Em um dos gritos mais comuns das batalhas de rima, os apresentadores perguntam ao público o que eles querem ver, ao que a plateia responde: “Sangue!”. E Japa MC, 24 anos, está sempre disposto a dar o que é pedido. Com um estilo de rima agressivo, passional e enérgico, Caio Lima da Silva sonhava em ser jogador de futebol quando descobriu que nasceu para ser um atleta do freestyle.
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De Águas Claras, Caio começou a rimar aos 15 anos em seu bairro, que faz parte do complexo Cajazeiras, em Salvador. Antes disso, o que gostava mesmo de fazer era passar o dia na rua jogando bola. Ele só descobriu um dom além de jogar futebol quando, a convite dos amigos, foi assistir a uma batalha e acabou sendo anunciado de “sopetão” para rimar.
“Eu tava muito nervoso. Só que depois que mandei minha primeira rima e todo mundo gritou, parecia que eu era o melhor MC do mundo”, relembra.
“Nossa, eu nasci pra fazer isso aqui”, pensou na hora. E, como diz a expressão popular, não deu outra. Depois da primeira batalha - que veio acompanhada da primeira vitória - ele não passou um dia sem rimar até a pandemia de Covid-19, em 2020.
“Na época era muito difícil receber dinheiro. Nenhuma batalha pagava, não tinha prêmio”, conta Japa MC sobre o que o motivou a buscar uma bolsa de estudos para estudar radiologia. “Em 2019 foi quando eu comecei a entender que a parada podia dar certo pra mim, que eu podia viajar e ganhar batalhas fora”, afirma. Ele começou a chamar atenção na Batalha da Torre, uma das mais notáveis de Salvador, e a ganhar visibilidade nos canais de YouTube voltados para a cena. Não por acaso, já tinha recebido o vulgo de Desgraçado das Correntes, referência a um personagem de anime, por colecionar colares de campeão no circuito baiano.
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Em 2022, decidiu largar o hospital pelas batalhas quando teve a oportunidade de viajar para o Espírito Santo para rimar. De lá, ele conheceu São Paulo e percebeu algo diferente do que estava acostumado: prêmio em dinheiro e seguidores nas redes sociais, uma chance de crescer. Foi nesse período que sua mãe descobriu que o rap era um compromisso. “Foi nesse momento que ela entendeu mesmo que, a partir dali, a minha vida ia ser só para o rap”, diz Caio, que, nos primeiros anos, teve dificuldades de fazê-la aceitar o movimento.
“Águas Claras tem uma taxa alta de criminalidade, então, a minha mãe não me proibia de rimar, mas ela tentava me proteger”, declara sobre sua, hoje, “maior fã”. Com a sensação de que já havia cumprido sua “missão” em território baiano, em agosto de 2022, ele seguiu para São Paulo.
Com R$ 100 no bolso, Caio encontrou abrigo na casa de um amigo durante seis meses. “A gente não tinha dinheiro pra se alimentar, não tinha dinheiro pra ir pras batalhas”, relata. Ele explica que viajou “na intenção de fazer mais dinheiro lá”, mas até conquistar espaço no circuito paulista, “muitas vezes eu pensei em parar, voltar pra Bahia e voltar pro meu curso”.
“Na época a Norte e a Aldeia pagavam, só que eu não tinha vaga nessas batalhas. Eu pedia vaga, os caras não davam. Ia lá pra tentar o sorteio e não era sorteado. Fiquei oito meses sem ser sorteado em ambas as batalhas ou era sorteado em uma, aí perdia e os caras só me davam oportunidade quatro meses depois”, narra Japa. Para ele, as coisas só “começaram a dar bom em 2024”. “Depois disso foi que eu comecei a melhorar mesmo, tanto na rima quanto no meu psicológico”, diz.
Hoje, o tetracampeão estadual - marca que nenhum outro MC conquistou até então - já não depende dos sorteios para competir. Este ano, ele “zerou” as “big four” (conjunto de maiores batalhas) e se tornou o primeiro representante do Nordeste a vencer um dos maiores eventos de batalha de rima do Brasil, a edição de aniversário da Batalha da Aldeia. E foi no fim do evento que ele mandou a rima que hoje é a favorita: “Matei Apollo, matei Neo, vou matar o Bigão. É matando campeões que eu me torno campeão!”, referindo-se a MCs respeitados na cena.
Como improviso não é sinônimo de falta de preparo, ele estuda temas que vão de Primeira Guerra Mundial e comunismo a tatuagem e primeiros socorros “porque ali no freestyle você nunca sabe o que vai ser dito. A gente pode falar sobre ‘Naruto’, futebol, história. A gente pode falar sobre qualquer coisa”, explica Japa, que costuma rimar quase todos os dias da semana, à exceção das quartas-feiras, reservadas à sua paixão mais antiga: o futebol.
“Tudo que eu fizer na minha vida, eu vou dar minha alma”, diz Caio Lima, que hoje tira do freestyle seu sustento e a realização dos desejos de criança, como o videogame que não podia comprar na infância. “Tudo eu consigo fazer com meu dinheiro da batalha, eu não preciso fazer nada além de rimar para ter o que eu gosto”, revela.
Agora ele pode ter o PlayStation 5, mas os bens materiais não estão entre os maiores sonhos. “Ainda quero tirar minha mãe e meu pai do trabalho”, anuncia Caio. Em relação à carreira, o que almeja é tornar-se o maior MC em São Paulo, vencer batalhas em todas as regiões do Brasil e, claro, conquistar o título de campeão nacional.
