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Zé Pinto: centenário do artista é celebrado com exposição
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Zé Pinto: centenário do artista é celebrado com exposição

Do lixo para salas de museus: o esculturista Zé Pinto enxergava vida na sucata e a transformava em arte
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FORTALEZA-CE, BRASIL,06.10.2025: Fotos de obras do artista Zé Pinto. MAUC.  (Fotos: Fabio Lima/OPOVO) (Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA FORTALEZA-CE, BRASIL,06.10.2025: Fotos de obras do artista Zé Pinto. MAUC. (Fotos: Fabio Lima/OPOVO)

Às vezes, uma reportagem surge de uma reunião de pautas ou de algum acontecimento que chamou a atenção dos jornalistas, mas também pode surgir de uma memória da infância. A ideia de contar a história do artista Zé Pinto deu-se a partir de uma conversa em que Marcos Sampaio, editor-adjunto do Vida&Arte, relembrou que, nas décadas de 1980 e de 1990, era comum ver o escultor na sua bicicleta pelas ruas de Fortaleza à procura de sucata - sua matéria-prima - para transformá-la em arte.

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Batizado Francisco Magalhães Barbosa, mas conhecido como Zé Pinto, o artista cearense completaria 100 anos no dia 28 de setembro de 2025. A arte foi algo que surgiu aos 50 anos de idade. Por décadas, trabalhou como servidor na Universidade Federal do Ceará (UFC).

FORTALEZA-CE, BRASIL,06.10.2025: Fotos de obras do artista Zé Pinto. MAUC.  (Fotos: Fabio Lima/OPOVO)(Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA FORTALEZA-CE, BRASIL,06.10.2025: Fotos de obras do artista Zé Pinto. MAUC. (Fotos: Fabio Lima/OPOVO)

O caminho na arte não foi tradicional, talvez para combinar com seu estilo. Pai de dez filhos, encontrou a produção quando três dos rebentos começaram a produzir obras. Os "mais velhos" faziam desenhos, pinturas e pequenos artesanatos. E Zé Pinto era o responsável por vender as obras para funcionários da UFC e em pontos turísticos da Cidade.

Essa dedicação de Zé Pinto com a família foi algo marcante. Gorethi Rios, pedagoga e filha, conta que ele "tiraria a própria roupa para nos vestir". "Meu pai era muito preocupado com a gente, ele nunca ligou para o que faríamos ou que escolhas tomaríamos, contanto que fossem as corretas", aponta.

Gorethi descreve seu pai como cuidadoso e trabalhador. O comportamento de Zé Pinto também era observado em outros momentos de sua rotina. Como servidor público, trabalhou no departamento de Medicina na UFC e ele se preocupava com o bem-estar dos estudantes. "Ele sempre dava um jeito de dar algum trocado ou levar comida para os estudantes, principalmente os que vinham do interior", explica.

A origem da denominação Zé Pinto é incerta. Na infância, o menino Francisco Magalhães Barbosa usava roupas que sua mãe bordava e ela sempre fazia o desenho de um pintinho, como conta Gorethi. Mas o que Zé Pinto relatou quando questionado por estudantes de Jornalismo da UFC para a Revista Entrevista em 1994 foi: "Minha mãe é de Canindé, da família Pinto Magalhães. Chamavam-na Maria Pinto Magalhães. Eu tinha uma tia, irmã do meu pai, tia Bibi. Ela que pôs esse nome em mim, de Zé Pinto [...] Eu sou Francisco Magalhães Barbosa, é um nome até bonito, mas eu não gosto. Zé Pinto me caiu melhor. Eu comecei a fazer arte com 50 anos. E o Zé Pinto deu certinho comigo".

A resposta aos estudantes da universidade pode ou não ter sido a mais fiel à realidade, mas ela prova como Zé Pinto era criativo. Na entrevista - disponível no repositório da UFC - e em outras feitas para O POVO, o artista sempre se mostrou como uma pessoa despreocupada com sua repercussão, pois apenas queria produzir sua arte.

Sua carreira iniciou em 1975. Antes disso, era apenas o "marchand" de seus filhos. Mas, quando os jovens artistas se mudaram, Zé Pinto se viu com clientes fiéis e sem nenhuma obra para vender. Gorethi expõe que ele era uma mente à frente do seu tempo: "Muito criativo, ele olhava para o objeto que muitos viam como lixo e ele via vida naquilo".

O primeiro passo dele com a produção de peças foi fazer o uso de pregos, e, então, partiu para a "sucata" com o processo de fundição. Peças de carro, muitas vezes resgatadas em depósitos, ganharam vida na mente do esculturista.

Como ele mesmo explicou na Revista Entrevista, não tinha prática com o processo de fundir ferro, mas percebeu que era aquilo em que era bom. Aprendeu como fazer a fundição e produziu diversas obras com materiais que antes eram considerados lixo - e as levou para o mundo.

 

Exposição a céu aberto

Zé Pinto ficou conhecido por seu estilo de peça industrial fundida e que dava vida aos mais inusitados objetos. Com obras inspiradas em Charles Chaplin, Padre Cícero e até em animais, ele transformou o antigo canal da Avenida Bezerra de Menezes em um museu.

