Há duas décadas, bailarinos cearenses se uniam no Fórum de Dança do Ceará para a criação de uma política pública que tornasse a dança mais acessível a toda a população. Assim foi criado o Curso Técnico em Dança (CTD), em 2005. Até então, o Estado não possuía uma escola de dança que fosse pública.
Quem quisesse se dedicar à linguagem e não pudesse pagar as mensalidades nas escolas presentes em Fortaleza, dependia de bolsas fornecidas pelas instituições ou iria fazer aula em projetos sociais, como a Vidança, Edisca e o Bailarino de Cristo Amor e Doações (BCAD).
Isso restringia o ingresso às aulas, além de não haver uma formação teórica de fato e resultava na ausência de uma profissionalização que pudesse ser construída de forma mais estruturada. Com o surgimento do CTD, foram formados mais de 200 alunos, residentes do Ceará e de outros locais do Nordeste, como Maranhão e Piauí.
Além da formação gratuita, a iniciativa viabiliza que os artistas construam uma carreira possível na dança após o curso. A presença de oito bailarinos egressos do curso na coreografia "Nosso Baile", de Henrique Rodovalho, é um exemplo disso. O trabalho é uma remontagem da coreografia "Isso Dá Um Baile", apresentada em 2021, pelo Balé da Cidade de São Paulo.
A recriação da obra a partir de um corpo de baile quase todo cearense foi sugerida por Davi Linhares, criador e diretor da Bienal de Dança do Ceará, para o Conexões Artísticas Internacionais (Cais), realizado pelo evento. Além de ser apresentada na Bienal, que acontece em outubro, a montagem será apresentada na França.
A sensação de levar sua dança para outro país é definida como indescritível, para Venícios Oliveira. "Quero dar o melhor, representar o Brasil, representar nossa região, representar nossa comunidade, levar essa força, essa energia, esse contagiar que é muito nosso", afirma o bailarino de 28 anos, que deixou a Psicologia para viver de arte.
"Eu sempre fui muito apaixonado por dança desde criança, minha mãe dizia que eu andava na ponta dos pés e eu queria fazer dança. Mas por conta daquele estereótipo de que homem não dança naquele tempo, acabava que eu não tinha tanto acesso", relembra Venícios, que iniciou sua trajetória no Instituto Katiana Pena aos 18 anos.
A seleção dele e de seus outros sete colegas de elenco vindos do CTD foi feita através de um convite da coordenadora da formação, Bilica Léo. A sugestão de fazer essa ponte partiu também de Davi, que segundo a também bailarina, achou interessante incluir os estudantes da formação. "Na verdade, isso reflete o nível técnico de qualidade artística que os nossos bailarinos que estão sendo formados possuem", pontua Bilica.
Para o trabalho, ela convidou tanto egressos da turma 7 (2020) quanto da turma 8 (2023) para estarem presentes. Rafael Lima, Diego Freire, Larissa Ribeiro, Lucas Vaz, Sergio Gadelha, Thaisa Bertoldo completam o elenco junto com Venícios.
Larissa Ribeiro salienta que a presença dos cearenses destaca a capacidade da dança no Estado. "Historicamente, as coisas tendem a chegar mais rápido pelo Sul do País do que pelo Nordeste. Ter bailarinos cearenses de Fortaleza e do interior é 'muito massa' porque mostra a potência de cada um", salienta a artista, cujo interesse pela linguagem surgiu dos momentos que via os pais dançarem sambas em barzinhos.
Venícios lembra que estava no hospital com a mãe, que havia acabado de sofrer um AVC, quando recebeu a ligação de sua ex-coordenadora. "Eu estava do lado do leito dela dizendo: 'Mãe, estou recebendo uma ligação muito estranha. A Bilica está me chamando para enviar vídeos para participar de uma seleção para a gente dançar em Paris", relembra ele.
