Se a equipe curatorial da CasaCor olhou para o ecossistema das cidades para chegar ao tema "Semear Sonhos", o grande homenageado da edição de 2025 já semeava alguma espécie de sonho, enquanto corria sob o sol quente de Arneiroz, no Sertão de Inhamuns, no Ceará.
Nascido Espedito Velozo de Carvalho, em 1939, antes de se tornar o artesão que iria recontar o Ceará por meio do couro, cores e texturas, Espedito seguiu os passos de seu pai, avô e bisavô, que também carregaram a alcunha de "seleiro".
Em busca de melhores condições de vida, a família passou por Campos Sales e Nova Roma, no distrito de Tamboril, até chegar em Nova Olinda, quando Espedito tinha por volta de 10 anos, por onde se instalou.
Aos 85 anos, o ateliê que desenvolveu ali segue sendo laboratório criativo, em que o couro de boi e de cabra ganham forma para estampar móveis em salas, passarelas em desfiles e andar em pés que caminham Brasil afora.
"Sou escravo do meu trabalho. Me levanto às 4h da manhã, venho para a oficina para fazer os moldes, que é para, quando o resto do pessoal chegar, já estar tudo pronto", afirma.
O restante do pessoal se caracteriza por um grupo seleto de aprendizes, que participam das oficinas e reproduzem o trabalho manual ao lado de Espedito.
Ao ser questionado sobre o sentimento de ser homenageado no evento que entrelaça a sua produção com o design e a arquitetura, Espedito reflete também sobre a continuidade de uma tradição.
"Eu acho que isso (a homenagem) é muito bom, porque é o que mantém a nossa cultura. Temos que mantê-la viva, para que amanhã e depois, quando não estivermos mais aqui, ainda tenha alguém para continuar fazendo. É por isso que tenho um grupo familiar, e o que eu puder ensinar eu passo para eles. Já que o povo está dando valor e está querendo aprender, é o que eu posso fazer. Se Deus quiser, enquanto o mundo for mundo, a gente vai manter nossa cultura viva", afirma.
Tradição partilhada
Para Francisco Santana de Carvalho, entre tantos artesãos igualmente talentosos no Nordeste, o sucesso de seu pai se explica por "um traço único que atribuiu ao couro uma história de luta e dedicação".
Conhecido como Maninho Seleiro, o caçula de Espedito é um dos designers do selo, que atua na criação dos moldes ao lado do pai, do irmão Wellington e de alguns netos do artista que já se aventuram na confecção.
"Me sinto com muita responsabilidade, mas é essa troca de experiências e saberes que me enche de prazer e encoraja para darmos continuidade ao ofício. Ao lado dele, damos oficinas e incentivamos uma nova geração, entre eles minha filha e meus sobrinhos", conta.
Traço que abre caminhos
Veredas: caminho estreito, geralmente de terra, que atravessa campos, matas ou sertões. Atravessando gerações, a coleção que carrega esse mesmo nome foi desenvolvida por Léo Ferreiro e Espedito em março de 2025. Uma poltrona, uma mesa lateral e uma luminária integram o projeto, que uniu o traço de Espedito ao design funcional que Ferreiro estabelece em sua carreira.
"Veredas são caminhos que existem na paisagem do sertão. A sonoridade do nome é seca, como ambiente semiárido, e combina com a forma das peças da coleção", explica.
Com formas curvas e cores vivas, os modelos feitos exclusivamente para a coleção surgiram de um processo compartilhado entre os dois.
"Houve um diálogo para entender o uso dos materiais, técnicas e expressão do senhor Espedito, e a partir disso pensamos cada peça. Conhecer a cultura e expressar através do design é uma parte que eu acho importante do meu trabalho. Criar com um mestre da nossa cultura é um grande prazer. Eu acredito que o respeito à tradição é essencial para uma cultura que busque crescer de forma saudável em um contexto globalizado", ressalta Léo.
Enraizada e universal
Proponente da coleção "Veredas", desenvolvida pelo homenageado e por Léo Ferreiro, Germana Mourão entende na prática que a grandeza do trabalho de Espedito nasce das raízes.
"A obra dele, é por si só, o ato de 'semear sonhos': seus desenhos e cores reinventam a tradição do couro e a transformam em poesia visual, mostrando que a memória pode ser fértil e dar novos frutos. Ele traduz o sertão em arte viva, que inspira e projeta o futuro sem abandonar as raízes", afirma.
À frente da Coordenadoria de Desenvolvimento do Artesanato da Central de Artesanato do Ceará (Ceart), Germana vê diariamente diversas peças que representam a feitura manual do Estado e é testemunha das transformações que a produção artesanal cearense sofreu ao longo dos anos.
"A obra dele tem uma identidade única. Muitos tentam copiar, mas o que de fato permanece é a inspiração que ele desperta. Designers de moda, artesãos do couro e criadores de diferentes linguagens dialogam com sua estética sem imitar, mas deixando-se guiar pela sua originalidade. Sua arte ultrapassa fronteiras, porque é, ao mesmo tempo, profundamente enraizada e universal", destaca.