"Uma hora e meia de alucinação em um ambiente controlado". É assim que o diretor Diego Landin descreve o espetáculo "Gato Preto". A peça une o gênero horror com a história, a música e o jeito brasileiro de fazer teatro. Baseado no conto "The Black Cat", do escritor americano Edgar Allan Poe, a montagem tem estreia gratuita nesta quinta-feira, 21, no Hub Cultural Porto Dragão.
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Na história de Poe, temas como o uso abusivo de álcool e a violência doméstica se ligam à concepção do gato preto como um ser maligno. Um homem antes doce e amante de animais desenvolve um vício que ele atribui a Pluto, seu gato. O comportamento agressivo entra em uma crescente que culmina na morte de sua esposa e de Pluto, o gato preto que assume características sobrenaturais na narração do personagem.
O espetáculo nasceu a partir de uma inquietação de Zéis, protagonista da montagem. Ao reler o conto de Poe, o ator e músico cearense associou a história do gato preto, assassinado pelo próprio dono e pendurado em uma árvore, com os linchamentos feitos às pessoas negras nos Estados Unidos.
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De acordo com a organização sem fins lucrativos Iniciativa por uma Justiça Igualitária (EJI, na sigla em inglês), 4,4 mil pessoas foram linchadas nos EUA entre os anos de 1877 e 1950. Em sua maioria, negras.
Resultado de seis anos de pesquisa, o espetáculo utiliza o horror para tratar sobre o racismo e a representação negra na mídia brasileira. Contrariando a ideia de país da alegria e do Carnaval, para Diego Landin, o delírio, os temas macabros e o absurdo são "tropicais". "A história do Brasil é uma história de horror", declara o diretor.
Um elemento que desempenha função essencial na trama é a música. A maior parte do espetáculo é composta por uma trilha sonora original, influenciada por gêneros como rock, jazz e blues. Os artistas começaram identificando as necessidades de inserir canções para favorecer a dramaturgia e incluíram números musicais, como os momentos em que Zéis toca guitarra e piano.
"Strange Fruit", obra que ficou conhecida na voz de Billie Holiday, denunciava a "era dos linchamentos" e fez a cantora tornar-se alvo de censura na década de 1930. Adaptada para uma nova versão com referências brasileiras, a música compõe a narrativa de "Gato Preto".
Além da nova versão de "Strange Fruit", músicas brasileiras entrecortam a narrativa. Composições de Djavan e de Gilberto Gil, por exemplo, saem do rádio e da televisão. Esses objetos, para além de integrar o cenário, são parte da narrativa. Responsáveis também pela emissão de notícias reais, selecionadas pelos artistas, os meios de comunicação fazem com que a cenografia seja atuante, conforme Landin, e conferem brasilidade ao espetáculo.
"Alguns elementos da encenação e da minha atuação são muito carregados de um jeito de fazer teatro nosso aqui, que é da coisa do 'mugango', da picardia. Do jogo, da 'mise-en-scène', da maneira como a gente interage com o público", observa Zéis.
Utilizando-se da estética de programa de auditório, na adaptação teatral, o protagonista ganha a profissão de apresentador de televisão. Ele aparece nas dimensões pública e privada. Na primeira, quando está apresentando seu programa com vários quadros e interagindo com os assistentes de palco, faz-se um jogo com a plateia. Na segunda, é onde o personagem de Zéis se revela alcoólatra e feminicida.
Para Zéis, "o alcoolismo e o sofrimento psíquico que o alcoolismo gera", que desemboca na questão da violência doméstica, "outro tema de horror brasileiro", também são temas caros para o espetáculo realizado pelo coletivo Trama de Gato. Para o ator e músico, o teatro não determina como as pessoas devem agir ou pensar, mas tem o poder de despertar a sensibilidade diante do cotidiano.
Para Zéis, no conto de Edgar Allan Poe, o homem olha para o gato como se ele quisesse sabotá-lo. "A gente olha o outro, olha o diferente, tem medo do outro. Aí acha que o outro tá querendo sabotar a gente, tá querendo fazer algo pra afrontar", comenta. Diego Landin, diretor, acredita que "todos nós somos o gato preto". Na sua perspectiva, a figura carregada de superstição e associada a uma "bruxa disfarçada" funciona como uma metáfora política para o racismo e para a ideia de "caça às bruxas".
A sensação de ser nocauteado é o que Zéis sente ao fim do espetáculo. E é o que ele espera poder despertar no público: fazê-lo passar pela mesma jornada estafante. Da mesma forma que eles apostaram no espetáculo, é "pelo jogo" que Diego Landin acredita que valeu a pena "arriscar" nesta montagem que trabalha temas densos com um personagem que vive as dinâmicas de opressão.
Estreia Gato Preto