Nos últimos anos, a publicação independente tem se consolidado como um dos caminhos mais viáveis e criativos para jovens escritores brasileiros, especialmente poetas, que desejam fazer suas vozes ressoarem.
Fora do eixo Rio-São Paulo, esse movimento tem ganhado fôlego em estados como o Ceará, onde autores constroem suas trajetórias literárias com autonomia, ousadia e enfrentando desafios estruturais que ainda limitam a consolidação de novas vozes no mercado.
A ausência de políticas públicas robustas para o setor do livro, o alto custo de produção e a concentração do mercado editorial em grandes conglomerados tornam a autopublicação, e as editoras independentes, caminhos fundamentais.
Para compreender melhor esse cenário, ouvimos o poeta cearense Mailson Furtado,vencedor do Prêmio Jabuti em 2018 com um livro autopublicado , além dos editores Eduardo Lacerda (da Patuá) e Nathan Matos Magalhães (da Moinhos).
Mailson relembra os primeiros passos de sua trajetória e os dilemas enfrentados por quem escolhe se autopublicar:
"Esse primeiro lançamento, pra mim, foi o momento mais conturbado, mais complicado pra esse meu trilhário literário. Foi o momento de descoberta de caminhos, de possibilidades do campo literário, do campo da publicação. Até de eu entender o que era a publicação independente e perceber que essa, naquele momento, era a única forma de lançar aquele trabalho, já que todas as outras eram bem distantes. Foi meu momento mais difícil e, por conseguinte, o de maior aprendizado, porque precisei tatear o que seria toda essa vivência do publicar, do comercializar o livro, do distribuir. Entender isso na pele para poder viver, para poder compreender".
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Ele acrescenta que as dificuldades de estreia ainda ecoam na realidade de muitos autores:
"As principais dificuldades no primeiro momento são justamente entender o que é o mercado. Não esperava todos os desafios que descobri: a dificuldade de distribuição, de espaços, todas essas questões que até hoje são os principais calos da maioria dos autores independentes".
Editor e poeta, Eduardo Lacerda observa que a facilidade tecnológica atual tem encurtado distâncias entre autor e leitor, mas traz riscos se usada sem critério:
"Os autores detêm um controle maior sobre a própria obra. É muito fácil e barato produzir um livro com novos softwares gratuitos de diagramação e até o acesso a gráficas digitais. E, claro, há muita coisa boa sendo produzida. Em 2018 um autor totalmente independente ganhou como melhor livro de poemas e livro do ano o Prêmio Jabuti", lembra Eduardo, fazendo referência a Mailson com o premiado À Cidade.
Nathan Matos Magalhães também vê com bons olhos o crescimento da publicação fora dos grandes circuitos, mas não ignora suas limitações:
"Há uma questão econômica por trás disso. O mercado não tem como absorver tanta gente publicando no Brasil, aproximadamente 23% dos títulos publicados em 2024 foram inéditos. Como o grande circuito pode dar conta disso? Não dá. Há um grande circuito independente que se move há pouco mais de uma década", pontua.
Ao discutir os desafios estruturais da literatura fora do eixo, Nathan é incisivo em apontar os entraves de visibilidade e financiamento:
"Mídia, eventos e governo em todas as esferas, o aporte financeiro à cultura precisaria ser maior. Seria necessário vermos que os municípios se importam com sua cultura local. Sem aporte governamental não há manutenção do básico para que a criação artística flua".
Ainda sobre a circulação de autores independentes, Eduardo Lacerda defende que o problema não está apenas na produção do livro, mas na formação de leitores: "A literatura que produzimos é excelente, mas precisamos que ela ressoe no público. Isso passa por mais livrarias, mais bibliotecas, mediadores de leitura, eventos, valorização dos escritores e escritoras".
Sobre o papel das editoras independentes nesse cenário, o editor da Patuá acrescenta: "Nosso compromisso pode ser com o novo, com o perigoso, com aquilo que vende pouco mas é importante, é bonito. A Patuá tem hoje dezenas de pessoas que publicaram seus primeiros livros aqui e agora estão nas grandes editoras".
Nathan, por sua vez, destaca que o circuito independente deixou de ser alternativo e passou a influenciar o próprio mercado tradicional:
"O mercado independente tanto não é alternativo que as grandes editoras nos imitam, copiam ideias, contratam pessoas que nós publicamos porque 'deu certo'. Os espaços construídos pelos independentes são locais que chamam atenção porque buscam a bibliodiversidade. Não têm o capital como centro do universo".
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Com a experiência de quem venceu o maior prêmio literário do país, Mailson entende que o reconhecimento de sua obra teve um efeito coletivo:
"O Jabuti foi um divisor de águas na minha vida, mudou totalmente minha trajetória. Mas sinto também que não só para mim, mas para todo o setor que trabalha com literatura de forma independente. Quebrou um pouquinho a visão por uma lente só. Foi um prêmio muito mais comunitário do que individual", expõe o escritor cearense.
A internet, embora facilite a divulgação, também impõe seus próprios desafios, como alerta Nathan:
"A oportunidade é que você tem a possibilidade de ser lido por muitas pessoas sem gastar absolutamente nada. O risco é receber críticas de maneiras bem estranhas, essa ilusão de que os números de um perfil de rede social, por exemplo, possam bastar".
