Na ponta dos pés, a bailarina encanta com a leveza dos movimentos e com a firmeza de seus passos. Em contato com o piso de madeira, Nicole Lemos, 12 anos, sente as vibrações que vêm do chão e se propagam por todo o corpo. O ritmo da dança é regido pelas ondas sonoras, que agitam as superfícies do salão de ensaios; que agitam o palco. Quando se apresenta, mantém o foco em cada movimento, em cada salto e em cada giro que só o balé é capaz de expressar.
Nicole é surda e, ao calçar as sapatilhas e vestir tutu e colã, sabe que está prestes a revelar seus passos suaves, porém sólidos. À medida que sente o chão vibrar sob seus pés, os movimentos da bailarina natural de Fortaleza tomam forma com fluidez e precisão. Plié, arabesque, jeté, frappé… Cada passo de balé, Nicole executa guiada pela concentração e pela pulsação do som.
"Sim, eu sinto o ritmo da música através do corpo, percebo a pulsação, e, assim, eu vou dançando, lembrando a quantidade de passos que tenho que fazer. Espero, paro e refaço para seguir bem o ritmo da música."
Nicole Lemos
"Eu sinto a vibração no chão, vou sentindo e dançando. Vou sentindo o ritmo e, então, eu me preparo para fazer todos os movimentos, as piruetas e os giros para finalizar. A música tem um ritmo que me faz focar na dança enquanto sinto as vibrações", detalhou Nicole em entrevista ao O POVO feita em Libras.
Para além das vibrações que sente através do corpo, a menina faz uso de outras técnicas para acompanhar o ritmo da música. Sendo integrante da comunidade surda, Nicole explora aspectos da visualidade característica dessa população para lhe ajudar a fixar na mente os passos que executa no palco.
"Foco, danço, sinto o ritmo e estabeleço pontos de foco com minha visão para memorizar e executar os movimentos, prestando atenção nas direções e no meu redor", diz a menina, que visualiza sequências de pontos específicos no ambiente para direcionar sua atenção nos vários momentos da apresentação.
O amor de Nicole pelo balé teve início aos cinco anos. Vanda Uchôa, avó da pequena, logo notou a proximidade dela com a dança, e a incentivou a ingressar no universo.
"Eu comecei a gostar de balé aos cinco anos de idade. Minha avó, Vanda, é professora de balé e percebeu isso, porque me via assistindo a vídeos no YouTube e imitando os passos", relata a menina.
Orleanda Lemos, mãe de Nicole, também tem histórico no balé. Ela explica que sua mãe, Vanda, a ensinou a dançar até a faixa dos 20 anos. Segundo ela, Vanda acompanhou e orientou os primeiros passos no balé tanto dela quanto de sua filha.
Ela explica que se tornou uma tradição que "passa de geração em geração. Vó, mãe e filha dentro do balé. Para minha mãe, isso é algo muito emocionante", pontua Orleanda.
A avó da pequena bailarina a ajudou a desenvolver e aprimorar suas habilidades na dança dos 5 anos até cerca dos 9 anos de idade. Dali em diante, Nicole passou por dois centros de formação de bailarinas.
A primeira escola pela qual a menina passou foi a Escola de Balé Nocturno, no bairro José Walter. Lá, Nicole conta que aprendeu técnicas da dança, como postura, posição dos pés e dos braços e novos movimentos.
Os momentos de aprendizagem da dança, contudo, não se resumiam às competências da prática. A convivência e o desenvolvimento de novas relações com as colegas também foram fundamentais para a evolução.
"Ela amava as aulas, porque ela aprendia o balé e, ao mesmo tempo, se comunicava com as meninas. Elas foram aprendendo Libras para conversar com a Nicole", relata a mãe da bailarina sobre a experiência da filha.
De acordo com Orleanda, Nicole passou mais de dois anos estudando na escola. Após esse período, o centro foi transferido para Eusébio, na Região Metropolitana de Fortaleza, o que tornou inviável a permanência da pequena.
Passados alguns meses sem frequentar aulas, em janeiro de 2024, a menina foi aprovada em um novo centro de formação: a Escola de Dança Janne Ruth, no bairro Cidade dos Funcionários.
Após passar por audições, a garota conquistou uma bolsa integral na instituição. Desde então, Nicole tem tido aulas de balé no local e aprimorado ainda mais suas habilidades e competências.
A bailarina estuda junto a colegas ouvintes, por isso, a professora de dança Raryma Naara busca estratégias tanto para tornar a aula compreensível a todas quanto para integrar Nicole devidamente às atividades da turma.
"A dança é muito visual. Quando eu ponho a música, faço um ritmo com as mãos. Ela olha e executa. Nós temos uma contagem que vai de um a oito. Assim, o meu dedo mexe no ritmo da música, e, desse modo, vamos nos adaptando", detalha a professora, lembrando como se sentiu desafiada com a chegada de Nicole.
"Hoje, eu sinto que tenho essa missão de levar a inclusão para dentro do mundo da dança, porque é muito difícil encontrar surdos que dançam. Então é uma responsabilidade, e eu me sinto bem fazendo isso."
Nicole Lemos
Nas aulas, a proposta é a prática não apenas do balé, mas também de outras modalidades de dança, que, aliás, estimulam a participação coletiva e interação entre as alunas.
Hoje, após a mudança de ambiente para um novo centro, na Cidade dos Funcionários, a pequena encontra dificuldade de conversar com as outras bailarinas.
"O que mais ela sentiu e sente até hoje é a questão da comunicação. Ela consegue se comunicar um pouco com a professora, e vai ensinando Libras a ela. Porém, do que ela mais sente falta é a interação com as meninas", afirma Orleanda.
O papel da representatividade na comunidade surda
As habilidades e aspirações de Nicole se estendem ainda para além do balé, e lhe renderam pódios e premiações. A menina também tem gosto pela prática de ginástica artística, que vem desde quando estudava no centro de dança no José Walter.
"Eu fazia paralelamente balé. Na ginástica rítmica, eu trabalhava com todos os aparelhos: arco, corda, bola e massas", explica Nicole, que revela ter dois grandes sonhos.
"Um dos meus sonhos é ter uma formação como bailarina profissional e poder ensinar outras meninas. Além disso, também quero poder participar das Olimpíadas como ginasta, na ginástica rítmica".
Um outro desejo de Nicole é praticar vôlei. Segundo ela e Orleanda, elas estão em busca de algum espaço que oferte aulas da modalidade esportiva.
Nicole Lemos está imersa na cultura e na comunidade surda, atuando pelas causas dessa população. Ela usa sua presença no universo da dança para levar representatividade.
A bailarina participa e se apresenta em eventos promovidos por entidades da comunidade surda, como a Associação de Surdos do Ceará (Asce).
A mãe da pequena conta que o contato da filha com a comunidade começou desde cedo, ainda aos três anos de idade, quando entrou na escola. Foi lá, na EMTI de Educação Bilíngue Francisco Suderland Bastos Mota, no bairro Rachel de Queiroz, que ela aprendeu e desenvolveu seu uso da Libras e sua interação com crianças surdas e ouvintes.
Orleanda relata que se sente feliz em ver que Nicole sempre se desafiou em expandir sua presença nos diferentes espaços: "Ela começou desfilando, entrou no balé e foi para a ginástica. Ela sempre leva a representatividade da pessoa surda para os mundos da dança e do esporte".
Ela destaca como é importante a comunidade surda ter representatividade em diferentes âmbitos: "Ela está ali, mostrando seu talento, mostrando sua força, representando uma comunidade enorme, forte, rica de cultura".
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