Sua casa - também ateliê e bistrô - misturava cultura com comida e bebida - localizada nas proximidades da via urbana, na altura do Instituto dos Cegos. Zé Pinto e a esposa, Maria Zenô Cassiano Barbosa, administravam a arte de ferro, a comida e a cachaça caseira. Lá foi onde o artista deu vida às formas e expôs as obras. Pois - muito antes de dar entrevistas e ir a museus internacionais - seu palco era uma avenida.

A presença da arte popular no espaço urbano marcou a vida de muitos que por ali passaram e influenciou outros artistas - como Caetano Barros - que também trabalharam com esculturas de ferro. "O Zé Pinto me influenciou muito, eu conheci o trabalho dele e resolvi me aventurar na arte com ferro", conta. Caetano explica que não tenta fazer peças como Zé Pinto executava, mas que enxerga vida no inanimado - tal e qual o artista centenário.

O esculturista já falecido não se mostrava interessado em ensinar ou até mesmo se autopromover, como relata a escritora e professora Ana Márcia Diógenes, mas, sim, levar felicidade àqueles que passassem por lá.

O artista visual Roberto Galvão define o trabalho de Zé Pinto como "único, autêntico e não segue nenhuma tendência". Roberto comenta que o traço de ferro feito pelo artista foi e é importante para a arte popular: "Para mim ele era a definição de criador".

Hoje, a obra do centenário Zé Pinto possui alguns acervos, como o do Museu de Arte Contemporânea da UFC (Mauc), que está com exibição até o fim de novembro em homenagem aos 100 anos do artista.

 

Mente em ebulição

Apesar de ser um artista considerado como único e fundamental para a cultura popular cearense, Zé Pinto só produziu por 20 anos. Aos 70 anos, ele parou de transformar o ferro em arte, depois da morte de sua esposa.

Mesmo com "apenas" duas décadas de produção, o trabalho é lembrado por muitos. Mas sua história não é preservada. O artista Roberto Galvão percebe que uma parte disso pode se dar pelo próprio Zé Pinto: "Acredito que ele nunca teve essa preocupação com a comunicação. Ele vivia na casa dele, só trabalhava na casa dele".

A jornalista Ana Márcia Diógenes reflete que as pessoas não valorizam o que é feito artisticamente do que já existe, "quando há uma recriação, uma ressignificação, sinto que não é levado a sério". O fotógrafo José Albano - vizinho e amigo de Zé Pinto - complementa o pensamento ao falar que existe um preconceito com a arte popular: "Não era algo feito para atender as expectativas das pessoas, mas, sim, para traduzir o que se passava na mente dele".

"Ele levou o nome do Ceará para o mundo, mas esse mundo não o preservou", diz Gorethi. A filha, que tentou por mais de um ano organizar uma homenagem em celebração ao centenário do pai, relata que não foi algo fácil, mas pretende continuar tentando.

 

Preservação e homenagem

A editora Edições Demócrito Rocha (EDR) lançou em 2013 o livro "Zé Pinto e o Ferróquio" do autor e ilustrador Jean-Antoine. No livro infantil, conta-se a história do artista plástico de forma lúdica, trazendo a lição de que se pode aproveitar tudo, mesmo aquilo que aparentemente não serve para nada.

"Zé Pinto, na realidade, é aquele que conseguia transformar sobras em sonhos", é um trecho do livro que conversa diretamente com a trajetória de vida do artista. O livro aborda imaginação, criatividade e acompanha ilustrações sobre Zé Pinto e suas peças.

Zé Pinto e Ferróquio

Onde comprar: www.livrariaedr.org.br

 

Exposição centenária

O Mauc organiza uma exposição em homenagem ao centenário de Zé Pinto. Com visitação gratuita, a mostra fica em cartaz até o fim de novembro. Graciele Siqueira, museóloga e diretora do Mauc, explica que a iniciativa já estava prevista no calendário anual de programação desde 2024. "Buscamos sempre que tem uma efeméride desse porte, com um artista que faz parte do nosso acervo e que tem uma importância para a história da arte cearense, fazer uma mostra", explica.

A iniciativa conta com sete peças que foram doadas e outras que estavam no acervo há muitos anos. Zé Pinto, além de ser um nome da arte cearense, também foi
servidor da universidade por muitos anos, Graciele conta que sediar essa exposição "mostra o compromisso da universidade na valorização dos artistas que integram o seu corpo técnico, docente, acadêmico".

A diretora também reflete sobre o local de resistência dos artistas: "A arte e os artistas passam muito por esse lugar da resistência, porque eles saem de um lugar comum para virar um artista visual".

Zé Pinto - 100 anos

  • Quando: até 27 de novembro; segunda-feira a sexta-feira, das 8h às 12 horas e das 13h às 17 horas
  • Onde: Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará - Mauc (Avenida da Universidade, 2854 - Benfica)
  • Gratuito

 

Bordados, gravuras e esculturas restauradas

Alunos da Escola de Artes e Ofícios Thomaz Pompeu Sobrinho preparam homenagem ao artista Zé Pinto com exposição de obras em bordado, gravuras e esculturas restauradas. A exposição está programada para ser lançada em março de 2026, dentro da programação da Mostra Fazendo Artes, Aprendendo Ofícios.

