O incêndio de Camp Fire, em 2018, marcou para sempre a história da Califórnia, no Oeste dos EUA. Em poucas horas, Paradise, cidade com 27 mil habitantes, foi reduzida a cinzas: 85 pessoas perderam a vida e mais de 13 mil residências foram destruídas. A investigação posterior apontou responsabilidade da companhia de energia da região, causando o início do incêndio na área florestal, resultando em condenações e indenizações bilionárias às vítimas. Mas nenhum valor devolve o que foi perdido. É nesse cenário real, brutal e caótico que se desenvolve "O Ônibus Perdido", dirigido por Paul Greengrass, disponível na Apple TV, que transforma um episódio verídico de coragem em um filme com relato angustiante.
Matthew McConaughey interpreta o motorista Kevin McKay, funcionário escolar que, ao ver o avanço incontrolável das chamas, toma uma decisão que mudaria dezenas de vidas: resgatar 22 crianças que aguardavam pelos pais na escola, mas que não foram buscadas por causa do bloqueio das estradas e do colapso no trânsito. Sem rota segura, sem instruções precisas e com o fogo se aproximando por todos os lados, ele assume a missão de conduzir o grupo até um local protegido, mesmo quando tudo indicava que talvez não houvesse saída. Ao seu lado, America Ferrera é a professora Mary Ludwig, peça essencial para manter a calma dentro do ônibus, confortar os alunos e também mostrar coragem em momentos agudos.
O filme não retrata apenas a fuga: ele se aprofunda no peso emocional carregado pelos dois adultos comuns. McKay não é retratado como herói pronto e irretocável. É um homem marcado por frustrações pessoais, vivendo uma fase ruim emocional e enfrentando o distanciamento doloroso do filho. Carrega culpas, arrependimentos e uma sensação de não ter sido suficiente - até que se vê no centro de uma luta pela vida de outras pessoas. Já Mary Ludwig representa um tipo de heroísmo que o cinema nem sempre valoriza: uma pessoa com sonhos simples, que mesmo tomada pelo medo, sustenta os outros, organiza o caos e se coloca à frente para proteger. Os diálogos entre eles dentro do ônibus são ricos, com McConaughey e Ferrera carismáticos e extremamente sintonizados.
A direção de Paul Greengrass, conhecida por seu estilo visceral, mantém estética documental, comum a diversos trabalhos anteriores, como "Voo United 93" e "22 de Julho". A câmera na mão, os enquadramentos próximos e a escolha por barulhos reais em vez de música criam a sensação de estar dentro do ônibus para quem assiste, respirando fumaça. A fotografia reforça o clima sufocante: o céu tomado por fuligem, a luz alaranjada das chamas e o cenário se transformando em um labirinto de fogo. Sem romantizar a tragédia, dá para entender melhor o tamanho do pânico vivido por todos ali.
Um ponto importante e retratado com inteligência é o contraste entre a dimensão do desastre e a estrutura dos Estados Unidos para combater incêndios. Camp Fire ocorreu em um dos lugares mais preparados do mundo, com frota aérea especializada, equipes treinadas, recursos tecnológicos e protocolos de resposta rápida. Ainda assim, nada foi capaz de impedir a devastação. O fogo avançou com uma velocidade e intensidade que superaram qualquer planejamento. Essa constatação provoca reflexão incômoda: se até uma potência com esse nível de preparo falhou diante de um incêndio, o que isso diz sobre o futuro em um mundo de eventos climáticos cada vez mais extremos?
Mesmo evitando discursos explícitos sobre meio ambiente ou aquecimento global, "O Ônibus Perdido" deixa o tema vibrando nas entrelinhas e faz pensar. Não há falas longas explicando causas, mas as imagens falam por si. A história deixa claro que, quando descuido humano, desinformação, negligência e um clima cada vez mais hostil se encontram, o resultado tem potencial para ser irreversível.
"O Ônibus Perdido" emociona também porque não oferece heróis idealizados nem soluções fáceis. Apresenta pessoas comuns obrigadas a tomar decisões impossíveis em segundos - e vivendo com o peso dessas escolhas. É um episódio sobre coragem, fragilidade das estruturas que parecem seguras e as consequências de ignorarmos sinais claros da natureza. Ao final, o que resta não é apenas o alívio pelo resgate das crianças, mas um alerta: algumas histórias precisam ser contadas não para consolar, e sim para manter viva a memória do que nunca deveria ter acontecido.