Ao refletir sobre o futuro da publicação independente, Nathan acredita que o caminho é profissionalizar o setor: "Eu acho que devemos continuar trilhando esse caminho de se profissionalizar. Antes era um setor que criticava muito as pessoas que produziam conteúdo, hoje precisamos disso. Quanto mais profissionalizados estivermos, mais diálogos profícuos teremos para, quem sabe, chegar a soluções".
E para os jovens poetas cearenses que desejam trilhar esse caminho, o conselho é direto: "Ponha o pé no chão. O caminho não é fácil. Informe-se bastante antes de começar, porque a frustração pode ser mais pesada do que parece. Conectar-se às pessoas pode fazer muito sentido nesse meio".
Literatura independente no Ceará resiste e floresce com redes coletivas
No cenário literário, o que os editores Eduardo Lacerca e Nathan Matos Magalhães e o escritor Mailson Furtado destacam sobre a publicação independente - um espaço de criação, resistência e construção coletiva - encontra eco nas trajetórias de jovens autores que insistem em publicar apesar das barreiras.
Para os escritores Douglas Franklin, Bruna Sonast e Kieza Fran, cada livro é ao mesmo tempo um ato de coragem, uma extensão de si e uma tentativa de dialogar com o público.
Douglas Franklin lançou recentemente "As cartas que te escrevi e nunca te enviei", resultado de anos de registros íntimos, diários e relatos sobre amores e perdas.
"Desde 2019 comecei a escrever à mão, em cadernos, poemas e cartas que guardava comigo. Nunca imaginei que isso se transformaria em livro. Quando uma amiga leu meu manuscrito, disse que era assombroso e lindo, e ali percebi que precisava compartilhar", conta.
Psicólogo de formação, Douglas vê na escrita um efeito terapêutico e um espaço de resistência emocional: "A escrita sempre libertará almas perdidas, mas ela também mata, e, às vezes, é importante renascer para sobre(viver). Mais do que resistir, temos que existir. Temos que viver intensamente".
A independência editorial, no entanto, trouxe desafios. "Investir na produção de um livro é caro. Não é só escolher palavras, é escolher pessoas que vão cuidar do projeto como se fosse seu filho", destaca.
Para Douglas, a publicação independente é uma forma de ampliar a poesia cearense: "Temos nomes impactando cada vez mais, uma língua viva e inclusiva. Nós moldamos o novo mercado literário, fazemos nossa própria cena".
A escritora Bruna Sonast, por sua vez, trilha uma trajetória que combina poesia, prosa e curadoria de coletâneas de mulheres. Publicou "Vestígios" (2020), "Mal dito coração" (2022) e "Em água viva" (2024), além de participar de coletâneas como "Fortaleza escrita na praça" (2023) e "O amor é um grito" (2024).
"Escrevo desde os 11 anos, mas durante muito tempo senti que meus textos eram pessoais demais. Só em 2015, ao conhecer saraus autônomos e bibliotecas comunitárias, percebi que minha escrita podia circular, podia ser coletiva", relata.
A autora vê na publicação independente uma forma de resistência política: "É uma estratégia para existir em um país onde grandes editoras são majoritariamente assinadas por homens brancos".
Bruna destaca o impacto da curadoria em sua trajetória. Ao organizar antologias de mulheres, ela teve "aprendizado de escuta e de acolhimento". "O ato de publicar mulheres é revolucionário, é criar espaços onde podemos falar e ser ouvidas", define.
Já Kieza Fran representa a voz do interior, de Sobral, com o lançamento recente de "Poesia de Retalho" (2025), livro que reúne textos de uma década de escrita e memória. "Sempre quis lançar algo autoral, mas os recursos financeiros eram uma barreira constante. Só consegui viabilizar o projeto através do Edital Ceará das Artes e de uma parceria com a (Editora) Substânsia. Foi um longo percurso de espera e tentativa", conta.
Como moradora da Região Norte do Estado, Kieza precisou equilibrar a distância e a busca de plateias: "Morar no interior é um desafio a mais. Como circular meu livro, como alcançar leitores fora de Fortaleza? A gambiarra sempre me atravessou, e foi também a estratégia que encontrei para persistir".
Para ela, a poesia independente é uma ferramenta de transformação social: "O livro é meu, mas é também fruto das coletividades que me mantiveram viva. Quero que minhas palavras circulem, que inspirem novos poetas, principalmente do interior. A publicação independente é autonomia criativa, permite experimentar e afirmar existências que o mercado tradicional muitas vezes ignora".
As histórias de Franklin, Sonast e Fran evidenciam que, no Ceará, a literatura independente não é apenas um ato de autopromoção, mas de resistência, pertencimento e criação coletiva.
Como conclui Douglas Franklin: "Poesia é consolo, é diálogo, é forma de existir intensamente"; Bruna Sonast reforça: "Publicar é criar encontros e afirmar que nossa voz importa"; e Kieza Fran lembra: "Não existe acesso se não posso atravessar. Que nossas palavras atravessem".
PARA CONHECER
kieza fran:
@dizfranzinha
Douglas Franklin:
@arrobadoga
Mailson Furtado:
@mailsonfurtado
Bruna Sonast:
@psonast_
Editoras
@editorapatua e @editoramoinhos