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Vilãs ou apenas humanas? Como a dualidade dos antagonistas impacta a recepção do público
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Vilãs ou apenas humanas? Como a dualidade dos antagonistas impacta a recepção do público

Grandes vilãs e vilões do audiovisual escancaram a importância de antagonistas e anti-heróis nas produções audiovisuais
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Caminha (Adriana
Esteves) é a vilã
de Avenida Brasil (Foto: Alex Carvalho/Globo/Divulgação)
Foto: Alex Carvalho/Globo/Divulgação Caminha (Adriana Esteves) é a vilã de Avenida Brasil

Nesta segunda-feira, 6, o Brasil assiste novamente a uma cena que parou o País em 24 de dezembro de 1988: a morte de Odete Roitman, de "Vale Tudo". Ainda hoje, o acontecimento, no qual a vilã é baleada, é lembrado por adiar ceias de Natal de famílias de todos os estados em torno do mistério mais marcante da teledramaturgia brasileira.

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Odete Roitman está no imaginário coletivo como uma das mais cruéis e impiedosas antagonistas do Brasil, com seu ódio à pátria, manipulação e preconceitos. Na época, todos amavam odiar Odete Roitman, pois era a personagem que movimentava todas as tramas em seu entorno.

Por essa razão, um estranhamento surgiu em 2025: por que o público está simpatizando com a mesma vilã no remake?

Antagonistas movimentam narrativa audiovisual

Principalmente no contexto das novelas e do cinema, são os antagonistas que movimentam os acontecimentos da história. Estruturalmente, os vilões se definem menos por quem são e mais pelo conflito que estabelecem com o herói ou protagonista.

O mestre em Comunicação Ricardo Jorge de Lucena, pesquisador de narrativas e discursos, expõe: "É importante pensar nos personagens sempre em relação entre si. Um personagem não existe sozinho: ele não é herói, vilão ou o que quer que seja isoladamente. Ele é definido pela relação com outros personagens ou com uma situação. Então, teoricamente, um vilão seria um personagem cuja função narrativa é impedir que outro — aquele que o público percebe como herói — realize a ação necessária para o andamento da história".

Assim, além de Odete Roitman, diversos vilões das telas e HQs alcançaram tanto ou até mais popularidade que os "mocinhos" de sua narrativa, como no caso de Malévola ("Bela Adormecida"), Darth Vader ("Star Wars") e Coringa ("Batman").

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Acrescenta-se ainda à fama dos vilões modernos suas novas nuances. Principalmente em novelas e histórias verossímeis, as óbvias "máscaras do mal" têm dado espaço a personagens com mais camadas psicológicas, histórias de origem, dilemas e até justificativas compreensíveis.

Desse modo, um novo arquétipo ganha destaque nas narrativas: os anti-heróis, que parecem mais "humanos" pelas suas características comportamentais e vivências de vida que acabam por apoiar os atos do personagem.

"A noção de herói e vilão muda histórica e culturalmente. E, entre esses extremos, temos o que se convencionou chamar de anti-heróis: personagens que não são totalmente maus nem totalmente bons, mas que, ainda assim, conquistam a aceitação do público", contextualiza Ricardo.

Ele exemplifica: "Nos quadrinhos, temos personagens como o Justiceiro e o Wolverine. Eles matam, são violentos, mas têm motivações próprias, um modo de ser que agrada ao público por parecer mais realista. Nas séries, penso em personagens como o House ou, de forma ainda mais clara, o Dexter. Eles não são exemplos de conduta, ninguém diria para um filho: 'Seja como ele'. Mas, mesmo assim, cativam".

O pesquisador define que foi principalmente a partir dos anos 1970 e 1980 que os anti-heróis começaram a se popularizar. Esse tipo de personagem pode se caracterizar pelo egoísmo, cinismo e até crueldade, mas sempre estabelece um laço de identificação ou empatia. É o caso do policial Capitão Nascimento, no filme "Tropa de Elite".

