Uma das minhas brincadeiras preferidas na infância era cobra-cega. Ter os olhos vendados era a parte mais desafiadora do jogo. Lembro da sensação de agonia de não poder perceber o espaço pela visão e, mesmo em desvantagem, precisar pegar os oponentes. Na peça "Feliz Ano Novo", do grupo Teatro dos Sentidos, a proposta de assistir a uma peça de olhos vendados despertou essa memória, mas não foi nada parecido.
Acompanhada do jornalista e repórter do O POVO Carlos Viana e do professor de português Júlio César, duas pessoas com deficiência visual, os nossos papéis se inverteram logo no corredor, antes de entrar na sala de dança Hugo Bianchi, do Theatro José de Alencar (TJA). Formando uma fila, recebemos as vendas pretas antes mesmo de entrar no recinto onde aconteceria o espetáculo na tarde do sábado, 23 de agosto.
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Com cegueira adquirida, a noção espacial de Carlos o levou a assumir a posição de guia, antes ocupada por mim, que estava "emprestando-lhes os olhos" até então, como disseram Carlos e Júlio. "Deixa eu ficar na frente", falou Carlos, liderando o caminho e avisando antes de entrar na sala: "À tua esquerda, tem um batente". Em uma posição um tanto vulnerável, fui até a cadeira segurando o braço do meu colega jornalista.
Lembrando da cobra-cega, imaginei que ficaríamos eu e o meu incômodo assistindo à peça de mais de uma hora de duração. Depois que todos se acomodaram em seus assentos, os atores se certificaram de que cada pessoa estivesse confortável. Segurando minhas mãos, alguém perguntou se estava tudo bem, ao que respondi, em meio a um riso nervoso: "Mais ou menos". Carlos, sentado ao meu lado direito, riu, nada nervoso.
E então deu-se início à história de Gabriel, um adolescente apaixonado que recorre ao livro "Antologia Poética", de Vinícius de Moraes, para obter respostas sobre os seus sentimentos. Nas páginas, ele acaba encontrando uma dedicatória misteriosa de uma tal "Dama do Mar" ao pai Roberto, viúvo e comandante da Marinha. A partir daí, por meio das memórias de Roberto, desenrola-se sua antiga história de amor de Carnaval.
Júlio César, pessoa com baixa visão, confessa ter sentido receio de que "Feliz Ano Novo" trouxesse uma abordagem capacitista, mas saiu da sala satisfeito com a peça e elogiou a construção da narrativa. Por ser professor de português da rede pública, os poemas de Vinícius de Moraes e a história de amor lhe tocaram em um nível a mais.
A dramaturgia "Feliz Ano Novo" propõe uma experiência que aguça paladar, olfato e audição. Para além das falas, números musicais como "O Que É O Que É?", de Gonzaguinha, formam imagens vívidas na imaginação. Qual não foi minha surpresa ao desvendar os olhos, no fim da peça, e ver os atores padronizados com uma camisa preta do Teatro dos Sentidos.
Enquanto a narrativa se desenvolvia, visualizei atores vestindo roupas coloridas nas cenas que traziam clima de festa - seja pela música dançante ou pelo confete jogado - um barco à beira-mar como cenário de um romance e a lua ao soar de Beethoven. A surpreendente sensação de imersão imagética lembra o que fazem os livros. Os sons - vozes, músicas e efeitos sonoros - adicionam camadas de conexão com o universo narrativo.
A entrega de guloseimas e outros objetos ao longo da peça, outra ferramenta de imersão, acabou me distraindo da história em diversos momentos. Pipoca, biscoito, uma pequena taça de champanhe, uma rosa, um bombom e um doce que, palpitamos, era sabor mamão foram entregues em nossas mãos ao longo do espetáculo. Enquanto tentava desvendar o objeto em mãos, a história acontecia sem a minha atenção.
Mas não distraiu Júlio, que brincou que "é muito bom esses espetáculos que a gente come". Se há algum ponto negativo para a experiência dele e de Carlos, é que o romance entre Roberto e a "Dama do Mar", que os deixou emocionados, não tem exatamente um fim feliz. A expectativa deles era de que Gabriel, o filho do marinheiro, conseguisse unir o casal novamente.