Ele relata que ficou sem reação de início, mas que a mãe o incentivou a seguir com o desejo dele. "Ela disse: 'Meu filho, envie. Não se preocupe comigo, eu quero que você cuide de você'", conta o artista, que também é professor de danças urbanas.
Para Larissa, que integrou a sétima turma, se diz realizada por poder sair do País pela primeira vez através do trabalho com a dança. "É a sensação de realmente botar fé no que você faz e acreditar que isso pode te levar para outros lugares", enfatiza ela. Com 26 anos de idade, sua formação também passa pelo balé clássico, onde fez aulas na Escola de Ballet Lucymeire Ayres, e pelas danças urbanas, atuando em coletivos independentes.
Partilhar a conquista com os colegas de CTD é de grande alegria para Thaísa Bertoldo, de 22 anos. Aluna também da Edisca, a bailarina revela que nunca imaginou que poderia sair do Brasil para trabalhar com o que ama. "Eu nunca imaginei ir para a França. É algo surreal que não passava pela minha cabeça, especialmente ir para a França através da dança. A Thaísa de 5 anos atrás nunca imaginaria acontecer isso", pontua.
A bailarina ficou tão deslumbrada com o convite de Bilica, que afirma que foi um desafio acreditar que estava no elenco da montagem. "No primeiro dia de ensaio, ao perceber que eu estava realmente no projeto e ver tanta gente talentosa, incrível, de vários cantos do Brasil, eu me questionei se realmente era para eu estar ali", revela a artista que também atua nas danças urbanas. Foi uma construção muito pessoal de "me achar", completa.
Bilica Léo, coordenadora do CTD, enfatiza que a presença dos ex-alunos do curso na obra de Henrique é fruto do trabalho de uma política pública e é preciso assegurar sua continuidade. "A dança é uma linguagem artística, desde muito tempo, muito forte no Estado, e a gente precisa assegurar que essa força continue, com os cursos de formação, garantindo a continuidade desses cursos formativos, cursos técnicos, garantindo a continuidade dos editais".
Uma nova Carmen
Outra obra que passará por uma remontagem com identidade mais cearense é “Carmen”, balé de repertório criado por Georges Bizet. O trabalho é dirigido por Thiago Soares, coreógrafo e ex-bailarino do Royal Ballet da Inglaterra. A ideia para a nova Carmen surgiu a partir de uma conversa do carioca com Davi Linhares, fundador e diretor da Bienal de Dança do Ceará.
Inicialmente, Thiago faria uma participação no evento, mas durante diálogos com Davi, os dois pensaram que “seria mais rico fomentar algo juntos”. A nova criação faz parte do programa Percursos de Criação da Bienal de Dança, ação que incentiva a criação de novas obras com artistas que possuam domínio em um ou mais estilos de dança.
A seleção dos artistas aconteceu por meio de audição realizada em dois dias, com aulas específicas de balé, jazz, contemporâneo e danças urbanas. No fim, foram escolhidos 22 bailarinos, todos cearenses, 3 são egressos do Curso Técnico em Dança (CTD): Nicole Rocha, Lay Matias e Natiele Lino. “Estamos fazendo história! Vejo que a Carmen mostra nossa dança de um jeito único! Mostra que somos potências e que a dança nos move!”, afirma Nicole Roche, que se formou na 8ª turma (2023).
Para ela, estar nesse trabalho é uma oportunidade mostrar o quanto é possível crescer com a dança. “Que em cada movimento,a gente trás a nossa cultura e nosso jeitinho nesse trabalho. A importância desse movimento é gigante pois me mostrou o quanto é possível”, salienta.
Thiago enfatiza a relevância de uma política pública focada em dança é o caminho ideal para desenvolver a modalidade no país. “A dança hoje ela tá agindo não só nesse ambiente das academias, mas também nesse nesse lugar social de transformação do público também, que assiste. Por que que ele assiste? E que tipo de obras ele assiste? e Onde isso também vai influenciando nas nossas vidas positivamente?”.