Museu não é apenas prédio e acervo. É lugar onde o tempo ganha corpo, onde histórias e sentimentos se tornam tangíveis, e onde tradições se perpetuam. No Ceará, essa experiência encontrou nova forma nos Museus Orgânicos, iniciativa que transforma residências, restaurantes e propriedades particulares em espaços de preservação de cultura, educação e memória.
Diferente dos museus convencionais, os Museus Orgânicos não são apenas pontos de visitação turística: eles são arquitetura de admiração, territórios habitados por mestres que transmitem saberes, práticas e histórias de vida.
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Com apoio do Sistema Fecomércio, do Sesc e da Fundação Casa Grande, os museus valorizam saberes locais, promovem turismo sustentável e fortalecem identidades comunitárias. Ao todo, já são 24 espaços dedicados à preservação das tradições culturais do Estado.
Segundo Alemberg Quindins, gerente de cultura do Sesc Ceará e idealizador do projeto, esses museus unem educação, memória e território: "O território, os saberes, o fazer e a memória se conectam de forma que estudantes e pesquisadores aprendem diretamente com os mestres. É educação, cultura e memória acontecendo em tempo real", explica.
Para ser considerado Museu Orgânico, um espaço precisa atender a alguns critérios: deve pertencer a um mestre reconhecido pela comunidade e por si mesmo como detentor de determinado saber; ser habitado e vivo, transmitindo histórias e práticas.
"Antes de pensar em turismo, pensamos em educação. Esses espaços mostram aos jovens que a cultura e o território têm valor, que as tradições familiares e comunitárias merecem reconhecimento e preservação. Depois, o turismo vem como consequência, fortalecendo a economia local e o senso de pertencimento", complementa Alemberg.
O primeiro Museu Orgânico de Fortaleza foi inaugurado em 16 de fevereiro de 2024: o Albertu's Restaurante, presente na Barra do Ceará desde 1964, comandado por Alberto de Souza. Ali, a gastronomia tradicional litorânea se mistura com memórias de um bairro que cresceu junto com ele, que chegou à Capital ainda criança, vindo de Pacoti com a família.
Hoje, Alberto é um homem de profunda ligação com a Cidade, crescido no mesmo espaço, aprendendo desde cedo com o pai o valor da dedicação e da história contada entre pratos e conversas.
"Eu cresci no bar do meu pai, vendo-o atender todo mundo, misturando risadas com histórias da Barra. Cada mesa, cada utensílio, cada foto aqui tem memória. Quando alguém vem visitar, eu vejo nos olhos deles a emoção de descobrir o passado da nossa comunidade. É como se a casa inteira falasse conosco", relata orgulhoso.
Ele recorda a empolgação com a transformação do restaurante em museu orgânico: "Quando soubemos que o Albertu's seria o primeiro Museu Orgânico de Fortaleza, foi uma emoção que não dá para explicar. É orgulho, é felicidade, é responsabilidade. Agora, não servimos apenas comida, servimos cultura e memória".
Um dos momentos mais marcantes foi o convite para a transformação em museu. "No começo eu não entendi direito. Eles disseram: 'Nós já temos museus orgânicos no Cariri e queremos trazer para Fortaleza. E o primeiro local que pensamos foi a Barra do Ceará, que é o Marco Zero da Cidade. Seu estabelecimento é o restaurante mais famoso da Barra", rememora, com emoção.
"A ideia era transformar em um museu orgânico, um espaço gastronômico e cultural. Eu fiquei pensando, porque 'museu' é um nome de muita responsabilidade. Mas logo vi que se tratava de um museu vivo, de memória, de gastronomia. E sim, o Albertu's preserva essa memória e tradição. Acho que o lugar, com sua paisagem, merece ser o primeiro museu orgânico de Fortaleza", comenta.
Além de Alberto, Francisca Maria, funcionária e fotógrafa do restaurante, é responsável por registros que adornam as paredes. "Registro sorrisos, a natureza, pratos sendo servidos, memórias do bairro. Quem visita sente essa energia e entende que não é só um restaurante, é a vida de uma comunidade inteira condensada num lugar só", conta Francisca, orgulhosa.
"Quando alguém olha uma fotografia e me pergunta sobre a história por trás dela, vejo a emoção nos olhos da pessoa. É gratificante perceber que, através das minhas imagens, conseguimos manter viva a memória do Albertu's e da Barra do Ceará".
Alemberg Quindins complementa a visão de Alberto e Francisca: "O Albertu's é um exemplo de como um espaço cotidiano pode ser transformado em patrimônio vivo. O restaurante mostra que história, memória e educação podem conviver de forma natural".
Alberto conclui: "Contar essas histórias para quem visita é como dar voz ao passado da Barra do Ceará, mostrando que nossas vidas, nossas lutas e alegrias têm valor. Quando alguém chega aqui e sente o cheiro da peixada, prova o baião de dois e entende o que a Barra representa, sinto que cumprimos nosso papel", conclui Alberto.
Cultura alimentar como patrimônio vivo
Para Vanessa Santos, consultora de Gastronomia do Senac Ceará, os Museus Orgânicos são ferramentas que transformam a cultura alimentar em patrimônio vivo. "Eles mostram que a comida é memória, identidade e resistência. Não apenas produto de consumo", afirma.
Ao dar visibilidade a mestres da cozinha e registrar histórias que antes circulavam apenas na oralidade, esses espaços garantem que técnicas e ingredientes não caiam em desuso. O impacto vai além do cultural: promove geração de renda, turismo de experiência e fortalecimento de cadeias curtas de produção.