Mais que um espetáculo, o Teatro dos Sentidos promove uma experiência para o seu público, seja cego ou enxergante, colocando a acessibilidade não como uma ferramenta, mas como parte constituinte da narrativa.
Vida longa ao Teatro dos Sentidos
Texto do jornalista Carlos Viana
Quando recebi o convite para assistir à peça "Feliz Ano Novo", do grupo Teatro dos Sentidos, minha reação foi a de ficar com o pé atrás. Fiquei com medo de como a inclusão seria realizada, uma vez que, em muitos casos, é aquela "coisa meia-boca", "para inglês ver".
Confesso que fiquei surpreso e feliz de ter tido a oportunidade de assistir a esse espetáculo.
Em primeiro lugar, algo que me chamou atenção foi o público, com todos os ingressos esgotados. Em segundo, como os atores se dirigiram à plateia no início, explicando o que iria acontecer e fazendo suas descrições, técnica conhecida como "autodescrição".
Com as vendas nos olhos, fomos encaminhados para uma sala, onde ocorreria o espetáculo. O estranho foi que eu, uma pessoa cega, me vi guiando a Júlia, uma pessoa com visão normal, mas que, naquele momento, não enxergava.
A obra trazia a história de Gabriel, um adolescente vivendo os altos e baixos do primeiro amor. Para impressionar a menina por quem estava apaixonado, Gabriel decide procurar, na biblioteca de seu pai, uma poesia que representasse seu sentimento.
O pai de Gabriel é Roberto, um oficial aposentado da Marinha Brasileira. Ao mexer nas prateleiras, Gabriel encontra um livro de Vinícius de Moraes. Além da poesia em si, Gabriel encontra uma dedicatória na capa do livro, assinada por uma pessoa apenas chamada de "Dama do Mar". Ele também percebe que o livro está com um cheiro de perfume de mulher. Nesse momento, um cheiro feminino é borrifado na sala.
Impressionado com a história, Gabriel vai até à cozinha, onde seu pai prepara o café da manhã. A narradora da peça diz que, entre os quitutes para o desjejum dos dois, Roberto está fazendo pipoca. Mais uma vez, nossos sentidos foram estimulados ao sentirmos um cheirinho de pipoca sendo feita. Mas a surpresa não parou aí: instantes depois, uma pessoa foi passando em cada cadeira com uma bacia cheia de pipocas. Eu, que adoro a iguaria, comi com gosto.
Outro ponto que me chamou a atenção foi um trecho da peça no qual é executada a 9ª Sinfonia de Beethoven, composta quando ele já havia perdido a audição. No fim do espetáculo, há uma fala contundente, mostrando vários dados relacionados às pessoas com deficiência no Brasil, e com provocações feitas ao público sobre a real inclusão dessas pessoas na sociedade.
Eu já tinha ouvido falar no Teatro dos Sentidos, criado no fim dos anos 1990 por Paula Wenke. Mas nunca tinha tido a oportunidade de assistir a um espetáculo.
O Teatro dos Sentidos usa e abusa com maestria da acessibilidade estética, quando a acessibilidade é concebida desde o início da obra, estando presente a cada momento, e não como um puxadinho, como executado na maioria das vezes, com recursos sendo implementados às pressas, muitas vezes não porque os produtores entendem a necessidade da inclusão, mas por obrigação legal.
Como o título da peça é "Feliz Ano Novo", espero que esse seja um prelúdio para que os próximos anos, no que diz respeito à acessibilidade, sejam cheios de oportunidades incríveis como essas, onde pessoas com deficiência são acolhidas como devem, com muito
respeito e cuidado.
É preciso entender que recursos de acessibilidade, não apenas em espetáculos culturais, mas, sim, em todos os âmbitos da sociedade, são um direito, e não uma caridade.
Mais uma vez, meus parabéns ao Teatro dos Sentidos. Vida longa ao grupo.
GRUPO
O espetáculo "Feliz Ano Novo" foi apresentado em curta temporada, em Fortaleza, no fim de agosto, em eventos sempre com ingressos esgotados. O Theatro José de Alencar e o Instituto dos Cegos receberam as apresentações. O grupo é itinerante, portanto, não possui uma cidade como sede fixa - realizando apresentações em todo o País.