A exposição "o nome disso não é fome", de Alice Dote, chega ao Centro Cultural Banco do Nordeste como uma mostra que convida o público a atravessar o universo sensorial da artista. Em seu primeiro solo, ela reúne 19 pinturas e uma videoperformance que exploram a relação entre corpo, desejo e olhar, conduzindo o visitante por uma experiência que é, ao mesmo tempo, estética, emocional e humana. A entrada é gratuita.
Ao entrar na exposição, a sensação é a de atravessar um ambiente que respira por conta própria. As paredes em tom de bordô, quase vinho, parecem mudar de densidade conforme a luz se desloca, criando um degradê que envolve o visitante num clima de mistério, intimidade e provocação.
É como se o espaço inteiro tivesse sido preparado para receber um desejo que não se esconde. Logo à entrada, a videoperformance de Alice Dote se repete em looping: ela come, de modo lento e insistente, cachos de uva verde. Não há rapidez nem voracidade, apenas um apetite que não cessa. Como um convite para tudo o que virá.
A mostra reúne 19 pinturas à óleo produzidas em 2025, nas quais a artista investiga como a arte pode encarnar o desejo e instaurá-lo em quem observa. Embora seja sua primeira exposição individual, Alice chega com plena consciência de seu percurso e de sua potência. Ao falar no dia da abertura, ela afirmou sem esconder o orgulho: "Eu estou muito orgulhosa do nosso trabalho. Orgulhosa do que fiz, do que fizemos juntos, e do que a pintura me permitiu elaborar, esse apetite que antes poderia ser culpa, mas que hoje eu assumo com orgulho".
A fala não é apenas entusiasmo de estreia, é a revelação de um método. A artista entende que seu gesto nasce de uma fome que não pede moderação, uma fome que é vida.
O percurso expositivo, um corredor que impede a volta e obriga o visitante a seguir até o fim, foi pensado para que se enfrente aquilo que constitui a obra: a presença do outro, o risco de olhar e ser olhado, o erotismo como campo instável. Entre naturezas-mortas e figuras humanas, as pinturas constroem um território onde objetos e corpos dividem o cenário, sempre atravessados por luz quente e gestos pictóricos que criam zonas de suspensão.
Um objeto laranja isolado sobre tecido vibrante torna-se quase ritualístico; um corpo masculino nu, visto de costas contra uma parede de tijolos, apresenta-se ao mesmo tempo frágil e monumental. São imagens que não se explicam por completo e, por isso mesmo, nos mantêm atentos.
A seção dedicada aos nus masculinos, acessada por um espaço reservado, não usa o erotismo para inverter uma lógica de dominação, mas para tensionar os papéis de quem observa e de quem é observado. Alice olha com intensidade, com entrega, vê o outro, mas se coloca junto. O resultado são cenas íntimas que parecem recém-colhidas de uma relação privada. É possível imaginar o instante que levou a artista a registrar aquele corpo, como se os quadros fossem testemunhas de um encontro antes reservado a dois e agora partilhado, sem vulgaridade e sem medo.
A variação de proporções dá ritmo a esse percurso: de obras mínimas, como "pintura de uma sentada", até telas que ocupam quase uma parede inteira, como "ou é que uma fome sem nome não se sacia". As dimensões desiguais funcionam quase como respirações diferentes, ora curtas e secretas, ora amplas e inevitáveis, compondo uma coreografia silenciosa entre o
íntimo e o monumental.
No texto que escreveu como apresentação do conjunto de trabalhos agora expostos, Alice revela a espessura conceitual do processo desenvolvido ao longo de 2025. Adentrando no espaço da mostra, vemos, inicialmente, os escritos assinados pela artista - que também é mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC).
Para Alice, a pintura só existe porque seu corpo está implicado, exposto, vulnerável. O erótico é entendido como uma forma de conhecimento e de crise, uma zona onde nenhum lugar é estável e onde o contato humano carrega contradições inevitáveis. A artista se ancora em linhagens que a acompanham - Safo, Audre Lorde, Hilda Hilst - e transforma essas vozes em energia para sustentar a força do trabalho. Nada aqui é decorativo: tudo é matéria pulsante.
Ao fim, o visitante sai com a sensação de ter participado de um banquete - de imagens, de tensões, de afetos, de carne, sexo, amor e intimidade. A exposição não se desvia, não ameniza, não suaviza. Ela se posiciona entre a firmeza e a vitalidade. É uma obra que abraça e desestabiliza ao mesmo tempo, que entrega intimidade sem protegê-la e que devolve ao olhar a complexidade que tantas vezes lhe falta.
"o nome disso não é fome" confirma o que a própria artista afirma com lucidez: quanto mais pinta, mais fome tem. E talvez seja justamente dessa fome - indisciplinada, assumida e viva - que nasce a potência que atravessa toda a mostra, que transitando entre a voracidade da fome e a intimidade do ser.
Quem é Alice Dote
Fortalezense nascida em 1992, Alice Dote é artista visual e pesquisadora - com mestrado em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Desenvolve trabalhos a partir de pintura à óleo, desenho e gravura.
"o nome disso não é fome"