“Não vai durar seis meses”, era o comentário quando foi criada uma universidade no Ceará, há 70 anos. A instituição é personagem de uma obra peculiar: "UFC: biografia de uma universidade", escrita por um dos autores referência do gênero no País, Lira Neto. A publicação foi financiada por patrocínios, sem custo para a Universidade Federal do Ceará (UFC). A distribuição é gratuita.
Lançada pela Editora UFC, a obra não é institucional, tampouco panegírica. “Como toda boa biografia, você tem de levantar as zonas de luz e de sombra da biografada ou do biografado. E dos personagens que estão dentro dessa história”, explica o escritor. Estão presentes as polêmicas, os conflitos, os interesses. A narrativa é rica em bastidores, intrigas e pressões.
É apresentada a complexidade de figuras como Antônio Martins Filho, que pagou viagens do próprio bolso, abdicou de vencimentos como reitor e ainda pagou das próprias economias os adiantamentos à equipe provisória, nos primeiros meses, quando mal havia orçamento disponível. Foi ele também que acionou o Exército, que ocupou a universidade e retirou estudantes que protestavam, ainda antes ainda da ditadura militar. Quando houve o golpe de 1964, ele comemorou. Inclusive, quase virou ministro da Educação. Devido a convênios com os Estados Unidos e às viagens oficiais, o dirigente cearense chegou a ser apelidado “reitor Coca-Cola”.
“A história da UFC sempre foi contada com um viés autocongratulatório, como se fosse uma história quase unipessoal. Eu tentei mostrar que a universidade é uma obra coletiva. Não foi um homem só que fez a UFC. É claro que eu dou todo o protagonismo pro Martins Filho. Ele foi o grande articulador, um grande propagandista também da causa. Mas precisou contar com a ajuda de muita gente”, aponta Lira Neto.
Nesse trabalho de conjunto, emergem intelectuais como Liberal de Castro, Diatahy Bezerra de Menezes, Maria da Guia e Gilmar de Carvalho, e artistas do porte de Antônio Bandeira, Sérvulo Esmeraldo, Chico da Silva, Heloísa Juaçaba, B. de Paiva, Fausto Nilo, Ednardo e Belchior, que transformaram a cultura no Ceará.
Mas a UFC quase esbarrou em interesses políticos. De governador que se especula que queria fazer do filho reitor, do deputado que recebeu promessa de ser indicado para o mesmo cargo, em movimentos que atrasaram a tramitação.
Apesar disso, a inicialmente Universidade do Ceará — recebeu o “Federal” na reforma de 1965 — rapidamente se consolidou e se expandiu. Lira explica isso pelo nacional-desenvolvimentismo da década de 1950, com bancos de fomento e Sudene. Havia demanda de mão de obra qualificada para uma nova economia. “Emergia pela primeira vez na nossa história uma classe média urbana. Isso está no DNA da UFC, criada no semiárido, não só para pensar o semiárido, mas também para desenvolver esse semiárido”, analisa o autor.
A publicação salienta ainda o protagonismo dos estudantes. Desde as primeiras greves, contra o calendário de provas e o uso de autofalantes na Campanha da Legalidade, em defesa da posse de João Goulart. A repressão, com feridos, presos e torturados na ditadura. Até a invasão, ao final do regime, da sala do órgão de espionagem, de onde levaram as fichas de professores, alunos e funcionários, com informações desde posições ideológicas até a vida privada, inclusive com nomes e endereços de supostas amantes.
No auge da repressão, o reitor era a heterodoxa figura de Fernando Leite, que também se notabilizou por medidas folclóricas, como proibição de minissaias e veto a palavrões pelos funcionários no ambiente de trabalho.
O livro conta de momentos dramáticos, como o estupro e assassinato de uma estudante no vestibular, e a morte de Ícaro Moreira, dez meses após assumir a reitoria. Aborda ainda as denúncias, os escândalos e as crises.
Também narra causos divertidos, como a visita de Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, que foram levados até para conhecer a zona de meretrício do Arraial Moura Brasil e gostaram tanto que voltaram desacompanhados no dia seguinte, o que gerou preocupações quanto à segurança — não se sabia a que ponto a cidade turvaria.
Ou o dia em que, acidentalmente ou não, deixaram abertas as gaiolas do laboratório onde ficavam ratos usados em experimentos com alucinógenos e os animais correram desorientados pelo Benfica, ganharam as ruas, até dentro das casas e da Igreja dos Remédios.
O autor já escreveu a trajetória de personalidades como Getúlio Vargas, José de Alencar e Padre Cícero. Mas com nenhum teve tanta familiaridade. “Não conheci pessoalmente nenhum dos meus biografados anteriores. No caso da UFC, eu sou uma cria da casa”, afirma Lira Neto.
Ainda assim, a pesquisa para o livro trouxe descobertas. “Não tinha a mínima ideia dos jogos de poder, das articulações políticas, das puxadas de tapete, da guerra que é a existência da universidade. Minha intimidade com a UFC atingiu um outro patamar”. Proximidade da qual o leitor também compartilha.
Reitoria
A reitoria, antigo palacete da família Gentil, é um símbolo da UFC. Quando era presidente, Juscelino Kubitschek se hospedou lá em duas ocasiões. Aproveitou assim para escapar do assédio dos políticos de PSD e PTB
Rádio
A Rádio Universitária foi criada após disputa pela frequência com a Secretaria da Cultura do Estado, que queria uma emissora. O governador Virgílio Távora atendeu o pedido da universidade. Não sem deixar uma provocação acerca do espirito crítico do meio acadêmico: "Mas eu sei que daqui a bem pouco tempo essa rádio vai estar falando mal de mim"
Perigo
Originalmente, as pró-reitorias se chamavam vice-reitorias. A mudança teria sido sugestão de Martins Filho, quando não era mais reitor. "Vice é um bicho perigoso", teria comentado
UFC: Biografia de uma universidade
De Lira Neto
Editora UFC, 2025
482 páginas
Distribuição gratuita