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Percursos refeitos: a saga dos judeus sefarditas
Reportagem Especial

Percursos refeitos: a saga dos judeus sefarditas

O mais recente livro do escritor Lira Neto reconstitui a história dos judeus sefarditas, perseguidos pela Inquisição, e suas relações com o Brasil. Em entrevista ao O POVO, o autor cearense conta sobre a imersão etnográfica e histórica que fez e reflete sobre o atual conjuntura política brasileira

Percursos refeitos: a saga dos judeus sefarditas

O mais recente livro do escritor Lira Neto reconstitui a história dos judeus sefarditas, perseguidos pela Inquisição, e suas relações com o Brasil. Em entrevista ao O POVO, o autor cearense conta sobre a imersão etnográfica e histórica que fez e reflete sobre o atual conjuntura política brasileira
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Uma narrativa feita de intrigas, traições, delações, guerras e esperanças. Ao mesmo tempo, uma imersão etnográfica pelos vestígios históricos da comunidade judaica pelo mundo.

Resultado de uma pesquisa de quase uma década, o escritor cearense Lira Neto lançará, em breve, um novo livro, ainda sem título, que busca lançar luz sobre a história dos judeus sefarditas - ou seja, dos descendentes de judeus originários de Portugal e Espanha.

Perseguidos pela Inquisição na Península Ibérica, eles refugiaram-se em Amsterdã e, de lá, vieram para o Brasil durante a ocupação holandesa, no século XVII. O autor, que há dois anos vive em Portugal, tenta reconstruir a trajetória coletiva do povo judeu e, ao mesmo tempo, atualiza o debate sobre a situação dos refugiados no mundo.

Em conversa com O POVO, Lira Neto explica sobre os caminhos que o levaram a essa pesquisa (que se conecta com suas próprias origens familiares) e reflete sobre o cenário político do Brasil.

O POVO - Você escreveu em suas redes sociais que esta pesquisa recente se estende há quase uma década. Como isso tudo começou? Como se deu esse contato com a história dos judeus sefarditas e o interesse por conhecê-la?

Lira Neto - O tema, de fato, persegue-me há algum tempo. Há uns 15 anos, alimentei o projeto de biografar Maurício de Nassau. Porém, outras pesquisas e outros livros acabaram por me desviar do propósito original. Deixei aquela ideia de lado. Segui em frente, mas, logo depois, quando tive a curiosidade de investigar minhas origens familiares, descobri antepassados de sangue sefardita. Por mero diletantismo, comecei a juntar algum material a respeito. A partir daquele momento, percebi que era possível juntar as várias pontas do mesmo novelo. O desejo transformou-se em algo mais concreto durante uma viagem a Nova York, quando deparei-me com o cemitério mais antigo da cidade, no qual as lápides exibem uma série de nomes e sobrenomes de judeus ibéricos. Comecei então a reunir bibliografia e documentos. Quando percebi, estava completamente envolvido no assunto.

Placa de identificação do cemitério mais antigo de Nova York
Foto: Arquivo Pessoal
Placa de identificação do cemitério mais antigo de Nova York

O POVO - Nesse período que você passou a viver na Europa, como essa pesquisa foi ganhando forma? Como buscou reconstruir esse recorte específico da história, sobre os judeus sefarditas?

Lira Neto - Sim, a vinda para a Europa está diretamente relacionada ao projeto. A proximidade em relação aos cenários da primeira parte do livro – que se passa em Portugal e nos Países Baixos – permitiu-me um processo de imersão ainda maior no universo temático da investigação. Comecei a mergulhar em arquivos europeus em busca de fontes primárias. O fundo documental sobre a Inquisição, na Torre do Tombo, em Lisboa, e o acervo da comunidade sefardita no Stadsarchief, o arquivo municipal de Amsterdã, foram fundamentais para aprofundar algumas questões e ajudar a conferir colorido à narrativa.

O POVO - De que forma você tem procurado, com o livro, apresentar esse volume de dados historiográficos em formas de narrativas de vida, explorando o aspecto humano dessa história? Como buscou se “transportar” para esse tempo e descobrir esses rostos, histórias de vida, conflitos, etc?

Lira Neto - Como sempre, procuro fazer um jogo de escalas entre a grande e a pequena história, lançando mão do recurso que o teórico russo Mikhail Bakhtin chamava de “heteroglossia”, ou seja, descobrir, confrontar e contemplar as “vozes variadas e opostas” em torno de um mesmo episódio. Interessa-me, também, provocar no leitor aquilo que Roland Barthes definia como “efeito do real”, isto é, recriar atmosferas, reconstruir cenários, suscitar a possibilidade de uma recepção sinestésica da obra. Daí meu empenho em pesquisar cores, cheiros, sons, texturas e sabores da época. Daí minha obsessão pela história do cotidiano, da vida privada, de minha busca por personagens arquetípicos, que ajudem a interrogar as mentalidades dos indivíduos de um determinado período histórico. Georges Duby, em O domingo de Bouvines, fala-nos da obsessão que teve em querer ouvir, nos vestígios históricos, as vozes de homens mortos, para produzir uma história viva, não um relatório seco e enfadonho. Ele propõe, nesse aspecto, uma espécie de imersão etnográfica no passado. Gosto disso. É o que tento fazer.