A gestora executiva da escola, Maninha Morais, comenta que o centenário de um artista que marcou o Estado e que possui relevância cultural e criativa, transformando em arte o considerado descartável, foi o que levou a escolherem homenageá-lo e, ao mesmo tempo, "propor que a obra dele atravessasse o nosso programa formativo".

FORTALEZA-CE, BRASIL,06.10.2025: Fotos de obras do artista Zé Pinto. jornal OPOVO.  (Fotos: Fabio Lima/OPOVO)
FORTALEZA-CE, BRASIL,06.10.2025: Fotos de obras do artista Zé Pinto. jornal OPOVO. (Fotos: Fabio Lima/OPOVO)

Um processo de apuração

Um ponto interessante sobre a apuração desta reportagem: a arte popular de Zé Pinto foi me levando a vários caminhos. O ponto de partida se deu na Revista Entrevista da UFC, de lá me deparei com um material produzido em 2024 pelo Laboratório Prático de Extensão do curso de Jornalismo da Universidade de Fortaleza (Unifor) e que me levou a conhecer a família e amigos de Zé Pinto.

Não teve uma única oportunidade na qual eu conversava com alguém sobre esta pauta que não surgia algo novo. Assim, consegui entrevistar amigos e admiradores, mas o que mais me surpreendeu foi um bate-papo com Lafayette Pinheiro, funcionário do O POVO que conhece o trabalho de Zé Pinto desde a época da Avenida Bezerra de Menezes e lembrou: "A escultura na porta de Redação se chama 'O Jornaleiro' e é obra de Zé Pinto".

 

Zé Pinto por ele mesmo

Durante seus anos de trabalho com a arte, Zé Pinto concedeu diversas entrevistas e uma delas foi para os estudantes de Jornalismo da Universidade Federal do Ceará em 1994. A seguir há alguns trechos:

  • "Mas eu não sou desses caras, 'bom era o meu tempo ...' O meu tempo ainda é hoje (...) Tem coisas ruins hoje e tem coisas boas."
  • "Não tenho hora pra nada. Eu não tive hora pra nascer, não vou ter pra morrer. Nunca usei relógio. Estou só tocando..."
  • "Aí eu falei pra Deus que queria que Ele me ajudasse, me desse uma arte, uma coisa diferente. Aí lembrei das coisas do meu pai."

 

Família de artistas

A família de Zé Pinto sempre esteve envolvida com a criação de arte, seu pai era carpinteiro. José Albano, fotógrafo e amigo da família, compartilhou que, como foram vizinhos, observou o pai do artista plástico produzir arte com madeira, depois os filhos e, por fim, Zé.

O irmão de José Albano, o também fotógrafo Maurício Albano (1945-2015), foi um grande amigo e parceiro do esculturista. José relata um episódio em que seu irmão e Zé Pinto iriam juntos aos Estados Unidos para uma exposição, mas que, devido a alguns imprevistos, Zé Pinto foi sozinho sem saber falar inglês.

Rindo ao lembrar da história, o fotógrafo conta que, apesar de "uma loucura na época", o artista conseguiu resolver a situação e entrou no país. "Sempre o achei engraçado e desenrolado, ele mostrou isso no mundo todo", comenta.

A dificuldade de contar sobre a vida e obra de alguém que já faleceu é entender a história dessa pessoa pelo olhar daqueles que a conheceram. Ana Márcia Diógenes é jornalista e entrevistou Zé Pinto para O POVO na década de 1980. Ela relata que "ele era um homem muito simples, não se importava com a opinião alheia e muito risonho".

"Talvez a minha memória mais marcante das entrevistas com ele tenha sido seu sorriso". A jornalista conta que esteve diversas vezes na casa do artista e ele sempre possuía alguma história para compartilhar.

Mas Zé Pinto estava mais preocupado em andar de bicicleta e procurar sua matéria-prima.  O esculturista trafegou fielmente de bicicleta por quase toda sua vida, só parou aos 70 anos após sofrer um acidente. Mas, por anos, esse foi seu único meio de transporte e isso ficou marcado na lembrança de amigos, familiares, admiradores e, claro, na vizinhança.

"Ele e sua bicicleta eram um corpo só", comenta o artista plástico Roberto Galvão. Nesse mesmo sentido e mostrando o seu humor, em um trecho da entrevista aos estudantes de Jornalismo, em 1994, Zé Pinto brinca que era mais fiel à bicicleta do que à esposa.

Mas isso não era verdade. Assim como ele era dedicado aos filhos, Zé Pinto também foi dedicado à esposa, Maria Zenô Cassiano Barbosa. Enquanto Zé Pinto cuidava do ateliê e das obras, ela também trabalhava com arte - produzia desenhos que já estamparam calendários e foi a responsável por costurar a roupa que Fagner usou em seu primeiro LP.

 

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