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Em "A Queda do Céu", povo Yanomami encara a vingança da Terra
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Vida & Arte

Em "A Queda do Céu", povo Yanomami encara a vingança da Terra

O filme "A Queda do Céu" traz Davi Kopenawa como narrador da ancestralidade do povo yanomami para encarar o fim do mundo. O POVO conversou com os diretores
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Foto: STILL DO FILME A QUEDA DO CÉU/DIVULGAÇÃO No filme "A Queda do Céu", povo yanomami encara a vingança da Terra

"É trágico que os temas centrais do filme, os yanomami, os povos indígenas, a Amazônia, a crise climática, não estejam diariamente na pauta do País", responde Gabriela Carneiro da Cunha quando lhe pergunto sobre a coincidência do filme estrear durante a COP30, Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas que aconteceu neste mês em Belém, no Pará.

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Em codireção com Eryk Rocha, o documentário se aproxima da realidade de uma das comunidades do povo yanomami no Brasil para escutar o que têm a dizer sobre o estado de alerta do mundo.

Baseado no livro homônimo de Davi Kopenawa e Bruce Albert, a realidade indígena toma as rédeas de uma história que lhes pertence, elaborando a escuta da natureza como parte de uma espiritualidade compartilhada. Confira a entrevista com os diretores Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha.

O POVO - Na sessão de estreia do filme, no Festival de Cannes em 2024, Davi Kopenawa disse uma frase que eu nunca esqueci: "Esse filme não foi para assustar vocês não. É o que vai acontecer". Fiquei com isso na cabeça. O longa-metragem é sobre hoje e sobre o futuro. Desde o início vocês sabiam que a produção tinha esse caráter apocalíptico?

Gabriela Carneiro - Acho que sim. Quando a gente deseja fazer o filme, quando lê o livro, sonha esse filme, conversa com o Davi, com o Bruce, convoca o Hutukara [Associação Yanomami] para produzir com a gente, somos movidos pelas palavras do Davi, que já anunciam esse colapso. Você usou a palavra apocalíptico, e eu acho que sim, mas com cuidado. Quando usamos palavras como apocalipse ou profecia, às vezes afastamos a concretude do que está acontecendo. O sistema Terra está entrando em colapso. O Davi chama isso de "vingança da terra".

É um desequilíbrio acelerado por escolhas econômicas, coloniais, políticas. O livro e o filme iluminam essas escolhas feitas todos os dias em mesas de negociação, como na COP, de onde os povos indígenas - os mais afetados e os que têm propostas alternativas - são excluídos. O Eduardo Viveiros de Castro diz: "O céu vai cair antes que a ficha caia". A ficha não caiu, mas o céu já está caindo. Fizemos o filme movidos por essa crítica xamânica e política, e por uma aliança cinematográfica com os yanomami para que o céu não caia.

Eryk Rocha - O filme tem uma dimensão onírica, mística, mas também uma frontalidade política e uma urgência assustadora. Há uma confluência entre a concretude da catástrofe que vivemos e a possibilidade de sonhar outros mundos. O livro nos inspirou muito e trabalhamos com três eixos dele: diagnóstico, alerta e convite. Isso estruturou a forma e a linguagem do filme. O diagnóstico é assustador, o alerta é urgente e o convite é para atravessar outros estados, sensoriais, espirituais, poéticos. A festa Reahu é o portal do filme. Foi nela que vivemos um mês e meio, em uma das mais de 300 comunidades yanomami. Essa experiência criou a camada ritual e onírica que permite que o filme tenha pontos de fuga além do diagnóstico e do alerta. E trabalhamos muito com o Davi como narrador. Sua palavra vira imagem, ritmo, melodia.

O POVO - O filme chegou aos cinemas enquanto a COP 30 ainda estava ecoando. Foi coincidência?

Gabriela Carneiro - Sim, foi coincidência, mas uma coincidência boa. Quando vimos que poderia acontecer, escolhemos lançar o filme nesse momento. E é trágico que os temas centrais do filme, os yanomami, os povos indígenas, a Amazônia, a crise climática, não estejam diariamente na pauta do País. Ficam concentrados nesses dez dias da COP e depois desaparecem. O filme nasce nesse momento para reforçar essas discussões, mas também para trazer outra dimensão: poética, estética, sensorial. Algo além da linguagem científica ou do ativismo puro. O cinema permite viver essa experiência com o corpo, com o sensível.

O POVO - No IMDb aparece que o idioma do filme é "português", mas o filme é majoritariamente em língua Yanomami. Desde o início vocês quiseram que não houvesse intervenção em português?

Gabriela Carneiro - Sim, sempre foi uma escolha. O Davi é um pensador yanomami, e pensa na sua língua. É impossível separar seu pensamento da sua linguagem. Nunca cogitamos outra possibilidade. Ele fala na língua dele e o filme é sobre isso também. A relação entre indígenas e não indígenas costuma forçar os povos originários a falar de forma reconhecível para nós. A COP é um exemplo disso. No cinema, no debate artístico e científico, isso se repete. A linguagem do filme tenta propor outra relação. Não queremos que o Davi ou os yanomami caibam na nossa linguagem cinematográfica. Queremos transformar o cinema para que eles existam
cinematograficamente.

Eryk Rocha - Assim como a língua Yanomami não é reconhecível para muitos, a linguagem do filme também não parte do reconhecido, não tenta racionalizar ou explicar "quem são os yanomami". A linguagem respira o mistério, o desconhecido, a relação entre mundos que não se
traduzem totalmente.

 


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