou em mim como um norte".
A relação alcançou a família. Miguel Ipirajá, filho de Gerson, hoje com dez anos, trata o artista de 84 anos como "vô Zé". "Além de tudo, eu pude dar um neto ao Zé. Isso tem um valor simbólico enorme. O carinho do meu filho por ele é o mesmo que tem pelos avôs biológicos. É uma construção de afeto que emociona", pontua Gerson.
Zé se comove ao lembrar da filha biológica, que mora no Japão: "Percebo uma afinidade entre eles, como irmãos. Existe um tratamento especial entre eles, e eu sou o foco disso. Isso me deixa muito feliz".
A parceria entre os dois continua. Na véspera da entrevista, finalizaram uma pintura para o projeto "Aquavelas", exposição flutuante realizada pelo Sesc, que reúne artistas que transformam jangadas em obras de arte. A estreia acontece neste domingo, 10, Dia dos Pais, na Enseada do Mucuripe.
Ao ser perguntado sobre o que mais admira em Gerson, ele responde: "Ele é cuidadoso comigo. Me escuta, dialoga. Retribui o que compartilhei. É um privilégio ter um filho assim. E o mais bonito é que nada foi imposto. Foi uma construção".
Ao final da conversa, Zé Tarcísio sorri: "É uma paternidade construída no afeto, na troca. Não tem obrigação, é ação natural".
Quando a arte começa em casa
Em algumas famílias, a paternidade é vivida nos palcos, literalmente. Para Hiroldo Serra, 60 anos, a arte começou em casa, ou melhor, nos bastidores da Comédia Cearense, companhia fundada por seu pai, o ator, diretor e dramaturgo Haroldo Serra (1934-2019), nome fundamental da cena teatral no Ceará.
Reconhecido como o "Mestre do Teatro Cearense", Haroldo brilhou nos palcos por mais de seis décadas e deixou um legado que segue vivo na trajetória dos filhos, colegas e artistas formados sob sua orientação.
"Minhas memórias mais marcantes com o papai são dele em cena", conta Hiroldo.
"Assistindo aos personagens que ele fazia, acompanhando os bastidores, ajudando nos espetáculos. Aquelas imagens me formaram. Embora ele fosse muito carinhoso e presente, o que mais me marcou foi vê-lo atuando no 'Morro do Ouro' e na 'Roça do Lagamar'. Talvez por serem as peças que mais assisti", lembra o artista cearense.
Filho caçula de uma família ligada ao teatro — a mãe, atriz e figurinista Hiramisa Serra, também fazia parte da companhia — Hiroldo cresceu entre ensaios, figurinos e roteiros.
"Não é comum nascer em uma casa onde pai e mãe trabalham com teatro. Então, desde pequeno, eu já estava ali. Fiz sonoplastia, iluminação, depois comecei a atuar. O teatro era parte da rotina".
Apesar do ambiente artístico, Haroldo sempre incentivou os filhos a buscarem outros caminhos.
"Ele dizia que quem quer fazer teatro precisa ter outra profissão também, para ter de onde tirar o sustento e, assim, poder fazer teatro com liberdade", relembra.
Mesmo sem pressionar os filhos a seguir a carreira, Haroldo acompanhava cada passo.
"Ele assistiu a todos os meus espetáculos, desde o tempo do colégio até as peças que dirigi como professor. Quando ele estava hospitalizado, em 2019, a gente estreou o musical 'Mamma Mia!' e fiz questão de dedicar a ele. Saí do hospital direto para o palco. Era minha forma de homenagear", relembra.
Com uma convivência intensa ao longo da vida, Hiroldo reconhece o pai como um verdadeiro diretor de sua história:
"O papai foi um exemplo completo. Muito responsável, ético, bom marido, bom profissional. Até quando quis ser fazendeiro, eu estava ao lado dele, cuidando das vacas, das terras. Me doei muito a ele. E nunca deixei nada por dizer. A última frase que trocamos foi ele me dizendo que eu fui um filho maravilhoso. E eu respondi que ele foi um pai maravilhoso".
Haroldo Serra faleceu em 2019, aos 84 anos, em decorrência de complicações causadas por um tumor no cérebro. Mas o legado permanece. A estrutura familiar segue ativa: a mãe ainda participa das atividades, os filhos colaboram e a nova geração é formada pelas oficinas da Casa da Comédia Cearense, inaugurada em 2003.
"A comédia foi pensada para descentralizar a cultura. É ali que sigo o legado dele: oportunizando talentos, formando público, fazendo teatro com ética e compromisso", diz o ator.
Além de artista e educador, Hiroldo é pai de dois filhos: Carolina, 32 anos, arquiteta radicada em Barcelona, e Gael, 10 anos, que recentemente atuou em espetáculos da companhia.
