Por que ir a um show se ele vai ser transmitido ao vivo na TV? Por que ir ao cinema se há tantos filmes disponíveis no streaming? Por que ir a um estádio se o mesmo jogo de futebol pode ser visto do conforto de casa?
Naturalmente, após anos cumprindo quarentena pela covid-19, alguns hábitos de consumo mudaram na população geral. Nesse período, os streamings conquistaram mais assinantes, as redes sociais se tornaram uma forma de entretenimento e as pessoas aprenderam novas formas de lazer em casa.
É possível perceber hábitos mais "caseiros" entre os brasileiros. No caso de Fortaleza, com o fechamento de várias boates, há uma sensação de diminuição da vida noturna, que também acaba cada vez mais cedo.
Essa percepção é estudada em universidades e analisada para a gestão de políticas públicas. Na sexta-feira, 5, o Ministério da Cultura (MinC) reuniu gestores e jornalistas para divulgar uma pesquisa inédita sobre de que forma os brasileiros estão acessando cultura. O resultado reflete uma característica pós-pandêmica: os meios digitais estão no topo das respostas.
"A pesquisa mostra que o brasileiro gosta de cultura, consome cultura, mas faz isso majoritariamente no ambiente digital. Portanto, o nosso desafio não é criar interesse, e sim reduzir a distância entre o consumo online e a presença física", avalia Gabriella Gualberto, chefe de Comunicação do MinC.
Ela defende que hajam mais políticas públicas para facilitar atividades culturais presencialmente: "Teatro, museus, dança e demais linguagens precisam ocupar imaginariamente o mesmo espaço que hoje é ocupado por plataformas como o Instagram e o WhatsApp".
A pesquisa, realizada pelo Instituto Nexus, primeiro avaliou o que era considerado cultura para a população geral. O diretor da instituição, André Jácomo, expõe: "A pesquisa mostra que, para a maioria dos brasileiros, cultura está ligada à formação de identidade e história. Todos têm alguma relação com arte — seja música, dança, audiovisual, literatura ou manifestações tradicionais".
Essa base serviu como guia para entender de que forma as pessoas estão se conectando com a própria cultura. 53% dos entrevistados ouviram músicas, 52% viram filmes e 40% viram séries - nos 30 dias anteriores à pesquisa. Houve ainda 32% que assistiram novelas e 21% que assistiram jogos pela TV. Em comum, essas atividades costumam ser realizadas em casa.
Antes de qualquer atividade presencial constar no ranking, livros físicos, jogos digitais e e-books aparecem à frente. Teatro, espetáculos de dança, circo e demais atividades em equipamentos culturais não alcançaram nem 3% de menções.
Relacionado a isso, outro dado que chama a atenção é o meio de consumo da cultura. Os que aparecem em primeiro lugar são celular, TV, rádio e computador - respectivamente com 62%, 53%, 9% e 8%. Atividades presenciais aparecem em quinto lugar, com 5%.
Mas entender apenas o meio de acesso não é suficiente. Por isso, a pesquisa perguntou sobre as razões que afastam os entrevistados de atividades presenciais de cultura. Nesse ponto, o mais citado — com 33% — é a falta de tempo. Outros destaques são a falta de dinheiro, com 24%, e as dificuldades com transporte e segurança pública — ambas com 9% de menções.
O mesmo público respondeu sobre quais eventos presenciais, sendo cinema o mais citado por 33% das pessoas, seguido de shows e teatro - com 27% e 18%.
Para Margareth Menezes, gestora do MinC, o cenário é positivo por demonstrar que há interesse e busca pela cultura. Ela destaca que o papel do poder público é criar maneiras de facilitar o acesso a eventos culturais para a população: "Fico feliz porque acredito muito no potencial que o setor cultural tem. O impacto começa na vida de quem é beneficiado — artistas, técnicos de som, fotógrafos, iluminadores — profissionais que nem sempre lembramos quando pensamos em cultura".
Metodologia
A apuração foi realizada pela Nexusentre 6 e 12 de novembro de 2025, quando foram entrevistados 2.016 cidadãos com idade a partir de 16 anos, nas 27 Unidades da Federação (UFs). A margem de erro no total da amostra é de 2 pontos, com intervalo de confiança de 95%.
Plataformização
Ainda que a pandemia tenha acelerado o processo de digitalização, essa mudança não aconteceu somente a partir de 2020. O pesquisador em cibercultura e comunicação digital Rafael Rodrigues, aponta que, a partir de meados da década de 1990, as formas de consumo se adaptaram.
