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Jacinda Ardern: a política que venceu a Covid-19
Reportagem Especial

Jacinda Ardern: a política que venceu a Covid-19

Atuação da primeira-ministra neozelandesa aponta para a importância de aliar serenidade e firmeza em momentos de crise. Ardern mostra ao mundo o que a política tem a ganhar quando mulheres figuram em posição de liderança

Jacinda Ardern: a política que venceu a Covid-19

Atuação da primeira-ministra neozelandesa aponta para a importância de aliar serenidade e firmeza em momentos de crise. Ardern mostra ao mundo o que a política tem a ganhar quando mulheres figuram em posição de liderança
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Doze mil e duzentos quilômetros. Foi a resposta que dei a uma colega que me perguntara o que a separava de uma vida na Nova Zelândia. O questionamento surgiu após a pequena ilha no Pacífico Sul, com cerca de cinco milhões de habitantes, anunciar ter erradicado o coronavírus de seu território e tornar-se o primeiro país a retornar à “normalidade”, ou o mais perto possível disso. Nesta sexta-feira, 12, o país completa 21 dias consecutivos sem registrar novos casos.

A quilometragem supracitada representa a distância (física) que separa o Brasil da nova febre que toma conta, principalmente, das redes sociais. O desejo utópico de um local perfeito para se viver, antes alocado em países nórdicos como Finlândia e Suécia, viu na liderança jovem, serena e com agenda progressista de Jacinda Ardern, 39, seu mais novo sonho de consumo.

Ardern conduziu a atual crise sanitária com precisão, técnica, firmeza e transparência. Em 23 de março, a premiê deu prazo de 48 horas para a população se preparar para um bloqueio total, excluindo apenas serviços essenciais.

Apesar das medidas rígidas, os resultados são pouco danosos. A Nova Zelândia chegou ao fim da crise registrando 1.132 casos e 22 mortes. Apesar de lamentar as vidas perdidas, Ardern fez o anúncio que repercutiu pelo mundo demonstrando satisfação e revelando que dançou na sala de casa para celebrar a conquista.

Com o lema “bata firme e bata rápido”, Jacinda Ardern foi extremamente elogiada mundialmente. A nível local, sua atuação rendeu aumento superior a 20 pontos em popularidade (59,8%) e na do Partido Trabalhista (56,5%), o qual representa.

Estes são níveis inéditos no país segundo pesquisa da empresa Newshub-Reid. Sobre a forma como conduziu a crise, Ardern chegou a obter um pico de aprovação de 88%.

Isolamento rígido de sete semanas, com estabelecimento de níveis variando de 1 a 4, corte de 20% no próprio salário e no de executivos públicos e ministros e mais recentemente a proposta de uma semana trabalhista de quatro dias para reativar a economia foram algumas das propostas mais bem avaliadas da premiê, que se negou a cair na armadilha do excesso na pandemia.

Não se excedeu em otimismo, nem em pessimismo, mas trabalhou com o que a realidade a ofereceu. Fator muito sentido pela população neozelandesa.

A proximidade com o público é um fator crucial na estratégia de Jacinda, que não hesitou ao usar redes sociais em transmissões ao vivo enquanto estava em casa, com roupas leves, para ouvir preocupações das mais de 1,2 milhão de pessoas que a acompanham no Instagram, por exemplo.

Vale ressaltar que a vitória parcial sobre o coronavírus é a crista de uma onda surfada com maestria por uma liderança que vem sendo esculpida desde os 17 anos de idade.

Formação

Segunda de duas filhas criadas em uma família mórmon, Jacinda Kate Laurell Ardern nasceu em 26 de julho de 1980, na cidade de Hamilton, mas não cresceu ali. Sua mãe era funcionária de um refeitório escolar e seu pai, policial de carreira.

A família mudou-se para Morrinsville, cidade no sudeste de Auckland com cerca de 7 mil habitantes, onde Ardern frequentou as escolas primária e secundária. Em 1999, ela ingressou na Universidade de Waikato, onde formou-se em Estudos de Comunicação em Relações Públicas e Ciência Política.