MC movido por sonhos
Enquanto as farpas mais afiadas são lançadas nas batalhas de rima, ele esbanja no rosto um sorriso imperturbável. Ora para desestabilizar o adversário com uma dose de deboche, ora pelo mais puro prazer de rimar. Anthony Gabriel Moura Eufrásio, 24 anos, descobriu o freestyle na adolescência como quem descobre “uma cor nova”. Do bairro Pici, em Fortaleza, hoje ele vive em São Paulo ganhando a vida sob o vulgo Tonhão MC – algo impensável no passado.
Sua primeira batalha aconteceu em 2017, no bairro Henrique Jorge. Classificado para a segunda fase, ele saiu comemorando a vitória pela praça. “Dava para ver um claro nervosismo, mas eu tava fazendo aquilo com um prazer tão grande de estar rimando”, diz e, de lá, já saiu com o convite para a sua segunda batalha.
Filho único de Denise Lopes de Moura, dona de casa que o criou sozinha durante a maior parte de sua vida, para Anthony, a ausência do pai fez da mãe “uma pessoa muito dura, para que eu não entrasse em uma criminalidade que era muito próxima de mim”. Como achava que “batalha não ia dar nada”, custou a contar para a mãe que tinha começado a rimar. “Eu tinha muito medo de falar para ela que eu tava rimando, que eu tava indo para uns bairros lá longe, que eu rodava Fortaleza inteira, menor de idade, sem dinheiro”, conta. E essa história virou uma de suas mais célebres rimas. “Ela me disse ‘tu não tem dinheiro nem para a passagem pagar’, eu falei: ‘Relaxa, mãe, com o rap eu vou conquistar’”, dizem os versos.
Com planos de servir à Marinha definidos pela mãe, Anthony diz que “não queria muito (ir), mas minha mãe é o amor da minha vida”. Então se dispôs a fazer “por ela”. O rap, porém, entrou no caminho. Em Fortaleza, Anthony Gabriel começou a vencer batalhas e a ser classificado em seletivas. Em 2018, quando venceu uma de suas referências, começou a levar as batalhas “a sério”. “Eu tirei uma pessoa que é muito boa, que merece a vaga. Eu não posso brincar, tenho que fazer isso com seriedade”, pensou ao se classificar para o Campeonato Estadual pela primeira vez. Depois disso, começou a treinar sozinho em casa e a rimar de modo consciente, adormecendo e acordando com um vídeo de batalha na tela do computador.
Em 2019, ele decidiu que queria participar do Duelo Nacional de MCs. “Eu quero participar dos maiores eventos de batalhas de rima que tem no Brasil, porque assim eu vou encontrar os melhores MCs. Eu quero rimar contra os melhores”, diz ter pensado. Ainda assim, mantinha os planos de trocar as batalhas pelas Forças Armadas, a despeito dos avisos de que estaria “desperdiçando talento”.
Entre a primeira e a segunda fase da seleção do Marinha, Tonhão foi classificado para o campeonato regional de batalha de rima em Teresina (PI) e conquistou sua vaga no Nacional, em Belo Horizonte (MG). Fantasiado de Naruto, ele estreou na competição no mesmo ano em que MCharles, o “melhor MC que o Ceará já viu”, trouxe o prêmio nacional para o Estado.
E voltou para casa com a sensação de que precisava “contar à Fortaleza a magnitude desse evento”. Naquele dia, ele entendeu que se fosse bom a ponto de ser campeão nacional, conseguiria viver de batalha de rima.
“Se eu ficar no Exército, acabou as batalhas. Se eu não ficar, eu vou rimar”, jogou para o destino. Assim, sob os protestos da mãe, decidiu que sua profissão seria MC. “Eu te dou até os 25 anos”, avisou dona Denise.
Rimando e organizando batalhas em Fortaleza, Tonhão “não sentia ninguém com uma fome semelhante” à sua, com a gana de “fazer acontecer, virar o melhor de todos e ficar rico com rima”. Em 2022, ano em que se consagrou campeão estadual, ele foi embora para São Paulo e ficou hospedado com um admirador do seu trabalho, que lhe ofereceu abrigo depois de ver a divulgação de uma rifa de Tonhão para ir à cidade.
Há quase dois anos, para driblar a solidão de ser um nordestino na capital paulista, resolveu se mudar para a casa de Viviane Tomiello, a tia Vivi, na companhia dos outros MCs fora do eixo, porque “perto deles eu sentia que eu tava em casa”.
Primeiro nordestino a vencer as “big four” e estreante na edição de aniversário da Batalha da Aldeia este ano, a BDA 9 Anos, ele já não precisa esperar chegar aos 25 anos para provar à mãe que obteve sucesso como MC.
Tonhão até já pensou em desistir da carreira, quando se apaixonou por uma moça em uma das viagens de volta à Fortaleza, mas dona Denise logo questionou: “Tu rimou esses anos todinho da tua vida pra agora encontrar uma ‘candanga’, se agarrar e acabar com as batalhas?”. “Tu tem que ir pra São Paulo, tem que voltar e dominar as coisas lá”, ouviu da mãe.
Novamente, fez o que ela pediu, mas dessa vez ambos queriam o mesmo. Como diz outro trecho daquela rima para a sua mãe: “Eu tive que acreditar primeiro pra ela acreditar em mim”. Romântico, ele ainda sonha em casar e ter filhos, mas segue nas batalhas com o desejo de se tornar uma grande referência para os próximos MCs.