O POVO – Morando em Portugal, como essa proximidade ampliou seu olhar sobre essa história e as marcas que ela deixou no país, como em Belmonte (vila portuguesa) por exemplo? Você procurou, de algum modo, refazer esses caminhos?

Lira Neto - Portugal e Espanha procuram cultivar e perpetuar a história dos judeus sefarditas, dada a sua importância para a formação do caldo multiétnico que deu origem ao povo ibérico. Andei pelas antigas judiarias, visitei caminhos, perambulei a esmo por vielas e becos recheados de histórias. Li a literatura da época, procurei conhecer os cronistas do período. Uma amiga historiadora, colega no doutorado em História na Universidade do Porto, exímia em paleografia, ajudou-me a decifrar garranchos em documentos do início da Idade Moderna. Tenho conversado com especialistas, trocado ideias, mantido interlocução permanente com estudiosos do tema.

O livro será dedicado exatamente a todos os refugiados, exilados e desterrados do mundo, do passado e do presente. A questão das migrações é, sim, tema atualíssimo, na medida que nos ajuda a desnudar a raiz histórica das intolerâncias, dos preconceitos e dos racismos. Hoje, mais do que nunca, este debate torna-se urgente, inadiável, imprescindível

O POVO - O Brasil tem uma das maiores comunidade judaicas da América Latina. Como você encara a importância dessa pesquisa para compor esse debate, que é tão atual, sobre os refugiados, partindo de um recorte específico sobre os judeus e seu “caminho errante” na história?

Lira Neto - Boa parte da população brasileira, sobretudo a nordestina, tem vínculos ancestrais diretos com os cristãos-novos perseguidos pela Inquisição. O livro será dedicado exatamente a todos os refugiados, exilados e desterrados do mundo, do passado e do presente. A questão das migrações é, sim, tema atualíssimo, na medida que nos ajuda a desnudar a raiz histórica das intolerâncias, dos preconceitos e dos racismos. Hoje, mais do que nunca, este debate torna-se urgente, inadiável, imprescindível.

O POVO - Há algum tempo tem aumentado a procura de brasileiros para comprovar sua ascendência sefardita, e muitos judeus estão retornando a Portugal muitas gerações depois. Como você observa esse movimento de retorno? Reconhece como uma forma de “reparação histórica”?

Lira Neto - Há uma grande discussão em Portugal quanto a isso. É algo absolutamente saudável, especialmente porque abre canais para se debater a necessidade de outras reparações históricas, como aquela devida aos negros vítimas do tráfico escravista e aos indígenas alvo de genocídios sistemáticos. É um tema contundente, que felizmente tem mobilizado a comunidade acadêmica e os meios de comunicação de massa.

Voltarei ao samba quando for possível retornar ao Brasil. Mas, enquanto prevalecerem a barbárie e a necropolítica atuais, enquanto permanecerem os ataques do desgoverno federal à cultura, às artes, às ciências e ao conhecimento – agora agravados pela gestão irresponsável e assassina da pandemia – não tenho intenções de pegar um voo de volta

 

O POVO - Você escreveu que precisou adiar o segundo volume de “Uma história do samba” por estar longe do Brasil e de suas fontes. É um texto bem aguardado pelos seus leitores. Como estava o andamento a pesquisa para o samba? Já tem uma perspectiva de quando será publicado este segundo volume que ficou pra depois?

Lira Neto - Voltarei ao samba quando for possível retornar ao Brasil. Mas, enquanto prevalecerem a barbárie e a necropolítica atuais, enquanto permanecerem os ataques do desgoverno federal à cultura, às artes, às ciências e ao conhecimento – agora agravados pela gestão irresponsável e assassina da pandemia – não tenho intenções de pegar um voo de volta. Na verdade, a tirar pela destruição galopante da saúde, da educação, da cultura e dos direitos sociais, nem sei se ainda haverá um Brasil para onde se possa retornar um dia.

Lira Neto  no cemitério mais antigo de Nova York, onde estão os túmulos dos primeiros judeus ibéricos que chegaram à cidade, via Recife e Amsterdã, no século XVII
Foto: Arquivo Pessoal
Lira Neto no cemitério mais antigo de Nova York, onde estão os túmulos dos primeiros judeus ibéricos que chegaram à cidade, via Recife e Amsterdã, no século XVII

Três por quatro

João de Lira Cavalcante Neto, 56, formou-se em Jornalismo pela Universidade Federal do Ceará e estudou Comunicação e Semiótica na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Atualmente vive em Portugal e estuda para o Doutorado na Universidade do Porto. Venceu quatro vezes o Prêmio Jabuti de Literatura (2007, 2010, 2013 e 2014) e uma vez o Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte - APCA (2014), sempre na categoria Biografia. Foi repórter especial, editor de cultura e ombudsman do O POVO.

Outras obras do autor

Uma história do samba (2017)

Crônicas da Aldeia - 2014)

História Urbana e Imobiliária de Fortaleza - 2014

Getúlio (1945-1954) - 2014

Getúlio (1930 - 1945) - 2013

Getúlio (1882 - 1930) - 2012

Padre Cícero: Poder, Fé e Guerra no Sertão - 2009)

Maysa: Só numa multidão de amores - 2007

O Inimigo do Rei: Uma biografia de José de Alencar - 2006

Castello: A marcha para a ditadura - 2004

A herança de Sísifo: Da arte de carregar pedras como ombudsman na imprensa - 2000

O poder e a peste: A vida de Rodolfo Teófilo - 1999

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