Quando Daniel Craig surgiu na pele do detetive Benoit Blanc em "Entre Facas e Segredos" (2019), uma grande parcela de ironia tomou conta do humor do novo personagem porque o ator ainda estava compromissado com James Bond, clássico espião britânico ao qual emprestou sua postura por 15 anos na saga 007. Diferente de Bond, Blanc é divertido e despretensioso, construído como se fosse uma caricatura da figura do investigador que resolve qualquer mistério.
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Agora no terceiro capítulo - o longa "Vivo ou Morto: Um Mistério Knives Out", disponível na Netflix - Craig recebe uma companhia de peso: Josh O'Connor que interpreta Jud Duplenticy, um padre indisciplinado que acaba virando o principal suspeito de um assassinato após testemunhá-lo com um grupo seleto de fiéis. Nos filmes anteriores, sempre houve um personagem tão interessado na resolução quanto Blanc, mas Josh foge da função coadjuvante para receber o mesmo posto de Craig como "Atuação Principal".
Na trama, Jud é transferido para uma pequena igreja do interior de Nova York como punição por ter agredido um seminarista. Quando chega lá, porém, toda sua rebeldia com os dogmas da Igreja Católica é suspensa ao se dar conta do que está acontecendo na fictícia Chimney Rock: Monsenhor Wicks (Josh Brolin) está expulsando fiéis da paróquia enquanto mantém um pequeno grupo alienado nas suas promessas.
Quando Jud chega na cidade e questiona diretamente o método coercitivo e fatalista do patriarca, rapidamente vira inimigo de todos. Então, de repente, o monsenhor morre no meio de um sermão à luz do dia, sem qualquer ataque visível ou rastreável, esfaqueado. Como isso foi possível? Quem dali poderia ter um motivo maior do que Jud para cometer esse crime?
Ponderando a trilogia "Knives Out", este capítulo pode até não ser o mais intrigante porque deixa o seu verdadeiro mistério durar pouquíssimo tempo em tela. De longe, porém, este parece o mais envolvente de acompanhar porque Josh O'Connor é brilhante nessa medida de comédia e tensão. Penso que esse talvez seja o melhor papel da sua carreira no cinema, e o fato de ser um personagem tão simples e nada hiperbólico, de ser engraçado e melancólico, parece tornar a constatação cada vez mais possível.
Por debaixo dos seus olhos sorridentes, o terror de um padre que é assombrado pela própria fé, que defende o destino, mas que de repente está fugindo dele. As cenas em que Jud lembra ser um padre me emocionaram mais do que Terrence Malick tentou fazer em "Amor Pleno" (2012) com o reverendo solitário do Javier Bardem. O momento em que sua adrenalina em torno da resolução do mistério é aniquilada quando uma das testemunhas pede oração para sua mãe, internada num hospital psiquiátrico, é facilmente uma das cenas mais interessantes do ano.
Mas nós estamos falando de uma comédia, certo? Apesar de toda a violência que parece estar implícita, o filme é divertido porque a dupla Craig-Josh encontra uma sinergia sincera. Em paralelo, a presença de Glenn Close aos 78 anos dá um banho de humor sempre que aparece como essa diácona intimidante que vive na sombra do monsenhor. O diretor Rian Johnson ("Looper", "Star Wars") agarra essa essência e nunca deixa a energia eletrizante do "whodunit" escapar.
O trabalho cenográfico na direção de cena sabe explorar tanto os ambientes internos quanto os externos, sabe dar gravidade não apenas para o presente e o passado, mas principalmente para o que dialoga com a imaginação e a memória, com o mundo e o sagrado. A luz que entra pela igreja, os flashbacks pintados pelas luzes vitrais, o faroleiro na floresta noturna. A sequência inteira da tempestade em que o segredo vira do avesso, com devaneios e ressurreições, é arrepiante.
A sacada do mistério dentro do mistério é boa porque coloca o espectador para resolver uma coisa que nem era a mais importante até então, mas dura muito pouco. A teia coadjuvante também não parece tão bem escrita como no primeiro filme de 2019, no qual todos tinham camadas e soavam importantes, e aqui há uma penca fazendo quase que uma figuração de luxo: Andrew Scott, premiado no começo de 2025 no Festival de Berlim, aqui sobra sem piedade, assim como Mila Kunis e Cailee Spaeny.
De toda forma, o núcleo central é tão envolvente que a fragilidade dramatúrgica vai se transformando num detalhe à medida que o emaranhado avança. Desprendendo-se da robustez para nos fazer acreditar nos planos mirabolantes, mas também sabendo se levar a sério para nos fazer pensar sobre culpa e saudade, "Vivo ou Morto" chega na Netflix como um ótimo filme de Natal. Os outros filmes da franquia, "Entre Facas e Segredos" e "Glass Onion", também estão disponíveis na plataforma.