"O que há num metal amarelo opaco que leva os homens a abandonarem as suas casas, a venderem os seus pertences e a atravessarem um continente para arriscarem a vida, os membros e a sanidade por um sonho?", indaga Sebastião Salgado em certa altura do livro "Gold".
O vazio dessa pergunta, que o fotógrafo sentiu ao chegar ao maior garimpo a céu aberto do mundo, se transmuta para a Caixa Cultural de Fortaleza, à medida que se adentra a exposição "Gold, Mina de Ouro Serra Pelada".
Este vazio será facilmente preenchido a partir da sábado, 9, quando o público fortalezense irá ocupar o salão principal para testemunhar o trabalho de Salgado, que morreu em 23 de maio deste ano, aos 81 anos. O Vida&Arte conferiu em primeira mão a montagem da exposição, que chega pela primeira vez à capital cearense.
Com visitação gratuita, a mostra apresenta fotografias de Sebastião Salgado em Curionópolis, na Amazônia paraense. Em 54 imagens, os registros recontam o cotidiano da mina de Serra Pelada, de onde foram extraídas toneladas de ouro ao longo de mais de uma década de exploração, que chegou a reunir mais de 50 mil homens.
A saga de Sebastião teve início quando, na década de 1980, ele tocava o curso da série denominada "Trabalhadores", um projeto ambicioso que consistia em fotografar 42 histórias sobre o trabalho manual, em diversos ângulos e regiões.
Dentre elas, constava o registro da Serra Pelada, à qual Sebastião buscava acesso desde 1982, com inúmeras tentativas frustradas. O local era altamente controlado por militares e autoridades, fazendo com que o fotógrafo só conseguisse adentrar em 1986, quando habitou a região por 35 dias.
Segundo Álvaro Razuk, arquiteto e produtor responsável pela montagem da exposição, a ocupação de Salgado na mina só foi viabilizada por seu modo de vida simples, que o camuflava entre os trabalhadores.
Carregando consigo latas de carne seca e feijão, Sebastião se alojou nas mesmas condições dos garimpeiros, em barracos de lona ou plástico, que se amontoavam pelas encostas ao redor da cratera da mina.
O convívio e a sensibilidade do fotógrafo lhe permitiram evidenciar o sistema de organização que foi construído por trás do caos que a mina aparentava ser.
Pelas imagens, é possível se atentar a detalhes que, nas minúcias dos livros de história, por vezes passam despercebidos. No fundo direito da sala de exposição, evidencia-se a demarcação da terra marrom com fitas brancas, que limitavam um terreno de 2 por 3 metros para cada garimpeiro, que caso vingasse em sua busca naquele perímetro, teria o ouro garantido para si.
Peculiaridades como esta são ressaltadas pela disposição das imagens ao longo da sala. Com curadoria e design de Lélia Wanick Salgado, esposa de Sebastião, para Gold, foi escolhido um formato de imagens suspensas pela sala, de forma dupla, por fios quase invisíveis.
A impressão de flutuação das fotografias se intensifica com a iluminação assinada por Fernanda Carvalho. Com paredes cinzentas e focos de iluminação direcionados com precisão para as imagens, a sensação é que a luz pertence e emana das fotografias.
Ao cruzar o vão da sala, enquanto a mesma indagação inicial feita por Salgado deve ecoar na mente do visitante, algumas respostas são encontradas no fim da exposição, com uma entrevista em vídeo de Lélia e Sebastião, gravada em 2019. Seis anos depois, saudosista da presença do marido, Lélia relembra como, à época da expedição, o fotógrafo havia retornado para casa com o conceito de humanidade em xeque.
"Sebastião ficou muito impressionado com aqueles 50 mil homens buscando riqueza em condições precárias, e voltou com lições que ele tirou do conceito do ser humano que tinha até aí. Os humanos são capazes de sacrifícios incríveis para chegar a um objetivo e as fotos dessa exposição são a prova de que ele observou os comportamentos desses homens e quis mostrar ao público que eles não eram escravos de outros, mas, simplesmente, escravos da própria vontade de enriquecer", afirma Lélia em declaração ao O POVO.
Com um ativismo não só imagético, mas instrumentalizado em ações, ao lado de Sebastião, Lélia fundou o Instituto Terra, com o intuito de recuperar a vegetação original e promover o desenvolvimento sustentável na região do Vale do Rio Doce, onde o fotógrafo cresceu.
Além dos esforços ambientais, ao longo dos anos, era Lélia quem encabeçava as publicações impressas, pensava os formatos das exposições e fazia com que o trabalho de Sebastião reverberasse no mundo.
Após a morte do fotógrafo, ela compartilha seu tempo entre viagens pelo Brasil e Paris, onde mantém e zela pelos inúmeros negativos, filmes e câmeras, no estúdio montado por Sebastião às margens do canal Saint-Martin. Mantendo o legado do estúdio, Lélia e Álvaro seguem arquitetando exposições por todo o País. Em outubro, a dupla se empenha novamente para a abertura da mostra "Amazônia", em Belém, como parte da programação desenvolvida para a COP-30.
Para Álvaro Razuk, poder trazer de forma inédita a mostra "Gold, Mina de Ouro Serra Pelada" para Fortaleza é debater uma temática que é tangível no Brasil contemporâneo.
"Além do registro histórico de um local que não existe mais, é uma exposição que continua atual porque fala da precarização do trabalho. Isso é um drama para o Brasil até hoje", afirma o arquiteto da mostra e amigo de Salgado.
Gold Mina de Ouro Serra Pelada