A cena teatral do Ceará reafirma, a cada ano, sua potência sensorial. Em 2025, montagens revelaram a diversidade de propostas que atravessam o teatro local e o público. São obras que dialogam com memória, acessibilidade, processos criativos, direitos humanos e pertencimento, aproximando o público de experiências que vão além do entretenimento e se fortalecem como espaço de reflexão.
Acompanhar o teatro é reconhecer a importância de uma cena que se constrói a partir do território e se desenvolve através do insistente desejo de permanecer. Nos palcos, a falta e a dor também falam sobre esperança. Nelas, as limitações se mostram capazes de construir mais do que se imagina.
Em um contexto marcado por desafios, o teatro cearense se mantém como ferramenta de formação, ajudando a compreender o presente e projetar futuros. Nesta página, O POVO reúne peças feitas por cearenses e que impactaram a cena local. Também apontamos para a montagem "Feliz Ano Novo" - que, em circulação no Estado, mostrou uma forma assertiva de acessibilidade. Que o público aceite o convite, percorra os palcos e viva como quem experimenta um gesto de esperança.
"Feliz Ano Novo"
Em agosto, o Teatro dos Sentidos, criado e dirigido pela carioca Paula Wenke, esteve em Fortaleza para apresentar o espetáculo "Feliz Ano Novo", no Theatro José de Alencar e no Instituto dos Cegos. A série de eventos integrou a circulação comemorativa de 25 anos do grupo.
Referência na experimentação sensorial, o coletivo levou ao público a proposta de ampliar o acesso às artes cênicas por meio de experiências que exploram audição, tato, olfato e paladar. Além disso, houve troca com a cena teatral local - exemplificada na forma ocmo os integrantes do Teatro dos Sentidos realizam as ações de acessibilidade.
O grupo possui um elenco fixo, porém, quando realiza temporadas itinerantes, recruta atores das cidades de destino. A companhia traz em suas apresentações recursos de acessibilidade para pessoas com deficiência visual - incluindo textos adaptados, interações sensoriais dos atores com a plateia, descrições em letra aumentada e em braile e uso de Libras tátil (forma de comunicação para pessoas surdo-cegas).
"Inacabado"
Em tempos que impõem pressa, produtividade, performance e soluções imediatas, tanto na arte quanto nas relações, um novo projeto teatral convidou o público a desacelerar, a habitar o processo e a enxergar na imperfeição e no inacabamento caminhos possíveis de reinvenção do mundo.
No dia 17 de julho, o Grupo Bagaceira de Teatro subiu no Palco Principal do Theatro José de Alencar para apresentar uma peça que não ficou pronta. Assim resume-se o espetáculo "Inacabado". No lugar de uma apresentação acabada e polida, o público é arrastado a um mergulho nos bastidores do processo, repleto de tentativas e suposições sobre o que a peça poderia vir a ser.
Em cena, os artistas assumem a si próprios como matéria dramatúrgica. Transitando entre o real e a invenção, expõem inseguranças, embates internos e inquietações que atravessam o processo de criação de um espetáculo — e, inevitavelmente, a própria existência. A obra encara o "inacabado" não como limite, mas como força criativa.
Costurada por lembranças afetivas e pela experiência do luto, a encenação se move entre o riso e a dor, com a franqueza de quem faz do teatro um modo de estar no mundo. "Inacabado" trata-se de um gesto artístico e político diante do tempo presente, marcado pela perda, mas também pelo humor, pela resistência e pelo desejo de continuar.
"A força da água"
Com dramaturgia e direção de Henrique Fontes, a peça "A Força da Água", do grupo Pavilhão da Magnólia, abordou fatos apagados da história do Brasil em torno da indústria da seca no Ceará, lembrando-nos que o direito à água ainda não é universal. Pelo contrário, o tempo vem mostrando que o uso do recurso natural já foi até mesmo um privilégio.
Com uma linguagem documental e bem humorada, o espetáculo relembra os locais de confinamento criados pelo governo do Ceará durante as grandes secas do século XX (notavelmente a de 1915 e 1932) para isolar retirantes que migravam para a capital, Fortaleza, em busca de ajuda. Esses locais, ofuscados e esquecidos no imaginário cearense, eram marcados por condições subumanas e genocídio.
A montagem foi premiada na 35ª edição do Prêmio Shell de Teatro, principal honraria do teatro brasileiro, na categoria "Destaque Nacional". Com "A Força da Água", o grupo Pavilhão da Magnólia circulou pelo projeto Palco Giratório do Sesc Nacional passando por 16 cidades do País.
"Drácula: A Lenda da Sombra"
A estreia de "Drácula: A Lenda da Sombra" no Theatro Via Sul revelou uma montagem que entende o clássico de Bram Stoker como matéria viva e pronta para ser reinventada. Com texto e direção de Iuri Cintra e produção de Alisson Braga, a peça cearense aposta em uma releitura ousada, que dialoga com o imaginário contemporâneo sem perder o peso gótico da obra original.
No palco, a narrativa é construída com ritmo envolvente, equilibrando tensão, lirismo e momentos de impacto, o que mantém o público constantemente capturado pelo universo sombrio. O espetáculo aposta na construção visual - que não serve somente como adorno, mas como extensão da narrativa, ajudando a "materializar" o famoso conde diante do espectador.
"Flor de Mandacaru"
O espetáculo "Flor de Mandacaru", protagonizado por Virginia Oliveira, surge como uma das propostas mais sensíveis de 2025. De caráter autoral, o projeto rompe fronteiras entre linguagens ao fundir música, poesia falada (slam), teatro e referências do cordel, criando uma narrativa que nasce do sertão e dialoga com questões sociais urgentes. Em cena, a artista transforma vivência em discurso artístico.
A obra fala sobre o abandono do sertão pelas políticas públicas e a solidão que nasce dessa ausência. Nesse cenário, Virgínia cria um paralelo com sua própria solidão, onde até mesmo o afeto, algo que deveria ser universal, é negado. A flor do mandacaru, metáfora central do projeto, simboliza resistência em meio à aridez — imagem que se reflete tanto na trajetória da artista - mulher sertaneja e com deficiência - quanto no corpo do espetáculo. A crítica social emerge entre momentos de denúncia, afeto e contemplação, convidando o público à escuta atenta.
Musicalmente, "Flor de Mandacaru" constrói um território variado, no qual forró, MPB e jazz se encontram com naturalidade. As canções dialogam com os textos de slam e transformam o palco em espaço de memória. O EP "Flor de Mandacaru (Sertão)", lançado em 2025, amplia essa experiência para além do espetáculo, reafirmando o projeto como obra artística completa.
Com circulação por cidades como Fortaleza e Maracanaú, o espetáculo se consolida não apenas como apresentação cultural, mas tensiona discursos hegemônicos sobre o Nordeste e sobre a deficiência, reposicionando esses corpos e territórios como centros de criação e pensamento.