Em 2016, os mistérios da fictícia cidade de Hawkins e um grupo de amigos conquistaram um público grande e fiel. Quase uma década após a estreia de "Stranger Things", a série de ficção científica que atingiu recordes de audiência chegou a causar instabilidade na Netflix tamanho alvoroço com a chegada dos novos episódios da última temporada, lançada em 2025 e dividida em três partes.
O episódio final da produção chega à plataforma na virada de 2025 para 2026. Ancorada na nostalgia visual e narrativa, "Stranger Things" está prestes a tornar-se alvo do próprio recurso. Com o fim da série, fãs que acompanharam a jornada de Eleven (Millie Bonnie Bongiovi), Mike (Finn Wolfhard), Dustin (Gaten Matarazzo), Lucas (Caleb McLaughlin), Will (Noah Schnapp) e Max Mayfield (Sadie Sink), preparam para despedir-se dos personagens com os quais cresceram junto.
Com estética e narrativa alinhadas aos anos 1980, durante a Guerra Fria, o mote inicial da série criada pelos irmãos Matt e Ross Duffer é o desaparecimento de Will, que vira alvo das buscas da mãe, Joyce (Winona Ryder), do chefe de polícia Hopper e do seu grupo de amigos. A partir daí, a pequena cidade de Indiana, nos Estados Unidos, descobre uma série de experimentos secretos, seres sobrenaturais e uma nova dimensão: o Mundo Invertido (Upside Down).
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"Eu cresci assistindo. Acompanhei cada temporada assim que lançava, me apaixonei por cada personagem novo, e me despedacei quando as despedidas vieram", declara Gabriel Rodrigues, 26, fã conquistado pelo sucesso mundial que encontrou no Brasil um dos seus maiores públicos.
Para a jornalista e especialista em cultura pop Karol Gomes, o êxito da produção é resultado de uma mistura entre nostalgia, elenco jovem, fantasia e suspense. "No começo, o que me chamou atenção foi o mistério e aquele clima diferente, meio assustador, mas ao mesmo tempo com crianças como protagonistas", relata a fã Ana Viviane da Silva Teixeira, 26 anos.
O protagonismo infantil, que poderia ter sido descartado após dificuldade dos irmãos Duffer em vender a série, acabou por "dar um rosto" à produção, que surgiu com a promessa do retorno da estrela de Hollywood Winona Ryder às telas - um aceno a espectadores da geração Y, nascidos entre 1981 e 1996. Atores novatos como Millie Bobby Brown - que adquiriu o sobrenome Bonnie Bongiovi após o casamento - e Sadie Sink ajudaram a formar a identidade de "Stranger Things".
O "mundinho 'Stranger Things'"
"Todo mundo quis fazer parte do Power Rangers um dia ou quis ser um Jedi", diz a jornalista de cultura pop Karol Gomes. Ela conecta os moldes da cultura pop ao universo narrativo criado por "Stranger Things". O Mundo Invertido, os monstros e o grupo de amigos são parte de um "mundinho reconhecível que todo mundo quer fazer parte", define.
A identidade reconhecível da série e o desejo de pertencimento, aliás, ultrapassou as telas. A comercialização de "Stranger Things" ganhou a forma de livros, peças teatrais, histórias em quadrinhos, jogos, roupas e até produtos comestíveis. Tão bem sucedida na produção desse "mundinho", a série tornou-se uma marca cujo apelo comercial vai além da audiência, bem como da nostalgia.
As luzes de Natal usadas por Joyce para comunicar-se com Will no Mundo Invertido; os walkie-talkies; a cabana de Will e até a camiseta do Hellfire Club vestida por Eddie" Munson (Joseph Quinn) na temporada 4: os símbolos de "Stranger Things" explorados nesses produtos associados ao seriado são, na perspectiva de Karol Gomes, o que o tornam um ícone da cultura pop.
"Acho que 'Stranger Things' no começo era uma coletânea de símbolos de cultura pop externos e agora se tornou a própria coletânea de símbolos de cultura pop", opina a especialista. Para ela, uma das marcas deixadas pela série está na personagem Eleven, uma garota submetida a experimentos científicos e com poderes sobrenaturais, misteriosamente ligada ao universo.
