Em São Paulo, uma galeteria deixa frangos assados à mostra para chamar a atenção de possíveis fregueses. É noite e a rua está movimentada. Enquanto isso, um cliente "não autorizado" observa atentamente as iguarias na vitrine. Lambe os lábios. Está com fome.
Um dos garçons deixa sobre uma mesa uma sobrecoxa de frango e caminha para outro setor do restaurante, sem perceber o interesse alheio na peça. Como trilha sonora do estabelecimento, uma das músicas mais famosas de Waldick Soriano: "Eu Não Sou Cachorro Não". Em questão de segundos, o frango desaparece da mesa.
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Desatento, o garçom não percebe inicialmente que o cliente indesejado, no caso, é um dos animais símbolos do País. "Vira-lata! Sai daqui, sai!", esbraveja. Sim, o autor do "furto" é um cão — mas não qualquer um. É protagonista do imaginário coletivo brasileiro, de memes que exaltam sua presença no cotidiano nacional e do novo filme da Netflix.
Estrelado por Rafael Vitti e pelo cãozinho Amendoim, "Caramelo" reforça a identidade de companheirismo atribuída a cachorros — por mais que a narrativa leve o espectador, por vezes, à dúvida sobre quem é o protagonista da trama. A obra tem direção de Diego Freitas e apresenta a amizade entre um chef de cozinha e o cachorro por ele adotado.
No drama, Pedro está prestes a realizar o sonho de liderar um restaurante quando um diagnóstico inesperado de saúde transforma bruscamente sua rotina. Entretanto, com a ajuda de um vira-lata caramelo (chamado de Caramelo, aliás), ele embarca em jornada de redescoberta e conexão - e ganha uma amizade para a vida toda.
O elenco conta com Arianne Botelho, Noemia Oliveira, Ademara, Kelzy Ecard, Bruno Vinicius, Roger Gobeth e Olívia Araújo, Cristina Pereira e Carolina Ferraz. A chef Paolla Carosella faz participação especial.
O filme estreia na Netflix como uma alternativa brasileira a longas-metragens que envolvem animais de estimação — e cachorros, mais especificamente. Se filmes como "Marley & Eu" e "Sempre ao Seu Lado", produções americanas, já se tornaram referências na temática, por que não nacionalizá-la?
Para isso, a Netflix apostou na estima dos brasileiros por vira-latas ao escolher um cachorro sem raça definida (SRD) como ícone de sua obra. A pesquisa PetCenso 2025 demonstrou esse apreço. O levantamento reuniu dados da base de pets cadastrados no ecossistema da Petlove (um dos principais petshops do Brasil), mapeando mais de 1,8 milhão de bichinhos.
Os cachorros SRD ficaram em primeiro lugar na pesquisa, com 26% do total, confirmando a preferência dos brasileiros pelos vira-latas. A escolha dos produtores do filme pelo animal se demonstrou acertada por diferentes motivos, a citar a identificação do público brasileiro com esse símbolo, o carisma a ele atribuído e principalmente pela oportunidade de discutir sobre abandono e adoção de animais.
Afinal, o enredo contempla, a partir de outros personagens, o trabalho de organizações que resgatam, acolhem e cuidam de animais em situação de vulnerabilidade. Nesse cenário, cobra responsabilidade - por meio de diálogos - de quem tenta se "desfazer" de seus bichinhos. Animais não são brinquedos. É importante reforçar isso.
A relação entre Caramelo e Pedro se desenvolve a partir de elementos já conhecidos em filmes dessa temática. Primeiro, há o "desencontro" entre os dois por circunstâncias do "destino". Depois, é apresentado o interesse do cão pelo chef, seguindo-o até seu ambiente de trabalho (há certas conveniências de roteiro na trama).
Situações inusitadas ocorrem e eles se aproximam até que Pedro decide, enfim, ficar com o vira-lata (ainda sem nome definido). Os primeiros instantes de convívio são marcados pelo caos provocado pelo cachorro, desde fezes ao lado da cama a rasgos em roupas do chef de cozinha. Estrutura estabelecida do "terror canino".
Ao longo do drama, certos elementos se destacam, como a alusão à brasilidade típica de um vira-lata. Caramelo corre atrás de motos e "aterroriza" motociclistas. "Rouba" comida. Por vezes, tais referências à "entidade cachorro caramelo" são bastante literais e óbvias, sem permissões às entrelinhas. Exemplos são as música "Funk do Caramelo" e a própria "Eu Não Sou Cachorro Não". Atuam como reforços constantes desse cenário.
Um detalhe é como o filme trabalha com poucos personagens ao redor do núcleo íntimo de Pedro, quando pensamos a quem ele pode recorrer para contar suas preocupações e problemas profundos. Há sua mãe, sua amiga de trabalho, seu interesse amoroso e um amigo que faz durante seu tratamento.
Nesse caminho, há também o Caramelo. O filme tenta trabalhar a ideia de elo entre os dois. O cão acompanha seu tutor durante seus momentos mais difíceis. "Não dá para fazer isso sozinho", destaca Pedro. Entretanto, em um certo ponto essa ligação parece se arrefecer, como se Caramelo se tornasse mais uma forma de apoio que uma ponte essencial (diferentemente do que o título e a sinopse do longa dão a entender).
Assim, dúvidas surgem: quem é o verdadeiro protagonista da trama? É o personagem-título ou o Pedro? Esses questionamentos ocorrem devido ao desenvolvimento do enredo, pois boa parte o filme foca mais no chef de cozinha que no animal que nomeia a produção. Pode-se pensar que ele estava ali como suporte e apoio, é legítimo, mas o destaque prévio dado ao bichinho sugere outras abordagens, diferentes das adotadas.
Há momentos emocionantes, sim, mas derivam mais da situação vivida por Pedro — ponto positivo para a atuação de Rafael Vitti, aliás — que das trocas entre o tutor e seu cachorro. No fim, "Caramelo" reúne mensagens importantes, como a adoção responsável de animais e a relevância dos cachorros SRD na construção de identidade nacional, mas peca na condução de seu próprio símbolo.