Em junho deste ano, o ator Clayton Nascimento veio a Fortaleza apresentar seu solo arrebatador, “Macacos”, no Cineteatro São Luiz. Contando a própria história de vida e a história do Brasil, em um dado momento, perguntou à plateia o nome do líder abolicionista que enfrentou o tráfico escravocrata de sua época. Ele não escondeu ter ficado impressionado com a resposta, “Dragão do Mar”, sendo proferida em coro.
LEIA TAMBÉM | Netflix, HBO Max e Disney+: veja lançamentos da semana no streaming
Na quarta-feira, 15, no Cinema do Dragão, estreia um filme que diz mais. “A Rebelião dos Jangadeiros” resgata a história de outros nomes, para além de Chico da Matilde, necessários para fazer do Ceará a “Terra da Luz” – assim chamada por ter abolido a escravização antes de valer a Lei Áurea, promulgada em 1884. É o que nos conta a história oficial. “Uma história oficial que nega o protagonismo negro”, define o sociólogo Hilário Ferreira.
A produção é uma parceria com O POVO e nasceu de matérias, pesquisas e provocações realizadas quando os diretores, Cinthia Medeiros e Demitri Túlio, atuavam juntos no O POVO. O longa será disponibilizado no O POVO+, plataforma de streaming, quando encerrar a circulação em eventos e festivais.
Em suas pesquisas, que inspiraram o filme, Hilário Ferreira traz à tona os nomes de Preta Simoa e José Napoleão, líderes pouco citados da Rebelião dos Jangadeiros. “Existe uma história que não foi contada nos livros oficiais, na nossa historiografia, não foi dada visibilidade, que é a das pessoas que, antes da chegada do Chico da Matilde ao movimento, já estavam nessa militância”, diz a jornalista Cinthia Medeiros.
Ela se refere ao movimento de jangadeiros se negarem a embarcar os escravizados que estavam sendo negociados no tráfico humano. A Greve ou Rebelião dos Jangadeiros ocorreu em 27, 29 e 30 de janeiro de 1881. “O Dragão do Mar tem sua importância a partir da segunda greve, que foi em agosto de 1881. A questão aqui não é quem é o herói ou quem foi mais importante. A luta dos jangadeiros foi coletiva, mas muitos nomes não passaram para a história oficial”, declara Demitri Túlio, atual editor-adjunto do Núcleo de Audiovisual do O POVO.
O pesquisador Hilário Ferreira explica que esse apagamento foi produzido pelos abolicionistas brancos e depois sustentado pelos intelectuais do Instituto Histórico do Ceará. “Quando aqueles homens brancos de classe média ligados ao movimento dos abolicionistas chegam para ele (líder José Napoleão), depois de uma vitória do movimento dos jangadeiros (todos eles negros, sob a liderança de José Napoleão), perguntando se ele gostaria de fazer parte, ele se recusa”.
O líder jangadeiro, então, indica Chico da Matilde para juntar-se ao grupo. “A apropriação simbólica e representativa, que vai se materializar na escrita, vai ser a história construída pelos abolicionistas. Então, o que os abolicionistas fazem? Eles trazem para eles o protagonismo e colocam o protagonismo negro de lado”, explica.
Para Cinthia, “a missão principal do filme é tirar da invisibilidade esses personagens históricos e dar a eles o reconhecimento que a história oficial não deu ao longo dos anos”. Ela aponta o audiovisual como uma linguagem que pode atuar de maneira democrática.
Cinthia e Demitri, que assinam também o roteiro, optaram por intercalar ficção e documentário para deixar mais tangível para o público assistir e entender essa história. Conforme Demitri, a partir da ficção, a obra reescreve a narrativa oficial, contando a história de Tia Simoa, José Napoleão e outros trabalhadores.
Além de elucidar o episódio histórico, o filme atualiza as discussões acerca da escravidão e do racismo no Ceará e no Brasil. Na parte documental, traz depoimentos de historiadores, antropólogas e ativistas negros. Entre eles, a fundadora do Grupo de Consciência Negra do Ceará (Grucon), Lúcia Simão, falecida em agosto deste ano.
Cinthia relata ter-se deparado com um acervo restrito de informações durante a pesquisa. Encontrar descendentes dos jangadeiros mobilizados na rebelião, por exemplo, foi uma opção descartada. O acervo superficial – mesmo sobre Dragão do Mar, a quem se dá maiores créditos pela rebelião – também se desvela, observa a jornalista, na pouca quantidade de informações sobre Lúcia Simão como mais uma invisibilização. Nas palavras da jornalista, ela foi uma “personagem determinante para fazer o roteiro do filme e para estruturar o formato da narrativa”, sonorizado pelas loas (poesias cantadas no maracatu) na voz de Lúcia Simão.
“Ela, quando funda o Grupo de Consciência Negra do Ceará, no começo dos anos 1980, firma que no Ceará existem negros, sim, e que o racismo velado ou sonso tem de ser combatido. Que a hipocrisia de que não somos racistas é uma falácia”, pontua Demitri.
Pré-estreia de "A Rebelião dos Jangadeiros"