A gastronomia, lembra Vanessa, é linguagem universal e educativa, capaz de unir história, saúde e sustentabilidade. "Quando o visitante põe a mão na massa, cozinha, prova e sente, cria uma memória sensorial profunda e duradoura", explica.
Para ela, os Museus Orgânicos reforçam pertencimento, inspiram novas gerações e conectam tradição e inovação sem perder vínculo com as raízes.
Tradições que alimentam identidades
Se o Albertu's Restaurante é o marco inicial dos Museus Orgânicos em Fortaleza, a Casa dos Licores, em Viçosa do Ceará, e o Lavida, na Chapada do Araripe, expandem a compreensão de memória e saberes no território cearense. Ambos mostram que gastronomia, agricultura e tradições familiares podem ser transformadas em patrimônio cultural vivo.
O museu da Casa dos Licores foi inaugurado no dia 29 de novembro de 2024 pelo Sistema Fecomércio, por meio do Sesc, em parceria com a Fundação Casa Grande. O espaço preserva a memória da família Mapurunga Miranda, que há décadas mantém viva a produção artesanal de licores, doces, compotas, geleias e biscoitos de goma.
A história começou ainda na década de 1950, com o casamento de Alfredo e Terezinha, que combinaram seus saberes familiares para criar produtos que se tornariam referência na gastronomia da Serra da Ibiapaba. Hoje, a filha primogênita, Tereza Cristina Mapurunga Miranda Magalhães, continua a tradição.
"Na verdade, fazer artesanalmente licores era um trabalho estritamente feminino, herança da enculturação portuguesa do período colonial. O papai, Alfredo Miranda, dominava a arte de uma boa destilação da cachaça, que era a base dos licores produzidos pela mamãe, Terezinha Mapurunga. Com o passar do tempo, o papai passou também a ajudar na produção, mas sempre sob a coordenação de Terezinha, que dominava a cozinha", relembra.
Tereza Cristina destaca o pioneirismo da mãe, que transformou a tradição familiar em empreendimento: "O diferencial da Terezinha para com as suas ancestrais foi o fato dela empreender. Mamãe se utilizou do conhecimento do 'fazer' para produzir para a comercialização. Da década de 1960 até o momento atual, a mercadoria vendida na bodega do papai era o que a mamãe produzia na cozinha da casa: petas, sequilhos, doces diversos e os licores".
Para Tereza Cristina, a Casa dos Licores mantém duas funções principais: o "fazer", preservando a gastronomia antiga, e o "comercializar", mantendo a bodega com a mesma forma primitiva. A missão do museu vai além: "Preservar os saberes, receitas, costumes e histórias, como patrimônio imaterial, e o acervo físico da casa, design arquitetônico, móveis, documentos, fotografias e a gastronomia antiga, como patrimônio material", enumera.
Ao se tornar Museu Orgânico, a casa passou a receber visitantes interessados na história e no sabor da Serra da Ibiapaba. Para Tereza Cristina, a importância desse reconhecimento vai além do turismo: "Percebemos ao longo de nossas vidas a importância da preservação e divulgação do nosso trabalho pela identificação da mesma realidade com as demais pessoas que nos visitavam. A Casa dos Licores não vende somente a gastronomia antiga, ela vende a história, as lembranças, as emoções".
O Museu Lavida, na Chapada do Araripe, complementa essa narrativa a partir da agricultura familiar e da sustentabilidade, mostrando que práticas tradicionais podem se alinhar a princípios agroecológicos e de preservação ambiental.
Fundado com apoio da Fundação Casa Grande, o Lavida integra a criação de abelhas, cultivos agroflorestais e extrativismo racional, transformando o espaço em um verdadeiro laboratório a céu aberto.
Para Damiana Vicente, matriarca da família do Lavida, o museu é a materialização de um legado que une ciência, tradição e sustentabilidade: "O museu chega para eternizar quem somos, para valorizar o que fazemos, para homenagear nossas ações, para fortalecer ainda mais o nosso papel, para reconhecer o agricultor familiar, que tem um papel fundamental, por que nós somos muito felizes em produzir alimentos de qualidade, limpos, livres de inseticidas e fertilizantes. Sabemos cultivar a terra e fornecemos o que ela precisa para produzir alimento".
O Lavida destaca-se também pela produção de mel agroecológico, reconhecidos pela pureza e complexidade florística. A agricultura familiar se transforma em instrumento de educação ambiental e alimentar, acolhendo visitantes em experiências imersivas, rodas de conversa e visitas técnicas, conectando ciência e saber popular.
"A agricultura familiar revela sobre a cultura do Brasil e do mundo, que alimentação é cultura. Na agricultura temos histórias, tradições de gerações para gerações, crenças religiosas, costumes, valores. E a natureza revela conhecimentos que só quem nela vive pode contar", explica Damiana Vicente.
Tanto a Casa dos Licores quanto o Lavida reforçam a ideia central dos Museus Orgânicos: a valorização de saberes, a preservação de memórias e a educação das futuras gerações.
"Os Museus Orgânicos nos tornam eternos. Nossas vidas, nossas histórias estão registradas nas memórias vivas de quem nos visita. Os objetos principais do museu são as próprias pessoas que nele vivem e o papel da comunidade é simplesmente valorizar o que temos, quem somos, pelo que fazemos", conclui Damiana.
Por meio dessas experiências, os Museus Orgânicos do Ceará demonstram que patrimônio não é apenas objeto: é vida, memória e território, tudo construído por pessoas que trabalham, convivem e compartilham conhecimento.