"Dá até uma certa revolta porque faria muito sentido a gente ver cinema africano. Por que a gente não vê?", questiona Ariadine Zampaulo em conversa com O POVO sobre a relação frágil do Brasil com as vastas culturas do continente. Estudante de cinema na Universidade Federal Fluminense, ela viajou a Maputo, capital de Moçambique, para gravar seu trabalho final do curso e redescobriu uma cidade encantada.
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Passeando por histórias e personagens distintos sem a intenção de cruzá-los, frontal ou paralelamente, a trama leva o nome da estação de rádio Maputo Nakuzandza que toca pelos cantos da cidade com poesias, conversas e breves denúncias. Diante da fotografia charmosa e dos sons nativos daquele cenário também tão brasileiro, caminhamos por diálogos e trajetos tomados pela contemplação de texturas físicas e emoções discretas que compõem o imaginário da realidade urbana. "É proibido akordar", diz o grafite na parede de uma casa vazia.
Gravado em 2017, "Maputo Nakuzandza" estreou na seção de novos autores da Mostra de Cinema de Tiradentes em 2022, e chegou ao circuito comercial brasileiro apenas dois anos depois, no segundo semestre de 2024. Seguindo uma carreira comercial até improvável para obras experimentais, o filme hoje segue disponível para aluguel e compra nas plataformas de streaming.
Em entrevista ao O POVO, a diretora conta sobre como aconteceu sua proximidade com o país africano e sua relação com os cinemas negros num país que teima tanto em não se aproximar de quem tanto se parece.
O POVO - Vi teu filme na Mostra de Tiradentes e desde então pensei que essa abordagem de filmes que observam a cidade, nós temos muito no cinema brasileiro. Mas não temos esse contato direto com outros, especialmente com o cinema africano, que a gente consome pouco, como indústria. Me fala um pouco sobre tua relação com Maputo.
Ariadine Zampaulo - Eu não conhecia nada. Eu fui para lá por intercâmbio da Universidade Federal Fluminense, fazendo curso de cinema e audiovisual. Entre 2015 e 2016 foi que eu assisti um primeiro filme africano, eu nunca tinha visto antes. A gente não tinha acesso e era bem raro. Depois pesquisando mais, você vai descobrindo: ah, teve mostra de cinema africano em tal lugar... mas não é uma coisa que chega tão facilmente. Tem algumas pesquisadoras aqui no Brasil que já são referências, e eu comecei também a seguir o trabalho. E dá até uma certa revolta porque faria muito sentido a gente ver cinema africano. Por que a gente não vê? Por sorte, eu tive uma disciplina optativa na UFF sobre cinemas africanos que tinha um pouco do cinema moçambicano, e lendo um pouco vi que o país começou a produzir os filmes depois da independência. Isso me interessou bastante e foi um motivador para fazer minha pesquisa de conclusão de curso e para fazer esse intercâmbio lá em Maputo. Então fui conhecendo as pessoas que estavam estudando e se formando em cinema, tentando acessar filmes que eram muito difíceis de encontrar, e fiz entrevistas com produtores e realizadores de Maputo. Na própria cidade em si, pra mim, existe um encantamento muito grande, então eu já vim com essa ideia pra eles: vamos fazer um filme de experimentação, tanto para eles atores quanto para mim. Eu queria que a gente pensasse as cenas juntos.
OP - Esse tom experimental do filme é bem evidente e quando ele estreou na Mostra de Tiradentes fez todo sentido porque rimava com a própria lógica do festival. Àquela altura, você imaginava que o filme seria lançado no circuito comercial, anos depois, indo para salas de cinema e streaming?
Ariadine - O filme todo foi uma surpresa atrás da outra e eu fui descobrindo ele com o tempo. Eu usei essa minha visão tanto de montadora como de preparadora de elenco para criar com mais liberdade o material que depois eu poderia mexer e reconstruir na pós-produção. Se eu não tinha dinheiro, então eu também não tinha pressa, acho que isso é um ponto importante. Eu montei um primeiro corte para apresentar como meu trabalho prático de conclusão do curso, e essa troca dentro da UFF foi um apoio. A gente ganhou o prêmio no Festival do Rio e eu fui pra Moçambique fazer umas exibições no Centro Cultural Brasil-Moçambique. A Descoloniza pegou o filme para distribuir antes da gente chegar no corte final e eles ajudaram muito na carreira dos festivais, sempre em diálogo com a gente.
OP - Você mencionou que no final da década passada nós começamos a conversar mais sobre cinemas africanos e foi perceptível como mostras e projetos nesse recorte aumentaram. Você sente que hoje o Brasil está consumindo mais cinema africano?
Ariadine - Uma vez que a gente entra numa bolha você acha que está tudo lindo. Mas, quando você sai, você vê que isso não mudou tanto assim. A distribuição do filme foi feita com edital público e, como uma das contrapartidas, eu fui ministrar uma oficina numa escola aqui em Piracicaba sobre cinemas africanos e cinema negro para uma galera adolescente. Foi muito diferente e eu fiquei nesse questionamento: será que a galera agora acessa alguma coisa? Hoje tem muita coisa de cinema africano na Netflix, tem cinema comercial sul-africano, nigeriano, tem coisa pra caramba, então o acesso já mudou muito. Mas tem toda aquela parte de reeducação do público porque não adianta você ter acesso e as pessoas continuarem acostumadas a ver as mesmas coisas. Na oficina eu perguntei se alguém já tinha visto algum filme africano e só falaram do filme da Viola Davis, que é gravado na África, mas não é africano, "A Mulher Rei". Então mostrei algumas coisas, mostrei os clipes da Beyoncé que tem como referência cinema africano, e já deu uma conectada. Você pegar só referência no cinema europeu e norte-americano... Eu via que ele nem me conectava tanto assim. E aí eu, de fato, encontrei no cinema africano uma referência forte, e eu falava: isso aqui realmente faz sentido para mim.