O fim do ano costuma convocar a ideia de recomeço. Mas, para algumas pessoas, a virada não acontece com a troca do calendário, ela se impõe antes, de forma abrupta, quando o corpo deixa de responder como antes e a vida precisa ser reorganizada a partir de novas condições.
Não se trata de metáfora ou abstração: é o impacto concreto de um acidente, de uma doença ou de uma limitação física que atravessa rotinas, identidades e projetos de vida.
Esta reportagem reúne três trajetórias marcadas por rupturas profundas. Paulo Roberto, Rebeca Alves e Bárbara Valões tiveram seus caminhos alterados por acontecimentos que transformaram seus corpos e a forma de estar no mundo.
O recomeço, em cada história, não surge como resposta imediata nem como narrativa exemplar de superação; ele se constrói aos poucos, no encontro com a arte, com o movimento e com a escuta do próprio corpo.
A engenharia de iluminar pessoas
Engenheiro eletricista por formação, Paulo Roberto Cândido de Oliveira, 64 anos, construiu uma carreira sólida antes que um diagnóstico genético alterasse seus planos. A perda progressiva da visão central o obrigou a reconsiderar não apenas sua atuação profissional, mas a forma como se percebia socialmente.
No início, o diagnóstico era um segredo guardado sob o medo do preconceito e da desvalorização.
"Tinha um alto preconceito, ou seja, achava que as pessoas não iriam me valorizar se soubessem que eu tinha uma deficiência na visão. Isso me fez esconder. Foi até quando eu estava tocando uma obra, que tive oportunidade de avaliar um projeto no sol e precisei levar para o hotel para olhar com a lupa. A partir daquele dia, eu pensei: não posso mais estar disfarçando a situação que tenho", relatou Paulo sobre o momento em que a realidade física atropelou a tentativa de manter as aparências.
A mudança de rota o levou ao Instituto dos Cegos de Fortaleza em 1997. Ali, o que era limitação transformou-se em potência. Paulo percebeu que a arte, que já o acompanhava desde a infância em Juazeiro do Norte, seria o seu novo campo de atuação.
Ele deixou de projetar circuitos elétricos para fundar academias de letras e grupos de maracatu. Entre suas produções literárias, destaca-se o livro "Aves de Retina", no qual registra a história da Academia de Letras que fundou, unindo sua memória pessoal à coletividade.
"Quando eu cheguei aqui no instituto, eu potencializei algo que já tinha. Passei a produzir uma arte da inclusão, onde a própria pessoa com deficiência é protagonista. Coordenei projetos de informática, fundei uma academia de letras formada só por pessoas com deficiência visual, participei do teatro, da música, da literatura. A arte sempre fez parte da minha vida, mas aqui ela se ampliou", detalhou o gestor cultural.
Para Paulo, a deficiência deixou de ser algo a ser ocultado e passou a ser assumida como parte constitutiva de sua identidade.
Ele descreve a transição de um modelo de vida inviável para um protagonismo que utiliza a sensibilidade como ferramenta de trabalho e vida.
"Foi quando eu entrei aqui na instituição que percebi que não estava só me adaptando, mas recomeçando. Descobri que a minha verdadeira identidade era essa: a pessoa com limitação visual que pode protagonizar, criar, ensinar. Meus projetos de iluminação hoje não são mais para edifícios, são para iluminar pessoas", declarou o escritor, evidenciando a mudança de perspectiva sobre sua própria função social às vésperas de mais um ano.
O corpo que dança sua própria liberdade
Para Rebeca Alves Conrado, 38 anos, o recomeço foi um processo lento, marcado pela resistência de um corpo que parou de obedecer aos seus comandos aos 26 anos.
O diagnóstico de distonia cerebral, uma desordem neurológica que causa contrações involuntárias e posturas corporais rígidas, impôs uma rotina de limitações severas.
Na fase mais crítica, Rebeca precisou reaprender a se deslocar dentro de casa, apoiando-se nos móveis ou engatinhando, uma realidade drástica para quem estava no ápice da juventude e com a responsabilidade de criar um filho de dois anos.
