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Ceará, um estado de graça: o novo cenário da "terra do humor"
Vida & Arte

Ceará, um estado de graça: o novo cenário da "terra do humor"

Riso com roteiro, crítica e consciência: a nova geração do humor no Ceará mistura espontaneidade, responsabilidade e internet. Quatro humoristas falam sobre desafios, limites, preconceitos, novos caminhos da comédia e por que o humor cearense mudou — mas continua sendo nossa marca
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CAPA - COMÉDIA 2 (Foto: CAMILA PONTES)
Foto: CAMILA PONTES CAPA - COMÉDIA 2


Nomes como Chico Anysio, Renato Aragão, Tom Cavalcante, Wellington Muniz e Rossicléa fizeram o Ceará ser reconhecido nacionalmente como a “terra do humor”. No imaginário popular, não há povo mais “gaiato” e “moleque” do que o cearense.

Há décadas a casa de comédia Lupus Bier, em Fortaleza, é parada obrigatória de turistas que vêm conhecer de perto o jeito de fazer rir que só existe aqui.

Mas o comportamento da sociedade mudou e passou a problematizar certos tipos de piada, principalmente em relação a mulheres — que frequentemente eram retratadas, imitadas e sexualizadas.

Para alguns, pode ser que o “politicamente correto” tenha tomado conta desses personagens e até de programas (a exemplo do antigo Pânico da TV), que seriam “cancelados” nos dias de hoje.

Para outros, o moinho do tempo girou e os tempos evoluíram: temas polêmicos e ofensivos como machismo, racismo, transfobia e homofobia já não têm mais espaço no entretenimento.

Como os humoristas fortalezenses se adaptaram às novas formas de fazer humor? A internet favoreceu a recolocação desses profissionais? As casas de comédia em Fortaleza ainda têm público como antigamente?

As novas gerações de humoristas encontraram espaço na stand-up comedy? Como as pessoas que atuam nesse meio percebem essas mudanças e como encaram suas referências de antigamente? Qual é a visão do público a respeito disso?

 
Matteus Batista, revelação da comédia cearense na internet, é do Jangurussu, bairro de Fortaleza, no Ceará. Com sua turma de personagens, produz vídeos de humor nas mídias sociais
Matteus Batista, revelação da comédia cearense na internet, é do Jangurussu, bairro de Fortaleza, no Ceará. Com sua turma de personagens, produz vídeos de humor nas mídias sociais

Quem faz rir hoje em Fortaleza

"Cearense já nasce achando graça, não é nem chorando." A frase é de Matteus Batista, revelação do humor cearense que surgiu no Jangurussu, na periferia de Fortaleza, e viralizou nas redes misturando crítica social, improviso e leveza. A fala dele reafirma o que muitos já sabem — o riso está entranhado na alma do Ceará.

Mas o humor cearense de hoje é outro. Mudou de cenário, linguagem, tom. Saiu do palco tradicional, ganhou os celulares, descentralizou, aprendeu a se questionar.

Matteus Batista é cria da internet, mas também das calçadas de um bairro historicamente estigmatizado.

Quando começou, ainda em 2022, era tudo improviso: "Com o passar do tempo, na produção desses conteúdos, tive que me profissionalizar mais um pouco", conta. O improviso ainda vive, mas agora divide espaço com roteiro e planejamento. "Procurando sempre inovar". Essa profissionalização, explica ele, não é só sobre manter a relevância num mundo de algoritmos — é também
sobre responsabilidade.

Matteus cresceu com um tipo de humor que não raro se apoiava em estigmas, preconceitos e estereótipos. Com o tempo, passou a rever piadas e termos.

"No começo a gente não tinha tanto cuidado, né? E isso é normal. O importante é a gente errar, aprender e não cometer mais aquele erro."

Seu perfil ganhou destaque por trazer à cena personagens e vozes pouco ou mal representadas. Uma parceria com uma travesti, por exemplo, rendeu conteúdos que desafiavam a lógica predominante da representação marginalizada.

"Ela era sempre esposa, era sempre amiga, era sempre algo que deveria ser normativo para uma pessoa trans, entendeu? Porque antes disso a gente só via mulheres trans e travestis como personagem na prostituição, na marginalidade."

A pandemia, segundo ele, acelerou a migração para as redes. "A nova geração muitas vezes não conhece os nossos humoristas. Sempre procuro fazer projetos que atendam as escolas com show de humor, para que os jovens conheçam e consumam o nosso trabalho."

Luciano também questiona o uso indiscriminado do termo "humorista": "Qualquer pessoa que aparece apelando na internet é chamado de humorista, precisamos deixar claro o que é humorista. O humor no Ceará é mais que uma linguagem, é uma profissão levada muito a sério. E precisa ser respeitada".

No Ceará, onde o riso é parte da paisagem, o humor segue vivo — e mais consciente. Como diz Matteus: "O humor que machuca, ele nunca pode ser chamado de humor, entendeu?"

