Dos recém completados 30 anos de vida de Henrique Sales, o Ricco, mais da metade foi nutrindo um “desagrado de morar no Bom Jardim”, onde ele nasceu, se criou e vive até hoje. Só por meio das lentes, entretanto, o realizador audiovisual descobriu o seu território de origem. “Eu acho que a arte, o cinema trouxe esse sentimento de orgulho de estar fazendo o que eu faço e me proporcionou conhecer um Bom Jardim que eu não conhecia”, diz.
INSTAGRAM | Confira noticias, críticas e outros conteúdos no @vidaearteopovo
“Eu não gostava do meu bairro, porque para onde eu fosse as pessoas zoavam de mim. Então eu sempre tive vergonha. E hoje não. Hoje eu sou defensor do Bom Jardim. Amo o Bom Jardim, faço filmes no Bom Jardim”, declara. Desse orgulho e do desejo de impulsionar a produção audiovisual do território, o realizador criou o Repositório da Memória e Arquivística Audiovisual do Grande Bom Jardim (Rema).
“Cadê a história do nosso bairro pelo viés do cinema?”. Esse questionamento semeou a ideia do projeto em 2023, junto do cineasta Elvis Alves e de Willi Sales, então estudante de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Ceará (UFC). Eles se inscreveram nos Laboratórios de Pesquisa do Ceentro Cultural Bom Jardim (CCBJ), um eixo de formação do equipamento, e só então compreenderam que a resposta para a pergunta que buscavam era a preservação.
Nos cinco meses de processo de pesquisa no CCBJ, durante o qual Ricco fez a compra de um leitor de DVD com a bolsa de pesquisador para fazer digitalizações, o trio chegou a mapear 40 filmes feitos no território. Inicialmente, eles sequer sabiam o que fariam com as produções encontradas, só queriam que as pessoas tivessem acesso. “A gente sabe que o bairro já tem uma produção audiovisual desde muito tempo. E que a gente não tem acesso ou é muito difícil acessar.”, declara Ricco Sales.
“Era muito difícil ter referências”, pontua sobre o cenário de preservação voltado para o audiovisual. “Não temos uma política de preservação e eu acho que é uma coisa bem geral do Brasil”, afirma o realizador, que destaca o Museu da Imagem e do Som (MIS) como a única iniciativa de preservação audiovisual em Fortaleza encontrada por eles à época.
O Rema engatou de vez quando Ricco e Willi fizeram o curso de Preservação Audiovisual da Vila das Artes. Na formação, aprenderam a trabalhar com película, fita magnética, DVD e outros materiais e a catalogar as obras por meio de um software livre. Com apoio de uma das professoras, eles criaram metadados, definiram como e quais informações seriam inseridas e como fariam a guarda dos filmes. “O curso foi o divisor de águas para pro Rema nascer”, conta Ricco.
O que faltava para o lançamento era fazer o site e catalogar as produções. Hoje trabalhando sozinho no projeto, o realizador continua catalogando os filmes encontrados. Ele os disponibiliza no site e documenta informações como ficha técnica, sinopse e ano de produção. Incluindo obras da produtora Bom Jardim Produções e do CCBJ, o acervo já soma cerca de 100 títulos a serem catalogados.
Desse número, 20 estão registrados no site do Rema. Em sua maioria, curtas-metragens. Entre as produções mais antigas, a maioria das produções são documentários, contrapondo-se às produções dos últimos anos. “Antigamente, eu acho que a gente buscava ter essa voz. A gente lutava por essa voz. E hoje eu acho a gente usa o audiovisual com essa voz que a gente tem hoje e tá criando essas novas histórias”, avalia Ricco Sales.
"O Ceará possui uma longa trajetória de luta"
Especialista em preservação, conservação e digitalização, Gabriela Dantas afirma sentir "falta de um mapeamento e inventário que abranja quantitativamente as produções realizadas". Preservadora audiovisual do Museu da Imagem e do Som (MIS), ela aponta esse como "um dos primeiros passos necessários para que possamos pensar em como resgatar e tratar diversos acervos de relevância para o Estado".
"O Ceará possui uma longa trajetória de luta pela permanência da produção e difusão audiovisual", afirma Gabriela Dantas. A preservadora audiovisual destaca entre essas iniciativas a ativação de laboratórios dedicados ao tratamento, digitalização e restauro digital de películas cinematográficas do MIS, além do curso de Preservação Audiovisual da Vila das Artes e editais e programas de fomento - como a Lei Paulo Gustavo (LPG) - que destinam recursos ao setor audiovisual.
Defendendo a necessidade de uma continuidade efetiva nas políticas culturais, a especialista considera que "já estamos avançando no sentido de contar com um equipamento público que possui tecnologia avançada para conservação e restauro", referindo-se ao MIS. Por outro lado, ela observa a "ausência de um inventário estadual que abranja as produções audiovisuais cearenses e que seja descentralizado, para permitir uma compreensão mínima do que foi e continua sendo realizado".
Nessa perspectiva, Gabriela Dantas fala sobre o Rema como um projeto "essencial para fortalecer identidades locais e descentralizar as narrativas culturais, além de trazer a preservação audiovisual como um instrumento de permanência, resistência e transformação social". Para ela, o cinema é uma ferramenta de "representação, preservação e valorização da memória territorial, seja por meio da autorrepresentação de uma cultura local ou como uma forma de romper com os olhares que tradicionalmente dominam a produção cultural".
REMA