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Onde meu coração mora
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Vida & Arte

Onde meu coração mora

Há casas que nos criam sem constar nos documentos. Meu lar tinha um quintal, uma passagem secreta no muro e uma mãe que mostrava o colorido da vida
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Ilustração de Luiza Ester (Foto: Luiza Ester)
Foto: Luiza Ester Ilustração de Luiza Ester

A poesia sempre foi inevitável na minha vida. Acho mesmo que é porque cresci em um quintal com "balançador" no abacateiro e no pé de sapoti, na Messejana, bairro de Fortaleza. Quem me conhece sabe disso. Acontece que esse quintal não era oficialmente a minha casa, mas era onde meu coração morava.

Tento explicar.

Um casal especialista em criar seres vivos (planta, flor, árvore, galo, galinha, papagaio, cachorro, humano) me adotou como mais uma de suas filhas. Antes mesmo de eu nascer, ainda no útero da mamãe, Maria Nilce Franklin dos Santos e Raimundo Luciano Pereira dos Santos já cuidavam de mim. Da casa vizinha, ofereciam a ela tapioca, peixe, amor.

Foi um caminho muito natural. Tão natural que chega a ser estranho tentar explicar para quem pergunta tentando entender. Quando aprendi a falar, disse: Mãe Nita e Dedé. São, também, meus pais. Vim ao mundo e eles chegaram com tudo: com toda força, todo o amor, toda a magia da vida. Alertaram sobre os perigos da cacimba. Ensinaram a escrever e a ler quando só tinham o fundamental. Todo dia tinha papéis com linhas pontilhadas, alfabeto com rosto desenhado e lápis de cor. No almoço, refrigerante Frevo de laranja. Eu amava o sorvete de abacate, os biscoitos champanhe e o coco ralado na hora misturado com açúcar. Amava os banhos de chá quando estava doente, os passeios de bicicleta e o sorvete de quatro bolas por R$ 1 servido na vasilha.

Eu adorava o cheiro deles e a maneira como penteavam os cabelos. Fui encantada pela passagem secreta aberta no muro baixinho para que eu entrasse em sua casa sem pedir licença e ficasse por lá o tempo que quisesse. Ali, eu podia brincar, imaginar sacis e inventar mundos. Aprendi a olhar o céu e saber quando ia chover. Com eles, fui bebê, fui criança, fui passarinha. Pude ser eu.

Mãe Nita e Luiza Ester(Foto: Arquivo pessoal)
Foto: Arquivo pessoal Mãe Nita e Luiza Ester

Eu era carente e eles me davam carinho. Chorava, e eles deixavam eu chorar. Naquele quintal, vivi verdadeiramente cada fase da vida com a ternura que elas deveriam ter. Aprendi a ser filha, irmã, amiga, gente.

Mãe Nita sempre disse: "Tem que saber entrar e saber sair" — sabedoria que aprendeu com seu pai, José Franklin, e que repassou a mim e a tantos outros filhos que criou. Disse também que eu sou vitoriosa e o meu caminho iluminado, porque sou abençoada. Ensinou a ter fé em Deus, na vida e no incerto: "Ninguém sabe o dia de amanhã".

Por vezes, busquei força no vento que tocava as folhas das árvores e as flores em formato de estrela daquele quintal. Troquei os olhares com pintinhos, soins e até cobras. Descobri a vida e compreendi como amá-la porque Mãe Nita e Dedé me amaram.

No sábado, 20 de dezembro de 2025, minha mãe completou sua passagem na Terra. Foi passear no infinito, encontrar seu parceiro de vida. Eu só tenho a agradecer a este planeta por ter me presenteado com a melhor mãe do mundo. Ter sido adotada mudou o rumo da minha vida, me fez ser quem eu sou hoje. E eu jamais vou esquecer que essa jornada pode ter o encantamento do tapete rosa de um jambeiro ou a doçura de uma manga do pé. Disse isso a ela nos últimos dias. E a agradeci, muito muito muito mesmo. Porque eu só sei viver porque eles mostraram o caminho e disseram que estavam comigo.

É muita sorte mesmo. Só dói saber que naquela casa mágica não vou encontrá-la em presença, com sua rapidez, gaiatice e desejo de bater perna pela cidade. Mas a encontro em tudo que sou. Basta dizer bom dia ou pedir licença: todos sabem que foi ela quem me ensinou.

Te amo, minha mãe. Para sempre.

 

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