Professor Raimundo, personagem do mestre do humor Chico Anysio (1931-2012). Raimundo Nonato Nepomuceno dedicou sua vida ao magistério e deu aula para muitas pessoas famosas. O personagem é conhecido pelo bordão
Professor Raimundo, personagem do mestre do humor Chico Anysio (1931-2012). Raimundo Nonato Nepomuceno dedicou sua vida ao magistério e deu aula para muitas pessoas famosas. O personagem é conhecido pelo bordão "Vai comendo Raimundo. E o salário, ó!"

"Nunca foi tão difícil fazer humor em Fortaleza"

A arte de fazer rir exige muito mais do que talento e coragem de subir ao palco. Para quem vive do humor no Ceará, o riso é atravessado por disputas, falta de espaço e a necessidade constante de adaptação. O que parece leve é, muitas vezes, fruto de uma luta pesada.

Luciano Lopes, intérprete da icônica Luana do Crato, reflete: "Nunca foi tão difícil fazer humor em Fortaleza. Com o fechamento de alguns teatros que recebiam a linguagem, hoje temos apenas as casas particulares. É preciso mais políticas públicas para a linguagem, para que possamos fazer projetos de formação de plateia".

Para ele, o momento atual do humor cearense é frágil. Há muitos artistas buscando espaço, mas poucos palcos disponíveis. "É muita gente no mercado sem trabalho".

Em 2025, Luciano idealizou a I Mostra de Humor no Red Mall Shopping, evento gratuito com o objetivo de revelar novos talentos do riso e movimentar a cena humorística cearense.

A Mostra nasceu como uma resposta ao momento delicado vivido pelos humoristas nos últimos anos: "O humor no Ceará passa por uma fase difícil. Muitas casas deixaram de abrir espaço para os shows de comédia, muitos artistas acabaram ficando sem trabalho", observa.

"Cabe a nós, que já estamos no mercado, abrir caminhos e acolher esses novos humoristas que surgem muitas vezes na internet mas que não têm vivência de palco".

Com o humor de personagem em retração e o stand-up ganhando força, há uma preocupação com o desaparecimento de um traço identitário da comédia cearense. Luciano relembra a forma como humoristas da sua geração se formaram.

"Comprávamos livros de piadas em banca de revistas e ali íamos criando os nossos textos. A nossa formação foi empírica, mas bem embasada em estudos e leituras".

Apesar das dificuldades, Luciano segue criando espaços. No projeto Quinta do Riso, realizado no Teatro Chico Anysio com apoio do Sesc, ele convida comunidades da periferia de Fortaleza para assistir aos shows. "É uma maneira de democratizar e descentralizar o humor".

Em tempos de redes sociais, o humor se torna mais acessível, mas também mais cobrado. Luciano observa: "O artista tem que ter sensibilidade para reconhecer sua plateia e saber até onde pode chegar com as piadas. O exagero hoje já não se faz mais necessário dentro do humor".

Ao mesmo tempo, ele afirma que o humor precisa seguir provocador. "A arte de rir tem que ser transgressora e transformadora. Tem que incomodar e acolher".

Fortaleza, CE, BR 21.03.25 Na foto: Max Petterson participa do programa Pause com Clovis Holanda  (Fco Fontenele/O POVO)
Fortaleza, CE, BR 21.03.25 Na foto: Max Petterson participa do programa Pause com Clovis Holanda (Fco Fontenele/O POVO)

O novo sempre vem

"Como já dizia Belchior, o novo sempre vem." A frase, repetida em entrevistas por Valéria Vitoriano e Luciano Lopes, é síntese de um movimento que anima hoje o humor cearense.

Nomes históricos se abrem à mudança. Novos artistas tomam os palcos e as redes. Entre tradição, experimentação e crítica, emerge uma cena que ainda se orgulha do passado, mas já entendeu que não há como voltar no tempo — nem mesmo em busca da próxima risada.

Para Valéria, intérprete da icônica Rossicléa, o que sempre vai fazer rir é o humor espontâneo — com ou sem personagem. Mas é preciso acompanhar a mudança de linguagem e de sensibilidade.

Luciano Lopes, criador da personagem Luana do Crato, compartilha da mesma perspectiva. Ele não apenas percebe as mudanças, como tenta influenciá-las a fim de democratizar e descentralizar o humor.

No centro dessa renovação está também uma cena que nasceu dentro da internet, como é o caso de Matteus Batista, morador do Jangurussu.

O riso, nesse caso, virou ferramenta de leveza num cotidiano de dor — e de provocação diante de um sistema que marginaliza corpos e existências.

João entende que "nunca vai existir um consenso para o limite do humor, pois humor é contexto, é subjetivo". Matteus é direto: "Aquele humor que machuca nunca pode ser chamado de humor."

E Luciano é categórico: "O mundo mudou. E o humor não pode se recusar a mudar. Atacar minorias com piadas misóginas, homofóbicas, capacitistas… isso hoje já não cabe. Aliás, nunca coube".

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