É muito fácil falar de Gilberto Gil. Um homem que marcou a história do Brasil em tudo que orbitou, tornando-se ícone da música. Aos 83 anos, o artista volta a Fortaleza com turnê de despedida dos palcos, intitulada "Tempo Rei".
O cantor transitou por diversos ritmos durante as mais de sete décadas de jornada artística, construindo obra que pode ser considerada como a verdadeira Música Popular Brasileira (MPB), oriunda da mistura cultural que marca o País.
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O show na capital cearense promete rememorar a ampla produção musical, com sucessos como "Palco", "Drão" e "Expresso 2222". Uma forma de celebrar o passado para enaltecer a história do baiano no presente, com a participação da família Gil entre os músicos para comemorar o legado.
Os shows da turnê permeiam a temporalidade, temática elaborada nas letras do cantor. "O futuro ficou muito próximo, porque muita coisa já virou passado na minha vida. Então o presente é esse inqualificável, o presente é aqui e agora, é imediato e não há o que dizer. Ele é a gente, é esse dado vital, o vitalismo profundo. Já o futuro é a projeção, o desenrolar e aí, o futuro fica logo ali, daqui a pouco. Além disso, fica em aberto, não é mais aquilo que você almeja, que você quer e constrói. Para mim não é mais construir o futuro. Só há agora me deslocar no presente para o encontro permanente com o futuro", comentou Gil em entrevista ao O POVO, publicada em 26 de junho de 2019.
Na ocasião, ele comentou sobre a procura constante por felicidade em tudo que faz: "O remédio para a dor, o bálsamo para a alma ferida, a cura para os males do corpo. A felicidade é isso, essa procura permanente por melhora, por estados melhorados de vida, felicidade é isso. É você saber que a vida já é o instrumento em si que lhe proporciona outros instrumentos com os quais você vai pintando ali, cinzelando acolá, entalhando ali, caiando acolá, cimentando, fazendo as coisas que vão lhe trazendo bem estar".
Para homenagear o cantor baiano, personalidades escreveram para o Vida&Arte sobre a importância de perpetuar o canto de Gilberto Gil. Os textos, assinados pelos músicos Edinho Vilas Boas, Mimi Rocha e Pantico Rocha, além do professor Clodomir Freire e da secretária de Cultura de Fortaleza Helena Barbosa, mostram como os ideais do artista constroem a cultura brasileira.
A música de Gil como um ato de cura coletiva
Em 1964, militares a serviço do grande capital nacional e internacional mergulharam o Brasil nas trevas da ditadura (1964-85). Repressão, censura, exílio e medo passaram a fazer parte da ordem do dia. No entanto, nem mesmo com o AI-5, que ampliou a repressão e a censura, inaugurando os "Anos de Chumbo" (1968-78) da ditadura, conseguiu suprimir a resistência. A música foi porta-voz de uma juventude amordaçada. Gilberto Gil foi um desses guerrilheiros vocais. Gil nasceu em 1942, em Ituaçu, na Bahia. Filho de um médico e de uma professora, por quem foi apresentado à música. Teve em Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro duas das suas maiores influências. Foi apenas nos anos de 1960 que a música se fez ofício e ato político em Gil, em meio à efervescência política e cultural que o Brasil vivia.
Em 1968, Gil e Caetano lideraram uma revolução estética na MPB, inspirados na antropofagia do Modernismo de 1922. Era o Tropicalismo, que buscava imprimir uma linguagem universal, devorando a influência estrangeira para criar algo novo e genuinamente brasileiro. As letras, a estética e o comportamento dos tropicalistas desafiavam a caretice e a censura e a repressão não tardou. Entre 1968 e 1969, Gil e Caetano foram presos por mais de 40 dias. Em julho, partiriam para o exílio em Londres. Em 1972, Gil retorna do exílio e lança "Expresso 2222". Se a música que dá nome ao disco expressa esperança, a bela e comovente "Back in Bahia" traduz a dor do exílio e a saudade de casa. Nos anos de 1970, Gil produziria dois dos seus discos icônicos: "Refazenda" e "Refavela", sempre vigiado de perto pela ditadura. A sua música foi um ato de cura coletiva em uma sociedade amordaçada e ferida.
Gil: o rei da música popular brasileira
Eu sempre falo no meio musical, por onde ando, que o Gilberto Gil é, para mim, o rei da Música Popular Brasileira. E justifico dizendo que: por todos os caminhos que Gil percorreu com seu trabalho (discos e shows), fez com propriedade e bom gosto! Do forró ao rock, passando por baladas, reggae, ritmos afros, entre outros. É um orgulho para o Brasil ter o talento absurdo desse nordestino. Viva Gilberto Passos Gil Moreira!
Emoriô, Mestre Gil
Um canto de amor em iorubá saúda o sagrado. Entoar "emoriô" é pedir a benção para aquele que peregrina de forma sábia. Eu te vejo e, no mesmo instante, o céu, o sol, a lua, tudo vira fé e celebração.
O garoto soteropolitano, que modulava toadas no acorde do batente de casa, lançou mais de 70 álbuns, com mais de quatro milhões de cópias vendidas. Artista multicultural, refém do AI-5 e vítima da ditadura militar, tropicalista e poeta marginal, exilado político, vereador baiano mais bem votado na eleição de 1988, dono da cadeira 20 da Academia Brasileira de Letras, Ministro da Cultura que "jamais abriu mão da aventura, do fascínio e do desafio do novo". Sua presença marca um tempo político. Baila nele. Até mesmo o tempo rei, aquele que tudo ensina, reconhece sua graça. Gil "começa na lua cheia e - não - termina antes do fim". Nesse tempo que brinca de ciranda, Gil é "trezentos, trezentos e cinquentas" (Mário de Andrade). O passo dado por ele segue infinito no horizonte da geração que nele se inspira.