Após a formatura, em 2001, tornou-se pesquisadora do deputado trabalhista, Phil Goff. Cargo que mais tarde a levaria a conquistar uma vaga na equipe da então primeira-ministra Helen Clark, segunda mulher a ocupar o cargo e sua mentora política. Com experiências no exterior, em 2005 Ardern conseguiu um trabalho como consultora na gestão do primeiro-ministro britânico Tony Blair.

Dois anos depois, foi eleita presidente da União Internacional da Juventude Socialista, maior organização política internacional de jovens e visitou diversas localidades na África, Ásia e Oriente Médio. Lá acumulou experiência para o que estava por vir um ano mais tarde.

Primeira ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern, no parlamento
Foto: REPRODUÇÃO INSTAGRAM
Primeira ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern, no parlamento

Trajetória

Lugar-comum. No dicionário, refere-se a pensamento ou discurso sem criatividade. Aquilo que se acentua de forma banal ou está repleto de repetições. Clichê. Na atual gestão política neozelandesa é um termo que certamente não faz parte da carreira de Ardern. Para entender o presente com mais propriedade é essencial destrinchar um pouco do passado de Jacinda.

Vale ressaltar que a relação de Jacinda com o Partido Trabalhista começou ainda aos 17 anos quando, por influência de uma tia, auxiliou na campanha de um deputado local. Em termos de disputa, ela candidatou-se pela primeira vez em 2008 para vaga como deputada por Waikato, mas perdeu por cerca de 13 mil votos.

No entanto, graças ao sistema eleitoral neozelandês conquistou um assento como deputada de lista, por meio de vagas que são garantidas proporcionalmente de acordo com votos recebidos por cada partido.
À época com 28 anos, Jacinda era a parlamentar mais jovem na Casa. O que, como sabemos hoje, não representa problema algum para ela.

Em seu primeiro discurso, proferiu duras críticas ao governo que, segundo ela, desenvolvia postura “vergonhosa” frente às questões de mudanças climáticas e defendeu a instrução obrigatória do idioma maori (povo nativo local) nas escolas do país.

Acumulando funções e conhecimento político, em 2017 foi eleita por unanimidade como vice-líder do Partido Trabalhista. Em ano eleitoral, o então líder da sigla, Andrew Little, viu o partido caindo em pesquisas de intenção de voto e desistiu da campanha. O que catapultou Jacinda ao protagonismo da legenda em agosto e, meses depois, a vencer a eleição geral; selando quase uma década de governos conservadores. Aos 37 anos, ela tornou-se a terceira mulher a ocupar o cargo de primeira-ministra do país e a liderança neozelandesa mais jovem em 150 anos.

Raio-X Nova Zelândia
Foto: Mapa
Raio-X Nova Zelândia

Jacindamania

Com a ascensão de Jacinda, a mídia aproveitava cada oportunidade para abusar do neologismo. “Jacinderella” e “Jacindaforia”, foram alguns dos termos utilizados para descrever o “Efeito Jacinda” (outro termo visto em jornais). No entanto, nenhum termo teve tanta força como “Jacindamania”.

Na realidade, Jacindamania trata-se de um movimento que surgiu ainda na campanha eleitoral de 2017, puxado principalmente por grupos mais jovens e com visão progressista que simpatizaram com a postura de Ardern a favor de pautas como casamento homoafetivo e aborto.

Esse movimento fez a porcentagem de votos do partido trabalhista bater na casa dos 37%, o que possibilitou formular um governo apoiado por outras duas legendas. O Green Party (mais à esquerda) e o NZ First (populista e anti-imigração) e desbancar o então governista Partido Nacional (conservador).

A imagem de mulher moderna e independente também cativou outras porções da sociedade e trouxe a imprensa para o jogo, muitas vezes em seu favor. Afinal de contas, quem não quer saber mais sobre uma então candidata que no tempo livre gosta de ser “DJ”?. Embora aparente abraçar o rótulo de "celebridade", a premiê nunca deixou que isso afetasse sua postura de seriedade e compromisso com seus deveres.

