Para quem não está familiarizado com a vida de um artista independente, o grupo maracanauense que une circo e rap O Cheiro do Queijo elucida a cena, pelo menos aqui no Ceará, com um desabafo: "Eu só queria ser um artista, tive que tirar CNPJ, ter certidão negativa, em dias emitir nota em cima de nota. Que p* é essa de tanto doc? Eu almoço rap e vomito rock".
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No ritmo de batucadas animadas, a voz de Igor Cândido, também conhecido como palhaço Abu da Pereba, cuspindo essas palavras é o primeiro som que se escuta em "Operação Baile Balanço", filme lançado na quarta-feira, 15. Com um título apropriado para o conteúdo, "Burocracia" é a música que abre não só o projeto audiovisual, mas também o EP "Baile Balanço".
O EP que tem a música como intro não tem data definida para o lançamento. E a razão é burocrática: o 14° edital Ceará das Artes, da Secretaria de Cultura do Ceará (Secult-CE), divulgou o nome do projeto entre os classificados na etapa final e, 15 dias depois, republicou o documento sem contemplá-los, sob a justificativa de "republicação por incorreção", conforme Ícaro Lourenço, o palhaço Potchoco.
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Em nota enviada ao O POVO, a Secult informou que o projeto obteve nota 66,5 na avaliação do Edital Ceará das Artes, tendo sido inicialmente selecionado. "A equipe identificou um erro no ranqueamento dos projetos na área de Música. Diante disso, a Secult-Ceará procedeu à correção e republicação dos resultados no Diário Oficial do Estado em 26 de agosto de 2025, com as devidas correções".
A nota também menciona comunicação direta com os proponentes via e-mail e transparência com os artistas.
"A Secult-Ceará informa que os esclarecimentos sobre o processo foram prestados por meio de comunicação direta com os proponentes, via e-mail, com o objetivo de garantir a transparência e o entendimento das alterações e via publicação no DOE e no Mapa Cultural. E ressalta que todos os canais de suporte e de comunicação por e-mail e pelo chat do Mapa Cultural estão ativos e são acompanhados pela equipe da secretaria", pontuou a pasta em nota.
Ressentido, mas acostumado a ir "se virando", o coletivo adianta que o EP está sendo produzido de maneira independente - isto é, com recursos próprios - e deve ser lançado até o Carnaval de 2026. Com o filme, realizado por meio do programa Zona de Criação, do Hub Cultural Porto Dragão, o EP já dá indícios do que vem a ser.
Com mais de 1.300 visualizações no YouTube e mais de 700 mil no reels do Instagram, a música tem recebido atenção nas mídias digitais.
Versando sobre o terror dos artistas independentes, que muitas vezes conciliam o trabalho cultural com atividades paralelas para conseguir se sustentar e ainda precisam dispor de tempo para escrever projetos e inscrevê-los em fomentos públicos, Abu diz que esses trâmites dificultam o acesso mais do que ajudam.
"Mesmo quando encaminhamos tudo correto, muitos equipamentos ainda atrasam os cachês ou nos tiram o acesso de maneira arbitrária", afirma sobre a letra de "Burocracia".
"Acho que a música tenha estourado de forma natural porque de fato é algo que grande parte dos artistas brasileiros vive, só que agora tem um 'diabo' dum palhaço cantando", brinca Igor Cândido, que, no vídeo, aparece caracterizado e detido em uma cela.
Com humor e crítica social, do roteiro às músicas, a produção audiovisual apresenta a que veio O Cheiro do Queijo e sintetiza o trabalho do grupo.
"O Cheiro do Queijo surge nesse lugar mesmo de ser atrativo, lúdico, mas que a gente traga ali a nossa nossa porrada, nossa crítica", declara Igor. Dos reels do Instagram para o formato cinema, o quarteto lança mão daquilo que mais faz: experimentar.
Dessa vez com roteiro estruturado em um formato narrativo clássico, para eles, o audiovisual é uma linguagem intrínseca ao projeto. Seja pelo vídeo, pelo circo ou pela música, o que eles querem é se comunicar.
"A gente usa da palhaçaria, desse lugar mais lúdico, para atrair a atenção para essas questões que nos afetam", diz o palhaço Abu, mencionando que pode virar criação artística desde um edital de música que está pagando R$ 700 para um artista apresentar-se por 3 horas até a ausência do metrô que liga as cidades de Fortaleza, Maracanaú e Pacatuba nos dias de domingo.
Assim como contaram com a formação e apoio de um equipamento público da capital para o filme, o disco mais recente do projeto - "Sound Circo" (2024) - foi fruto de um processo de formação no Porto Iracema das Artes. Abu e Potchoco destacam a importância dos equipamentos públicos para a manutenção dos artistas cearenses sem abrir mão do ponto de vista crítico.
"Por mais que a gente esteja contemplado, a gente entende que tem questões que precisam ser discutidas ali dentro, entendendo os benefícios e o que pode ser melhorado", pontua Ícaro, desejando a construção de políticas culturais que sejam cada vez mais horizontais e próximas aos artistas do Interior do Estado.
Também partindo das vivências do grupo, o roteiro de "Operação Baile Balanço", uma "distopia nem tão distópica assim", é assinado por Igor Cândido e Ícaro Ferreira. Na trama, o único programa de rádio remanescente veicula ideais fascistas e discursos de ódio e declara aberta a temporada de caça aos artistas.
Do outro lado, a guerrilha de palhaços O Cheiro do Queijo executa a chamada Operação Baile Balanço, em busca de acender uma revolução e libertar um dos seus integrantes injustamente preso.
Ícaro Ferreira conta que o roteiro do filme nasceu da junção entre a fagulha plantada pela música "Burocracia" com suas referências pessoais e as discussões estéticas do grupo para o EP "Baile Balanço".
O palhaço Potchoco expõe que a distopia criada para a narrativa vem das "referências de coisas que a gente já tem passado ultimamente" e a tentativa de criminalização de expressões artísticas periféricas.
Para além do criticismo, eles têm se conectado com seu gingado interior no novo trabalho. "A ideia do EP como um todo é trazer essa perspectiva de entender Brasil enquanto Latino-América", revela Ícaro, que vinha estudando sobre as guerras no continente. Nessa perspectiva, o grupo tem buscado aproximar-se das cumbias, da Tíbia, do reggaeton e de outros ritmos do próprio Brasil, como o rock doido e a swingueira, para trazer à tona a versão mais dançante d'O Cheiro do Queijo.