Fardão custoso, bordado a ouro, bantês, búzios e axê, moda hippie e visual glitter, traje social completo. Acima da indumentária, Gil é "um corpo negro e cósmico que aponta para uma expansão do universo". Ele é a síntese da alma brasileira onde "o coração é um colibri dourado" (Castro Alves). Seus "olhos que exprimem tão doce harmonia" (Gonçalves Dias) costuram chãos de poesias que imprimem a "arte pura, inimiga do artifício" (Olavo Bilac). O obá de xangô é o eterno menino aguerrido que duela com a escuridão e, na ausência de velas, orquestra o luar e faz do céu da nossa pátria um véu fulgurante de estrelas. Sua benção, mestre brasileiro.
Gilberto Gil e seu caldeirão musical
Nascido em 1942, Gil é educado musicalmente pelo rádio que, na época, tinha uma forte conexão unindo famílias. A televisão só seria lançada nos anos 1950, ainda como um produto de luxo inacessível à maioria da população.
Através desse rádio, ele começou a se interessar pela música nordestina que invadia o sul maravilha. A sanfona de Luiz Gonzaga, pandeiro de Jackson e também o violão do seu conterrâneo Dorival Caymmi.
Gil se inicia na música aos nove anos pelo acordeon, tendo aulas na academia Regina em Salvador, aprendendo valsas, choros e os famosos baiões e forrós de São Luiz.
Com a onda de sucesso da Bossa Nova invadindo o país, Gil muda de "arma", seguindo a batida de violão que conquistaria o mundo de outro conterrâneo, seu João Gilberto.
O encontro com Caetano Veloso em 1963 e a ida para São Paulo abriria ainda mais o leque de influências musicais. Seu primeiro disco "Louvação" (1967) e participação ativa no movimento e disco "Tropicália" (1968) são provas disso.
Importante citar o encontro fundamental com Rita Lee e Os Mutantes, que trazem a sonoridade inglesa e americana do rock, sem deixar de lado as modas de viola, boleros, músicas de cinema, aumentando ainda mais o caldeirão sonoro de GG.
Após o exílio na "Swinging London", Gil retorna ao país, com um samba falando da saudade ("Aquele Abraço"), lança disco experimental em 1969 ("Cérebro Eletrônico"), reverencia suas raizes da sanfona com Dominguinhos e Anastácia ("Eu só quero um xodó") e segue seu estilo esponja absorvendo tudo que lhe interessa.
É preciso dizer que o violão de Gil é um caso à parte. Os exemplos são inúmeros desde "Expresso 2222". Hoje é estudado nas escolas de músicas pelo mundo.
As fases Refazenda, Refavela, Realce abrem ainda mais o leque: batuques africanos, reggae, jazz fusion, rock, new wave, pop, funk, punk rock.
É difícil falar apenas de um Gil, são milhares. Que venham mais.
Família interligada à arte
Gilberto Gil sempre foi uma referência para mim. Meu pai é baiano, e as minhas primeiras memórias musicais vêm justamente das idas à Bahia.
Toda vez que eu chegava lá, ainda menino, sentia uma energia diferente, uma energia muito boa, e as músicas do Gil faziam parte disso. Sempre achei meu pai um pouco parecido com ele. E por sinal, meu pai toca violão também.
Quando comecei a tocar na noite, em 1996, o Gil virou uma escola. O repertório dele tinha um peso enorme dentro do roteiro dos meus shows em Fortaleza.
Um dia, tocando num restaurante na beira-mar, tive a felicidade de saber que o Gil estava presente. E tive a alegria maior ainda de tocar uma música minha, "Retumbante", que, a meu ver, carrega forte influência dele. A felicidade completa veio quando ele levantou da mesa, foi até mim e fez um elogio, palavras que eu nunca esqueci.
Hoje, eu faço shows com meus filhos, assim como o Gil, que também levou a família para estrada. Essa conexão me toca muito. É muito bom viajar em família, tocar com eles e passar adiante tudo o que aprendi com a música brasileira. Eles também são admiradores do trabalho do Gil e isso para mim é motivo de orgulho.
Trabalhar em família me traz responsabilidade. Ao mesmo tempo, me dá o entendimento de que eu preciso levar minhas raízes adiante.
As novas gerações também precisam, antes de escolher seus caminhos, saber de onde vieram. E isso o Gil sempre fez muito bem, não só com os filhos, mas com a própria música.
Gil sempre respeitou sua ancestralidade e os artistas brasileiros que vieram antes dele. Sou muito grato à obra dele, porque ela me ensina sobre entrega, missão, coerência e brasilidade. É porque, de alguma maneira, sempre me acompanhou, na infância, na noite de Fortaleza, nos palcos com meus filhos e na construção de quem sou como artista.
Turnê "Tempo Rei" em Fortaleza
Quando: sábado, 15, e domingo, 16, às 21 horas
Onde: Centro de Formação Olímpica (av. Alberto Craveiro, s/n - Castelão)
Quanto: sábado está esgotado; domingo, 16,
a partir de R$ 125; ingressos no Eventim