Há séries que conquistam pelo ritmo frenético, pela sucessão de reviravoltas, perseguições malucas e explosões. "Black Rabbit", lançada recentemente pela Netflix e estrelada por Jude Law e Jason Bateman, faz o caminho oposto nos seus oito episódios de mais de uma hora cada: aposta na tensão silenciosa, na densidade psicológica e no desconforto.
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É difícil até catalogar o gênero, tem de tudo um pouco, mas trata-se de um drama urbano atual que respira a cidade de Nova York, transformando suas ruas, vielas e luzes noturnas em extensão direta da alma dos personagens, uma metrópole que observa, julga e consome seus habitantes.
Criada por Zach Baylin e Kate Susman, a produção acompanha os irmãos Jake e Vince Friedkin, que criaram o restaurante que dá nome à série.
Jake (Law) é o empreendedor bem-sucedido que trabalha exaustivamente e quer muito mais, obcecado por manter a estabilidade e tentar cuidar do filho, por mais que as aparências enganem.
Vince (Bateman) é o oposto: impulsivo, pai ausente, marcado por dívidas e vícios, tentando se reerguer após uma sequência bizarra de fracassos.
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O reencontro dos dois cinquentões reacende traumas, mágoas, um conglomerado de problemas e uma relação de amor e repulsa que é o motor da história.
A partir desse núcleo, o enredo constrói uma mistura de drama íntimo e suspense criminal. Há dívidas com mafiosos, chantagens, ameaças, abusos e violência, mas o foco acaba por ser realmente nas consequências das escolhas, no que se perde quando se tenta corrigir erros - alguns esdrúxulos, faz sentido admitir.
É uma narrativa que pode até exigir alguma paciência de quem assiste, são cerca de nove horas no total, mas a maratona recompensa o espectador com retratos emocionalmente convincentes.
O roteiro evita o clichê do maniqueísmo: Jake e Vince são dois lados de uma mesma ruína, figuras quebradas tentando manter o controle em meio à falência moral e afetiva. A química entre Law e Bateman é o maior trunfo, e ambos exploram com precisão o desgaste da convivência e aqueles silêncios incômodos.
Bateman, também responsável pela direção de alguns episódios, surpreende ao interpretar um homem instável e vulnerável, distante do perfil calculista que o consagrou na espetacular "Ozark", também da Netflix. Law, por sua vez, encarna um personagem ambíguo, dividido entre o sucesso aparente e o medo de desmoronar, uma figura constantemente angustiada.
A fotografia reforça esse mergulho psicológico: luzes frias, tons metálicos e ambientes que comprimem os personagens, como se a própria cidade os aprisionasse. Nova York não é apenas pano de fundo, é um personagem silencioso, cúmplice e testemunha de tudo.
O restaurante Black Rabbit simboliza bem essa relação: espaço de poder e glamour que, aos poucos, se transforma e se adapta ao caos criado pelos irmãos e circunstâncias.
Nem tudo, no entanto, funciona plenamente. Alguns bons personagens periféricos permanecem superficiais, desperdiçando chance de desenvolvimento. Há também um triângulo amoroso que pouco avança e algumas situações que poderiam ser resolvidas mais rapidamente.
Ainda assim, essas escolhas narrativas são intencionais, reforçando a atmosfera de tensão, contemplação e incerteza.
A série tem uma cadência perene, mas está muito longe ser monótona. Não há pressa em revelar surpresas: tudo surge aos poucos, tal qual rachaduras inevitáveis em uma parede mal feita, como na casa da mãe dos irmãos, uma personagem invisível, que já morreu faz alguns meses, mas está sempre presente.
"Black Rabbit" não tem como objetivo, ainda bem, oferecer respostas fáceis ou um final de temporada que agrade a todo mundo.
Ela mostra bem o desgaste das relações, o peso do arrependimento, a impossibilidade de apagar o que já foi feito e até a chance de piorar a situação. O passado insiste em voltar, mesmo quando todos fingem que ele ficou para trás.
Ao priorizar aspectos emocionais em vez do espetáculo dominante de perseguições e correria, a entrega é de um drama sólido, muitíssimo bem interpretado - enfatizo que Law e Bateman estão bem demais, absolutamente donos da situação - e visualmente marcante.
É uma história sobre segredos e sobrevivência, mas também mostra como todos acabam, de certa forma, perdidos, procurando um caminho de volta que possivelmente nem exista mais.
Para quem aprecia thrillers psicológicos, é uma experiência intensa, confirmando a força de seus protagonistas, de um texto inteligente e bem amarrado, daqueles que prendem pra valer, nos fazendo ter convicção que no meio de tanta oferta nas dezenas de streamings por aí, é possível encontrar coisas excelentes.