Entre tantas camadas de afeto, respeito e continuidade, Hiroldo se diz em paz com o caminho trilhado. "Acho que tracei muitos caminhos para completar os do meu pai. E tudo o que faço na Comédia Cearense tem um pouco dele. Sei que, se ele pudesse me ver hoje, estaria orgulhoso. Dizia que, nas minhas mãos, a comédia teria vida longa. E é isso que estamos fazendo".
O que é ser pai em 2025?
Do ponto de vista da psicologia, ser pai em 2025 vai além da herança genética. A paternidade se desenha nos gestos cotidianos de cuidado, nas escolhas conscientes de afeto e, principalmente, nas relações que se constroem pelo tempo, pela escuta e pela troca e quando olhamos para o universo da arte, essa função se amplia ainda mais.
Para a psicóloga e psicanalista Sabrina Matos, a paternidade é, antes de tudo, uma construção subjetiva. "Um bebê não existe sozinho, ele somente existe inscrito em uma relação. Para que ele exista, é necessário
ter sido desejado".
Ser pai, portanto, é ocupar um lugar simbólico na vida de alguém, um espaço que gera pertencimento, molda narrativas e deixa marcas profundas no psiquismo.
Nesse sentido, segundo a pesquisadora, o papel do pai não é definido pela biologia, mas pelo investimento afetivo. O que nos constitui enquanto sujeitos são os vínculos: aquilo que ouvimos, sentimos, percebemos e que nos atravessa desde o início da vida, o que a psicóloga chama de "banho de linguagem".
Esse investimento é tão fundamental quanto invisível. Muitas vezes, se dá no silêncio, na presença, no reconhecimento das necessidades do outro.
Sabrina chama atenção para o desequilíbrio nas expectativas sociais em torno da parentalidade: gestos simples, quando feitos por homens, são frequentemente celebrados como feitos extraordinários, enquanto as mesmas ações realizadas por mulheres são naturalizadas ou sequer mencionadas.
"Será que não podemos pensar em um pai suficientemente bom também? Não falo aqui daquele pai que se acha o máximo porque consegue trocar as fraldas do seu filho. Não. Mas é aquele que se coloca na posição de responder às necessidades vitais da criança, permitindo com que um sentimento sólido de segurança faça esse filho ou essa filha resistir quando confrontado(a) com
situações difíceis".
"Pai é aquele que tem um sentimento sagrado por um filho, sagrado aqui no sentido de radical, sem explicação, e que vai dar suporte para que esse filho se desenvolva, cresça, exista", explica.
É nesse ponto que Sabrina evoca o escritor e psicanalista brasileiro Celso Gutfreind, que afirma: "Na espécie humana, só está deserto o que foi deserto". A frase ressalta como a ausência de afeto no início da vida pode deixar lacunas difíceis de preencher.
O contrário também é verdadeiro: vínculos afetivos sólidos deixam marcas que sustentam. Quem foi amado e desejado encontra mais força para se constituir como sujeito no mundo. "Só tem problema de autoestima quem não foi estimado", reforça a psicóloga.
Nesse processo, a arte aparece como espaço simbólico privilegiado para exercer e experienciar essa função. Ensinar a desenhar, acompanhar um processo criativo, ajudar a nomear sentimentos ou até compartilhar o silêncio de um ateliê: tudo isso pode ser expressão de paternidade. "O importante é o afeto como presença estruturante, um gesto que deixa rastro, memória e raiz".
De Pai pra Arte
Em muitas famílias, a arte também é um elo de afeto e continuidade. No palco, no estúdio ou no ateliê, pais e filhos compartilham saberes, criam juntos e constroem vínculos que atravessam gerações. Essas relações mostram que a paternidade pode ser também criação e parceria
O patriarca transforma o palco em extensão da sala de casa. Em apresentações pelo Brasil, reúne filhos e netos em um encontro musical que celebra a convivência, o afeto e a herança familiar construída pela arte. As canções ganham novas camadas quando compartilhadas entre gerações.
Caetano Veloso nunca esteve sozinho no palco ou na vida criativa. Seja em turnês, colaborações ou gravações, os filhos Moreno, Zeca e Tom sempre estiveram por perto, misturando música e afeto. O show "Ofertório", em que divide o palco com os três, é uma síntese dessa troca.
O samba corre entre vozes e gerações na família de Martinho da Vila. Com os filhos, também músicos, gravou o álbum "Lambendo a Cria", em que compartilham canções e memórias. A obra é uma celebração sensível dos caminhos construídos em conjunto, dentro e fora da música.
A trajetória de Arlindinho tem raízes profundas na obra e na história de Arlindo Cruz (1958-2025). O filho seguiu os passos do pai no samba e atualmente mantém viva sua memória e legado, especialmente após o AVC que vitimou Arlindo em 2017 e o levou à morte na sexta-feira, 8.