"Ela apareceu careca, criança. Isso é algo muito fora do comum para uma heroína feminina. Então, eu acho que essa figura, essa ambientação, os signos da série ficam muito como referência de cultura pop. Mesmo se passando nos anos 80, a gente reconhece como moderno. As referências, a estética, a mensagem principal da série, que é a da amizade", elenca Karol Gomes.
O que manteve Ana Viviane conectada à série dos 17 até os 26 anos foi justamente o vínculo com os personagens. "Não era só sobre monstros, era sobre amizade, dor da perda, crescimento e enfrentar o medo juntos", declara. Para a fã, suspense, emoção, personagens carismáticos e fáceis de se identificar e nostalgia são os ingredientes que fazem sua série favorita fadada ao sucesso.
Na avaliação de Karol Gomes, "Stranger Things" não tem história, é uma série que segue fórmulas. A cada temporada, ela observa um padrão: os personagens se dividem, depois se reencontram, e um personagem amado pelo público acaba morrendo.
A especialista em cultura pop comenta estranhezas na narrativa, como limitações no desenvolvimento de alguns personagens: Lucas, um dos poucos personagens negros cuja raça não tem implicações na narrativa, a falta de motivação de Steve (Joe Keery) e o enredo de Nancy (Natalia Dyer), que acaba resumido à escolha de seu par romântico.
Para a temporada derradeira, guarda a expectativa de que o seriado consiga "amarrar" as poucas explicações dadas sobre Vecna e o Mundo Invertido e dar sentido à narrativa como um todo. Um final feliz, palpita, é bem provável. Já Gabriel Rodrigues torce para que Will e Eleven fiquem vivos, que Robin consiga levar a namorada para jantar e que Max e Dustin "acabem com o Vecna". E para que ele tenha lenços suficientes para secar as lágrimas.
É certo que, apesar das inconsistências, a série sobre amizade termina consolidada como "o título mais bem-sucedido em seu processo de 'audiovisualizar' a nostalgia", conforme Cirne. O pesquisador afere que "não faltam caminhos para que o Mundo Invertido permaneça sendo alimentado pela indústria cultural", como o spin-off de Nancy Wheeler e os livros que expandem o universo da série.
Disputa ideológica
A nostalgia também se justifica pelas motivações políticas por trás da série. Karol Gomes aponta que "Stranger Things" retrata "os Estados Unidos, naquele tempo de Guerra Fria, como soberano e o melhor lugar para se estar". Nesse sentido, o pesquisador Maximiano Cirne contribui: "As imagens apresentam produtos culturais fascinantes, sem abordar um contexto mais amplo".
No recorte apresentado na história, ele cita que a epidemia de Aids, o aumento da violência urbana, a recessão econômica, o desemprego, a discriminação de gênero e a diferença salarial para as mulheres e o aumento da desigualdade social, que também fizeram parte da década de 1980, ficaram de fora em prol da solidificação de um imaginário.
"Mesmo quando questões envolvendo a Guerra Fria e projetos secretos do governo estadunidense são incluídas na narrativa, elas surgem como uma ameaça àquele ambiente perfeito", defende o pesquisador em relação aos amigos da ficção, que constantemente lutam contra monstros invasores, como o Demogorgon e o grande vilão Vecna.
Ameaças à ordem, os seres do Mundo Invertido ganham acesso à Hawkins por cientistas soviéticos que abrem portais para a realidade alternativa na 3ª temporada. O Mundo Invertido, banhado por uma constante tempestade vermelha - cor associada ao Exército Vermelho, da União Soviética (URSS) -, é espelhado na realidade. A diferença é que, nessa dimensão, o tempo não passou.
Nostalgia
A ligação entre nostalgia e o apelo à geração Z pode parecer confusa. Afinal, este grupo geracional é composto por aqueles nascidos a partir do fim dos anos 1990 e, portanto, não-testemunhas do período retratado por "Stranger Things".
O doutor em Ciências da Comunicação Maximiano Cirne, ou Max Cirne, explica que a nostalgia também pode funcionar na "ordem do não vivido", termo cunhado no artigo "Uma viagem no tempo: nostalgia e memória numa edição da Trip", de Frederico Tavares e Denise Prado.