Vilões questionam heroísmo

Sob uma perspectiva crítica, a presença do anti-herói surge como um questionamento ao ideal de heroísmo e acaba por desestabilizar a oposição binária de "bem versus mal", abrindo espaço para narrativas mais realistas ou críticas da sociedade.

Um dos super-heróis mais famosos e contraditórios do mundo, o Batman, destaca que "ou se morre como herói, ou vive-se o bastante para se tornar o vilão". A frase é dita no filme "O Cavaleiro das Trevas", com interpretação do ator Aaron Eckhart.

Ricardo Jorge opina: "Narrativamente, é sempre mais interessante quando a personagem não é plana. O público perde interesse se já sabe exatamente como ela vai agir. Por isso, personagens ambíguos são mais atraentes".

Carminha
Carminha

Os verdadeirosprotagonistas

As novelas da televisão brasileira talvez sejam o espaço no qual as vilãs tenham mais repercussão, fãs e torcida contrária. Mesmo os mais jovens, que nem se importam em ter um aparelho de TV em casa, já ouviram falar na caricata Carminha, de "Avenida Brasil", ou já se depararam com um meme de Nazaré Tedesco, de "Senhora do Destino". Isso porque, historicamente, as antagonistas da TV são um reflexo da própria sociedade.

Para Chico Barney, colunista do UOL, escritor e influenciador digital brasileiro, são os vilões de uma dramaturgia que principalmente definem a qualidade do produto. "Acho que o apelo público dos vilões vem disso: quando eles são bons, a história também costuma ser boa. Quanto mais interessantes e sofisticados, mais a gente gosta", diz.

O especialista, no entanto, defende que os melhores vilões são aqueles que não apresentam comportamento dúbio. "Quanto menos nuance, mais divertido fica. Nos últimos anos, houve uma tentativa de dar muitos tons de cinza, mas a novela pede exagero, caricatura. É um produto de consumo rápido, de assistir enquanto faz outras coisas. Se tudo é muito sutil, perde o impacto", diz.

Vilãs das telenovelas brasileiras causam fascínio, diz comentarista

Para a comentarista de TV e entretenimento do canal Coisas de TV, Larissa Martins, a simpatia pelas grandes vilãs sempre esteve na cultura brasileira. Ela pontua: "Acho que sempre houve fascínio pela figura da vilã. Elas são mais interessantes justamente porque podem fazer mais coisas na história. E precisamos lembrar: novela é ficção. Existe identificação, claro, mas muitas vezes o fascínio vem justamente daquilo que não podemos ser nem fazer".

Exemplificando a questão com a atual novela "das nove", "Vale Tudo", Chico e Larissa defendem Maria de Fátima Acioli, a Mary Faty. "Acho que ela tem uma malícia, um humor que é muito gostoso de acompanhar.

Às vezes a gente fica até na expectativa de: 'Podia aprontar mais, podia ter mais movimentação'. Acho que a grande vantagem do vilão é justamente essa: ele ajuda a trama a andar para frente. Normalmente, os bonzinhos estão ali tentando levar a vida, melhorar alguma condição, mas é o vilão que desestabiliza tudo e cria a história", ele argumenta.

Larissa argumenta: "A Maria de Fátima virou quase um ícone, facilmente reconhecida, até porque lembra muitas influenciadoras atuais. O público já está acostumado a acompanhar vidas parecidas com as dela, então a identificação é imediata".

 

A vida imita a arte

Assim como na ficção, é comum que pessoas projetem a si e aos outros em arquétipos durante situações sociais. O maior exemplo, nesse caso, são os reality shows, no quais o público escolhe os participantes "certos" e "errados" — assim como mocinhos e vilões.

Considerando as últimas edições do "Big Brother Brasil", Chico Barney opina: "Aí está o problema. Nessa ânsia de fazer justiça, o público muitas vezes acaba atrapalhando a própria trama. Querem eliminar rápido alguém que gera conflito, mas isso prejudica a narrativa".