"É um processo bastante contemporâneo, acelerado e que se consolida rapidamente. Se observarmos a história das mídias, percebemos que, em apenas 30 anos de internet comercial no Brasil, vídeo, música e outros produtos culturais migraram para o digital de maneira muito veloz", diz.
Citando o sociólogo Pierre Lévy, Rafael explica que a sociedade civil adquiriu o hábito de "construção de conhecimento e troca de informações" no universo digital.
"A digitalização da cultura também está ligada aos movimentos econômicos e políticos dos grandes grupos de comunicação. Conglomerados de mídia e entretenimento migraram gradualmente para o digital. O caso da Globo é emblemático: hoje, ela produz conteúdo exclusivo para streaming e opera com um modelo consolidado de distribuição digital — algo impensável para a emissora dos anos 1990", exemplifica sobre o fenômeno de "plataformização".
Apesar dessa adequação, o pesquisador diz não acreditar em uma substituição total do consumo de cultura "presencial". Ele cita, como exemplo, que a televisão nunca substituiu o rádio e nunca foi substituída pelas redes sociais. "A história das mídias mostra uma convivência entre formatos, não uma eliminação completa. O que ocorre é um reequilíbrio de forças", resume.
Rafael aponta que, em algumas linguagens, ir até o equipamento cultural representará uma "experiência premium": no audiovisual, as grandes estreias serão no cinema; na música, os shows serão o modo imersivo.
Isolamento das telas
Há 14 anos, quando a série "Black Mirror" estreava na Netflix, uma nova percepção foi questionada: as limitações que um mundo tecnológico demais possui. Com abordagens sobre inteligência artificial e digitalização até do próprio cérebro humano, o nome da série se tornou referência em situações muito absurdas.
Em 2025, dizer "isso é muito Black Mirror" já não faz mais tanto sentido, pois tudo parece "muito Black Mirror". Numa realidade na qual as pessoas passam o dia inteiro à frente de telas — celulares, computadores, TVs e até painéis eletrônicos — se torna importante falar da importância das interações "offline".
Em entrevista ao Vida&Arte, três psicólogos debateram acerca das consequências da diminuição do consumo de cultura presencial. A psicanalista Suyanne Alencar argumenta: "A sociabilidade auxilia em práticas que atendem a necessidades mentais e até físicas, contribuindo para a manutenção do bem-estar. Estar em contato com pessoas do nosso convívio íntimo, que despertam sentimentos positivos, nos ajuda a lidar com as questões cotidianas da vida, que, por si só, já podem gerar atravessamentos sintomáticos, como a ansiedade".
Eveline Câmara, psicóloga, pedagoga e psicopedagoga, acrescenta que momentos de socialização "cara a cara" contribuem para a regulação dos sentimentos e diminuição da agressividade. Ela destaca que, apesar de a internet ser um espaço de comunicação, ela não substitui o "ao vivo": "Nenhuma forma de interação digital substitui a experiência presencial".
"Durante o isolamento e o lockdown, fomos obrigados a ficar completamente afastados, e muitas vezes a única forma de nos conectarmos com o mundo — e com suas manifestações, incluindo a cultura — era por meio da tecnologia", relembra Eveline.
A pedagoga questiona retoricamente se a experiência dos streamings substitui o cinema e se uma transmissão online é tão energizante quanto um show. "Isso nos toca da mesma forma? Nos preenche do mesmo jeito?", indaga.
"O lazer vivenciado presencialmente — o próprio nome já indica — exige "presença, atenção e abertura para o imprevisto. No meio digital, tudo pode ser pausado, acelerado ou interrompido a qualquer momento. Já o lazer presencial convida o sujeito a sustentar a experiência até o fim: a experiência do encontro, inclusive com suas pausas, momentos de silêncio, tédio e frustrações, que também são fundamentais para a elaboração emocional", complementa o psicanalista Davi Montenegro.
Outro aspecto que merece atenção é o impacto dessa digitalização na formação e aprendizado de crianças e adolescentes. Eveline cita que o excesso de telas nesse contexto pode causar danos cognitivos.
"Vemos, por exemplo, adolescentes — e também adultos — que conseguem passar o dia inteiro conversando pelo celular, mas encontram dificuldade para se comunicar quando estão presencialmente", aponta.
A especialista finaliza: "O uso excessivo é, sim, extremamente prejudicial e precisa ser revisto, em limites e parâmetros reais".