"No começo eram apenas uns espasmos pequenos, mas no decorrer da minha rotina, eu percebi que cansava muito, suava bastante e não tinha forças para andar sozinha. No decorrer dos dias, eu já não conseguia andar e o melhor jeito de me locomover era parecido com um bebê que ia engatinhar. Chegou ao ponto que eu não pude trabalhar e tive que buscar ajuda médica", descreveu Rebeca, lembrando o impacto de ver sua autonomia cerceada enquanto exercia a maternidade.
A força para enfrentar os anos de incerteza veio, em grande parte, da relação com o filho.
Mesmo diante da dor e da depressão que acompanharam o diagnóstico, Rebeca encontrou no papel de mãe o combustível para não estagnar.
"Eu perdi muita coisa, um pedaço de mim foi arrancado física e mentalmente. Mas o ganho foi maior: o apoio da minha família e, principalmente, meu filho, que foi minha maior força. Ele aprendeu a se amar muito, tem uma autoestima lá em cima, e eu amo ver que ele cresceu assim, independentemente de qualquer coisa", declarou com orgulho do filho, Arthur, hoje com 14 anos.
A estabilidade física necessária para retomar a vida veio através do Núcleo de Neurologia do Hospital Geral de Fortaleza (HGF).
Após tentativas frustradas com medicamentos que a deixavam incapacitada, o tratamento com toxina botulínica (Botox) foi o divisor de águas que devolveu para Rebeca a capacidade de se mover com menos dor e mais presença.
"Encontrar uma equipe especializada no HGF que soubesse o que fazer trouxe a esperança de ter uma vida mais normal. A aplicação de Botox a cada quatro ou cinco meses mudou minha vida e me trouxe a autonomia de volta", relatou.
Com o corpo livre, Rebeca buscou refúgios para a mente e o espírito. A natação trouxe leveza; o pilates, consciência corporal; e o mar tornou-se um território de cura através do "stand up paddle".
Recentemente, ela integrou um clube de leitura para "desacelerar e cuidar da cabeça", mas é na dança solitária, ao som de Beyoncé, que Rebeca encontra sua expressão mais autêntica.
"A dança significa liberdade para o meu corpo e respiro para a minha autoestima. Quando danço, meu corpo deixa de ser algo que eu julgo e vira algo que eu vivo. É o meu jeito de dizer para mim mesma: 'Eu importo'", confidenciou.
Neste 31 de dezembro, Rebeca olha para 2026 com o pé no chão e o coração aberto para o autocuidado.
Após um ano dedicado intensamente a cuidar dos pais, ela utiliza seu "vision board" - painel com imagens que lançam perspectivas para o futuro próximo - para traçar o retorno às atividades físicas e à praia, o lugar onde se sente mais conectada consigo mesma.
"Este ano, eu quase não fiz nada para mim e senti que isso precisa mudar. Quero voltar a me amar e a fazer mais por mim, não só pelos outros. Meu projeto para o novo ano é construir uma rotina mais leve e retomar o que me faz bem", concluiu, reafirmando seu compromisso com o próprio recomeço. (Carolina Passos)
A vida tem a dança que a gente faz
A história da bailarina e psicóloga Bárbara Valões de Oliveira mudou no dia 20 de março de 2004. Uma queda de 2,5 metros em uma casa de praia resultou em uma fratura e deslocamento das vértebras T4-T6.
O impacto gerou um dano medular completo, o que significa a interrupção total da comunicação nervosa na medula abaixo do nível da lesão. Bárbara tornou-se paraplégica, perdendo movimentos e sensibilidade dos membros inferiores de forma permanente.
"A dor foi profunda. Eu tinha 22 anos, estava na faculdade de Psicologia, concursada, totalmente independente e me desesperei sem saber como seria a minha vida. De repente, tornei-me totalmente dependente, precisava de auxílio para pentear o cabelo, tomar banho, escovar os dentes, transferir-me de um local para outro. Todas as atividades que realizava automaticamente passaram a ser feitas com a ajuda de terceiros", relembrou Bárbara, hoje com 44 anos.
O impacto da lesão afetou diretamente sua autoestima e a forma como se relacionava com o mundo. Sempre acostumada a uma rotina intensa de estudos, trabalho e vida social, ela precisou lidar com mudanças físicas e emocionais profundas, aprendendo a realizar tarefas cotidianas de maneira diferente e a reconstruir a própria autonomia.
