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O mestre além das sandálias
Vida & Arte

O mestre além das sandálias

Edição Impressa
Tipo Notícia

Meu pai não perdia a oportunidade de citar "Ne sutor supra crepidam", cujo significado, sem os rigores da tradução, é "Não suba o sapateiro além das sandálias". Como se sabe, o conselho, imortalizado em latim por Valério Máximo, escritor romano, se refere ao caso do artesão que, depois de ter apontado na tela do pintor grego Apeles o erro no calçado de um personagem, se sentiu no direito de corrigir outros aspectos da obra, para a indignação do autor do quadro.

Se tomada a frase no sentido literal, devemos ser gratos ao destino por Espedito Seleiro não ter limitado a sua arte ao rés do chão. E ter feito muito mais do que honrar a tradição de seus antepassados, em que figura o modelo de solado retangular, batizado como "quadrado", encomenda de Lampião ao pai de Espedito. Para quem não conhece a artimanha, a função do formato incomum era despistar as volantes no encalço do famoso cangaceiro, dele perdendo o rastro, sem descobrir a direção da pegada. Essa história ouviu contar, desde criança, quando aos oito anos aprendeu o ofício paterno.

Não eram os sapatos, porém, e sim as selas a despertarem nele maior prazer no processo de confeccionar, transformar a matéria-prima em objeto de uso, de modo que seleiro virou não só alcunha, mas também sobrenome. Mudanças sociais e econômicas quase desapareceram com o aboio dos vaqueiros, veio a escassez de pedidos das peças de montaria, e, para alimentar os irmãos mais novos, o arrimo de família não estacionou à altura dos quadris.

Contudo, saciar o estômago foi pouco para um artista apaixonado. Então ele subiu novamente, desta vez, rente ao coração, presenteando com o seu talento caprichoso o amor da sua vida. Assim, na proposta do compromisso, a prenda oferecida à Francisca — parceira no casamento, que se estendeu da década de 1960 à morte dela em 2020 — foi uma joia feita para a moça usar nos pés, não nas mãos: um par de sandálias.

Com esposa e filhos — e saberes compartilhados —, do coração à liberdade da imaginação, ergueu-se o seleiro. Os tempos exigiram o incremento do negócio, diversificar a produção. Bolsas, carteiras, mobílias ganharam as curvas e os recortes dos gibões, estilizados com a flor de lis, a estrela de oito pontas, o colorido cigano, o marrom da casca do angico, o vermelho do urucum, o branco e o amarelo, obtidos com tratamentos naturais, e um onipresente coração.

Nascido em Arneiroz, no Sertão dos Inhamuns, Espedito Seleiro escolheu Nova Olinda, no Cariri, para viver e prosperar. Próximo à Chapada do Araripe, na terra onde teria brotado a primeira flor do planeta, ele se estabeleceu para atender a quem vem de toda parte. Do anonimato da gente da região às celebridades nacionais, das listas de Violeta Arraes — à época reitora da Urca — ao figurino de "O Auto da Compadecida", das demandas dos desfiles da São Paulo Fashion Week às passarelas de Paris, Milão e Londres, o coração da sua arte vem pulsando sempre mais forte. A estrela de couro do grande mestre se elevou, inalcançável. Brilha altíssima.

Crônica de Marília Lovatel - escritora, redatora publicitária e colunista do O POVO .

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