"Eu nem acho que existam vilões de verdade em reality. O que existe são pessoas diferentes, com erros e imperfeições. Gosto de assistir justamente por isto: ver os acertos e deslizes acontecendo. Todo mundo é falho em algum ponto, e é isso que dá graça", ele acrescenta.

Nesse contexto, algumas pessoas ficaram marcadas como "vilãs da edição" do reality show que participaram. É o caso, por exemplo, da rapper brasileira Karol Conká. A artista estabeleceu conflitos diretos com participantes considerados "mocinhos" do Big Brother 21, Juliette (campeã) e Lucas Penteado.

"Reality show ainda é entretenimento, então funciona com a mesma lógica da novela: precisa de narrativa, conflito, personagens que movimentam a trama. Claro que existe uma camada de realidade, mas não dá para esquecer que o formato é construído para prender a atenção", diz Larissa Martins, comentarista de televisão.

Sobre o caso de Karol, ela debate: "Precisamos separar: uma coisa é um comportamento condenável dentro de um jogo, outra é algo que seria inaceitável fora dele. Mas figuras que só são 'insuportáveis', que fazem o público pensar 'não aguentaria viver com essa pessoa', são essenciais para um reality dar certo".

 

Ninguém quer sertapado

Desde que Odete Roitman de 2025 passou a ser chamada de "loba" (mulher sagaz) nas redes sociais, um ponto de vista ganhou visibilidade entre os comentaristas: "A sociedade está tão perdida que as pessoas estão torcendo e se identificando com vilões".

Essa perspectiva, no entanto, é rasa. Se olharmos para o remake de "Vale Tudo", por exemplo, é difícil ter maior identificação com os "mocinhos" do que com os vilões: enquanto Raquel (Taís Araújo) é ingênua e abre mão de seus sonhos para seguir os valores morais, Odete (Débora Bloch) é esperta e explora seus anseios.

A vilã sofre retaliações dos demais personagens por ser uma mulher sexagenária livre, que explora sua sexualidade e não se deixa abalar por julgamentos. Em capítulos recentes, Odete anuncia que fará seu casamento durante o tratamento de câncer do filho e todos a condenaram.

Certa vez, questionada sobre atuar mais como provedora do que como cuidadora de seus filhos, ela verbalizou: "Vocês iam me amar se eu fosse pai". Tal frase fomentou debates acerca da expectativa atribuída à maternidade.

Odete é uma vilã - pois provocou mortes, manteve um dos filhos em cativeiro e teve falas racistas. Ainda assim, parece mais realista ter momentos de identificação com a antagonista do que com a protagonista que, de tão certinha, se torna estúpida.

As pessoas são mais complexas do que uma linha reta. Afinal, ainda que haja esforço para tomar atitudes corretas, é inerente ao ser humano sentir raiva, inveja e egoísmo.

Ponto de vista escrito pela repórter Raquel Aquino

Não temos permissão de ser más

Quantas vilãs negras você conhece? Se quando se fala em protagonismo negro nas produções de cultura pop ainda é percebida uma ausência, ela se torna maior ainda quando o assunto é vilania.

Apesar de haver grandes nomes no imaginário como a Mulher-Gato de Halle Berry, que tecnicamente é uma anti-heroína, não é comum que atores negros sejam escalados para papéis de vilão. Principalmente mulheres.

E quando são, existe uma necessidade implícita de trazer uma camada mais profunda que justifique essa vilania. Como Killmonger de "Pantera Negra" (2018), que tinha as atrocidades perdoadas por ter sido considerado uma vítima do sistema tentando fazer revolução a sua maneira (mesmo que essa militância significasse destruir um importante recurso ancestral).

Ou, então, no caso de Bianca (Joy Sunday), a "mean girl" de "Wandinha", que era vista como um estereótipo racista apenas por fugir de uma personalidade boazinha.

Ter pessoas negras representando a maldade em obras de ficção é um importante fator para a humanização de pessoas pretas, ainda que em tela.

*Ponto de vista da repórter Eduarda Porfírio

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