A reabilitação no Hospital Sarah Kubitschek, localizado no Passaré, foi o divisor de águas no qual ela iniciou o luto pelas perdas e a reconstrução de sua autonomia. Anos depois, Bárbara decidiu retomar a graduação em Psicologia na Universidade Federal do Ceará (UFC), enfrentando novos desafios.
"A minha maior dificuldade no começo foi quando retornei aos bancos da universidade: a falta de acessibilidade na faculdade de Psicologia da UFC. A estrutura era bem antiga e completamente inacessível e tanto os professores quanto os alunos não sabiam o que fazer, como ajudar-me. Às vezes, chegava e todos tinham subido para assistir aula na sala superior, com acesso por escadas", contou.
Apesar do sentimento inicial de exclusão, ela compreendeu que o processo de adaptação era coletivo. "Sentia-me excluída inicialmente, mas logo entendi que não era novo apenas para mim, mas para todos", afirma.
A partir dessas dificuldades, Bárbara passou a lutar por mudanças estruturais na instituição, o que resultou na criação de vagas para pessoas com deficiência, banheiros com portas mais largas, rampas de acesso e oficinas de acessibilidade. "Hoje está bem diferente a estrutura, mas tudo começou lá atrás", destaca.
Em 2005, o encontro com a Associação Elos da Vida devolveu a Bárbara o palco. Ela integrou a cadeira de rodas como uma extensão de seu corpo artístico, ressignificando a técnica do balé e do forró para a nova realidade.
"Quando entrei para a associação e vi pessoas com vários tipos de deficiência dançando, percebi que eu também poderia. Sinto-me livre nesse momento; a cadeira de rodas passou a ser apenas um acessório utilizado para facilitar os meus movimentos. Não estava em pé, mas o bem-estar que eu sentia era o mesmo. Dançar com os corpos que temos, no nosso ritmo, deixando a nossa imaginação criar asas", explica a bailarina.
Ao longo dessa trajetória artística, Bárbara participou de espetáculos como "Mudança e Dançando a Roda da Vida", apresentados no Teatro Marista, além de "Somos Todos Um" e "Inspiração", encenados no Teatro RioMar Fortaleza.
Hoje, Bárbara utiliza a experiência pessoal para enriquecer a prática como psicóloga e a expressão artística. Para ela, estar no palco é o momento de máxima integração.
"Quando eu danço, sinto-me 'inteira', não percebo a minha limitação física. Hoje, minha expressão facial, meu olhar, o movimento dos meus braços e a intensidade com que toco a cadeira de rodas falam por si. Consigo transmitir a minha emoção através do movimento corporal. Aprendi que liberdade é uma questão de ponto de vista e passei a vibrar com cada conquista de autonomia", destacou.
Três caminhos, um mesmo recomeço
Ao cruzarmos as histórias de Paulo, Rebeca e Bárbara neste 31 de dezembro, percebemos que, embora as condições médicas sejam distintas - a degeneração sensorial de Paulo, a desordem neurológica de Rebeca e a ruptura física de Bárbara - as trajetórias se assemelham em um ponto central: a recusa ao silêncio do corpo.
Para os três, o recomeço não foi uma escolha poética de fim de ano, mas um trabalho diário de ressignificação através da arte e do movimento. Enquanto o mundo faz planos para o novo ano baseados em mudanças externas, Paulo, Rebeca e Bárbara iniciam o novo ciclo focados na continuidade de suas descobertas internas.
Paulo busca iluminar mais caminhos com sua literatura; Rebeca foca em retomar o autocuidado, o contato com o mar, dança e sua leitura; e Bárbara segue provando que a vida tem a dança que a gente faz. No balanço final do ano, essas histórias nos ensinam que recomeçar não é apagar o passado ou as limitações, mas construir uma nova casa sobre as fundações que restaram.
Para 2026, a expectativa que fica não é a da cura mágica, mas a da presença plena: a coragem de ocupar o mundo com o corpo que se tem, transformando a dor em coreografia, o diagnóstico em poesia e a vida em uma eterna possibilidade de movimento.