Meses antes do Brasil ser tomado enclausurado pela pandemia, em 2019, um livro de autor quase estreante chegou às prateleiras nacionais: "Torto Arado" - obra do geógrafo Itamar Vieira Junior que havia sido publicada anteriormente do outro lado do oceano, em Portugal, graças a um prêmio literário.
O romance - que ironicamente até demorou a aportar no mercado editorial nacional - ganhou rapidamente, entretanto, milhares de leitores apaixonados. Outra ironia é que "Torto Arado" fala do Brasil em sua forma mais genuína: suas gentes, suas paisagens, sua religiosidade e, obviamente, suas centenas de desigualdades sociais.
LEIA TAMBÉM | Itamar Vieira Junior, autor de 'Torto Arado', lança novo livro em Fortaleza
Essa semana, a capital cearense respira a construção do universo "Torto Arado" a partir de eventos conectados pela temática e pela existência. Nesta quinta-feira, 4, o escritor baiano recebe leitores, a partir das 19 horas, na Biblioteca Pública Estadual do Ceará (Bece), para debate e sessão de autógrafos. As senhas serão distribuídas a partir das 18 horas. A expectativa é de "casa lotada".
De sexta-feira, 5, até domingo, 7, serão realizadas quatro sessões do musical homônimo no Cineteatro São Luiz, no Centro. A primeira apresentação, inclusive, contará com a presença de Itamar Vieira Junior - conforme o autor mencionou ao O POVO durante entrevista realizada em novembro.
Da capital cearense - por onde já passou anteriormente para participar de eventos literários - Itamar Vieira Junior diz guardar "boas lembranças". Em 2025, entretanto, há um gosto especial: o autor vai lançar "Coração Sem Medo" - obra que, ao lado de "Torto Arado" e de "Salvar o Fogo" encerra a "Trilogia da Terra".
Conectados por lanços familiares dos personagens e por paisagens, os três livros - todos editados pela Todavia - acompanham um mesmo escopo: o Brasil a partir da vivência de quem encontra na terra motivos para seguir em frente.
No currículo de Itamar - além do doutorado em estudos éticos e africanos pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e do cargo efetivo no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) - estão os prêmios literários Oceanos, Jabuti e Leya. Este último, foi justamente a honraria que possibilitou a primeira publicação de "Torto Arado", ainda em Portugal.
Afinal, nas últimas décadas, poucos autores nacionais agradaram tanto o público leitor e a crítica especializada simultaneamente quanto Itamar Vieira Junior. Prova disso é a tradução do romance de estreia do escritor para mais de 20 idiomas e o crescente desejo por consumo da obra fora do espectro das letras - além do musical que faz temporada em Fortaleza, há uma peça encenada na Europa e o projeto para uma futura adaptação audiovisual.
Livros de Itamar Vieiria Junior
Adaptação para os palcos
Bárbara Sut, Larissa Luz e Elísio Lopes Jr. tiveram o primeiro contato com o livro "Torto Arado" durante a pandemia, em 2020. Mesmo admiradores da obra e da literatura produzida por Itamar Vieira Junior, entretanto, não imaginavam que, cinco anos depois, estariam rodando o Brasil com sessões lotadas de um musical que utiliza o texto literário como fonte para a construção da dramaturgia.
"E me impressionou a aridez do texto, o peso que cada personagem carrega em suas ancestralidades. Foi um livro que me fez companhia por muitos meses", conta Elísio, dramaturgo responsável pela composição do musical, em entrevista ao O POVO realizada dias antes da temporada de Fortaleza. A peça será encenada no Cineteatro São Luiz em quatro sessões - divididas entre sexta-feira, 5, e domingo, 7.
RELACIONADO | Musical inspirado no livro Torto Arado chega a Fortaleza
A "aridez do texto" ao qual o dramaturgo se refere está diretamente relacionada a um elemento preponderante na narrativa: o sertão. Afinal, a obra literária é um passeio por veredas, paisagens, brasilidades e, de forma muito contundente, pela luta dos povos ancestrais e pelo direito à terra.
Para a construção da peça, Elísio ganhou liberdade total de Itamar Vieira Junior - a quem ele considera um "grande entusiasta" da montagem. "Ele não quis participar (da construção do musical), mas acompanhou de perto todos os passos, respeitando nossas escolhas artísticas e vibrando quando o público veio e aplaudiu a história dele, agora no palco", pontua o também roteirista e diretor artístico.
A "total liberdade" conferida pelo escritor apenas ampliou o "desejo de dar conta da grandeza do livro". Para contar a história das irmãs Bibiana e Belonísia são necessárias três horas de encenação - um período que exige, além de talento, estudo e disciplina - a preparação física do corpo de atores. A narrativa se passa sobre uma rampa - e é nela que os intérpretes saltam, cantam, dançam, pulam e até rastejam.
"É uma exigência corporal importante", explica a atriz Bárbara Sut - intérprete da personagem Belonísia. Para ela, há um desafio superior: o cerne da história está no acidente doméstico que acontece com as protagonistas na infância, envolvendo a curiosidade infantil e uma faca adormecida. Com a língua em fragalhos, a crianças pouco ou nada fala - crescendo como uma adolescente e adulta com questões de comunicação. Assim, Bárbara ganhou uma mulher emudecida dentro de um espetáculo musical.
"Mas é gostoso ver como o público reage a essa fala de Belonísia, essa fala gestual, essa presença que ela passa a construir de outras formas", pontua a atriz, lembrando que, além da voz, há muitos silenciamentos na história da protagonista.
No jogo de cronologia e espaço, aponta Elisio, "o tempo da cena não é o tempo do relógio". Há, portanto, lugar para uma certa brincadeira com o imaginário - "deixando a história fluir sem precisar ficar dizendo exatamente quanto tempo se passa, apenas marcando que ele está seguindo e transformando os personagens". O público - que lotou teatros em capitais como Salvador, Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo - não cobra essa sequência lógica. "É o tempo do que é humano", argumenta o dramaturgo.
Em cena, marcando esse relógio, entre os 22 profissionais que integram a composição de atores, também está Larissa Luz - intérprete de Bibiana. Com a missão de elevar a voz, a personagem representa um ponto de ruptura dentro da narrativa. "Bibiana é a que articula, que pensa estratégias, que sustenta a família e o território. Viver essa inteligência emocional, política e comunitária é muito enriquecedor pra mim como artista e como mulher negra", explica a atriz em entrevista.
Leitora ávida das obras de Itamar Vieira Junior, ela lembra que "Torto Arado", em especial, "é uma obra que atravessa a gente, não só pela escrita, mas pela maneira como ele organiza memória, dor, resistência e beleza".
Lançamento de "Coração Sem Medo"
"Torto Arado - O Musical"