O nome da exposição "Bezoar do Tempo" já antecipa sua poética: bezoar remete a uma pedra formada no estômago por substâncias não digeridas, que pode se transformar em remédio, veneno ou pérola.
Para as artistas cearenses Dayane Araújo, Taís Monteiro, Luana Diogo e Marília Oliveira, a palavra tornou-se metáfora do que permanece guardado na memória familiar: imagens e histórias que resistem ao tempo e se reinventam como obras de arte.
"Bezoar foi um conceito que veio naturalmente, ao percebermos que ruminamos imagens e memórias não digeridas que atravessam gerações. São gestos, histórias e fotografias que guardamos com medo do desaparecimento", explica a fotógrafa Taís Monteiro. Aberta desde o dia 30 de agosto no Museu da Imagem e do Som do Ceará (MIS), a mostra segue em cartaz até 16 de novembro, no andar 2 do Anexo.
A fotografia é a linguagem central, mas se desdobra em cianotipias em tecido (técnica de impressão em azul), colagens, objetos encontrados, vídeos e imagens analógicas.
Segundo Dayane Araújo, "trabalhamos com imagens gastas pelo tempo, registros familiares e objetos órfãos que retornam como matéria para fabulação e cartografias afetivas".
O projeto nasceu da colaboração intensa entre as quatro artistas, que já desenvolviam trabalhos coletivos desde 2021. "Nos conhecemos há anos, acompanhamos processos, trocamos pensamentos, textos e experimentações com filmes fotográficos e técnicas alternativas. Olhar para nossos processos nos fez encontrar uma linha narrativa comum", explica Marília Oliveira.
A pesquisa sobre deslocamentos entre interior e Capital, sobre migrações e trajetórias familiares, estruturou a exposição, que mistura realidade e fabulação, passado e presente.
Cada artista trouxe um olhar singular. Taís Monteiro, que trabalha com processos alternativos e videomapping (projeção de imagens sobre superfícies), afirma que seu interesse é a imagem antes de ser visível. "Penso que há uma imagem mental, que habita o território do imaginário, como sonho ou delírio, e que só depois se concretiza. É nesse fluxo entre memória e imagem que construo minhas obras para a exposição", justifica.
Luana Diogo acrescenta que a escolha de filmes vencidos e de reveladores artesanais, como a cajuína, acrescenta camadas sensoriais às narrativas: "O tempo se manifesta fisicamente nas imagens", observa.
Marília Oliveira, que também assina a expografia (projeto de montagem da exposição), buscou criar um percurso que potencialize a leitura das obras. "A expografia procura dar visibilidade às obras de cada uma, estabelecendo diálogos internos e um fluxo narrativo que envolva o público. É um trabalho de generosidade, para que o espectador viva a polifonia da exposição", explica.
Já Dayane Araújo destaca o papel da curadoria e da produção executiva do projeto. "Além de artista, estive integralmente envolvida na montagem, integrando diferentes linguagens, imagens e suportes para que a exposição fosse percebida como corpo comum, mas mantendo a singularidade de cada obra", detalha.
Em "Bezoar do Tempo", o público é convidado a revisitar suas próprias memórias. As artistas relatam que algumas pessoas, após visitarem a mostra, "voltaram a olhar fotografias de família esquecidas, revisitando álbuns guardados por anos".
Entre imagens de infância, retratos de avós, cartas e objetos cotidianos, "Bezoar do Tempo" propõe uma experiência de rememoração coletiva, lembrando que histórias pessoais carregam marcas universais.
O tempo em uma forma sensível e experimental
De acordo com as artistas responsáveis pela mostra, a exposição também reflete sobre o tempo de forma sensível e experimental.
"Exploro os limiares da imagem técnica, transitando da cianotipia ao videomapping, para acessar um território em que a memória e o sonho se encontram. É uma espiral de fabulação da memória, simultaneamente intuitiva e intencional", comenta Taís.
Dayane acrescenta que, além das instalações coletivas, materializou três obras inéditas que abordam a natureza humana. "Elas atravessam do nascimento
à velhice, e mostram
como a memória pode extrapolar o suporte, indo além das molduras impostas", acrescenta.
Luana reforça que a fotografia analógica usada na exposição não apenas registra, mas também dá forma à ficção. "Cada filme vencido é um receptáculo de memória. O processo de revelação é criação; cada camada sensorial acrescenta ao Ceará que ficcionalizamos", diz.
Já Marília destaca a composição narrativa: "Misturo fotografias e objetos da minha família a outros encontrados ou comprados, preenchendo lacunas de memória. A fotografia aqui é chance de fabulação, não apenas prova ou registro", detalha.
Mais do que uma exposição, "Bezoar do Tempo" se apresenta como convite a repensar as formas de guardar, esquecer e reinventar.
Exposição "Bezoar do Tempo"