Fugindo ao Lugar-comum

Nos últimos meses, Jacinda demonstrou o que temos a ganhar quando serenidade e firmeza caminham juntas, principalmente em momentos de crise. Num ambiente majoritariamente masculino, mostrou o que a política tem a ganhar não apenas quando abre as portas para mulheres, mas quando as estimula a ocupar posição de liderança.

A representatividade feminina aliada à construção imagética de uma mulher segura e preparada para exercer sua função fizeram Ardern protagonizar momentos “raros” e mostrar, ainda que de relance, como poderia ser feita a política se tais lideranças fossem mais comuns.

Primeira ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern, grávida em atividade partidária
Foto: REPRODUÇÃO INSTAGRAM
Primeira ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern, grávida em atividade partidária

1. Gravidez durante o mandato (2018)

Jacinda teve sua filha, Neve, no início do primeiro ano de mandato. Um desafio dobrado, mas vencido por ela. Tirou apenas seis semanas de licença-maternidade e retornou a exercer suas funções. Seu companheiro, o apresentador de TV Clarke Gayford, ficou em casa cuidando da filha e declarou que na época levava a criança ao encontro da mãe para ser amamentada.

Ao revelar a gravidez, Ardern disse em comunicado que a havia descoberto apenas uma semana antes de conseguir o apoio no Parlamento para formar um novo governo.

2. Companheiro e filha de três meses na reunião da ONU (2018)

Jacinda foi à cúpula na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas ao lado do Companheiro e da filha de 3 meses. Durante a reunião ela brincava com a menina enquanto esperava sua vez de discursar.
Quando precisou sair, o companheiro ficou cuidando da filha. Na história, apenas duas mulheres tornaram-se mães enquanto exerciam mandato de chefe de governo; Jacinda e Benazir Bhutto, ex-primeira-ministra do Paquistão.

3. Ataque terrorista em mesquitas (2019)

Em março de 2019, um atirador australiano matou 50 pessoas, em duas mesquitas, na cidade de Christchurch. O momento foi transmitido ao vivo por câmeras no corpo do terrorista. O que evidenciava o que ele mais queria: visibilidade para os ideais racistas.

Entretanto, Jacinda garantiu que o desejo do terrorista não fosse atendido. No primeiro encontro do Parlamento após o ocorrido, ela abriu a sessão com a saudação de paz em árabe “as-salamu alaikum” (que a paz esteja convosco) e discursou sinalizando que quando falasse do extremista, não o nomearia.

Primeira ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern, ao visitar a comunidade muçulmana da cidade onde o massacre ocorreu, usando um hijab (véu), em respeito à cultura muçulmana
Foto: REPRODUÇÃO INSTAGRAM
Primeira ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern, ao visitar a comunidade muçulmana da cidade onde o massacre ocorreu, usando um hijab (véu), em respeito à cultura muçulmana

Também implorou à população: “Falem dos nomes dos que perderam a vida em vez do homem que as levou. Ele pode ter procurado notoriedade mas na Nova Zelândia não lhe vamos dar nada”.

Ao visitar a comunidade muçulmana da cidade onde o crime ocorreu, Jacinda usou um hijab (véu), em respeito à cultura muçulmana e passando a clara mensagem de que estava ao lado das vítimas e de seus familiares, a quem fez questão de referir-se como sendo parte do país. “Eles são nós”, disse repetidas vezes em entrevistas.

Para além do simbolismo das ações, Jacinda também agiu na prática ao anunciar o endurecimento de leis armamentistas, aprovada rapidamente. Hoje, a Nova Zelândia proíbe a venda e a posse de armas semiautomáticas de estilo militar e armas de assalto.

Aos cidadãos que já haviam adquirido legalmente equipamentos do tipo, o governo anunciou que recompraria as armas, numa medida com impacto superior a 100 milhões de euros.

4. Terremoto durante transmissão ao vivo (2020)

Durante uma entrevista ao vivo em uma emissora local, Jacinda falava por videoconferência quando um sismo de magnitude 5,8 na escala Richter ocorreu. Sabendo que estava ao vivo para a nação, manteve-se tranquila e sorridente ao informar ao entrevistador: “Temos um terremoto aqui, Ryan. A intensidade é bastante razoável”.

Rapidamente o tremor cessou e o apresentador perguntou se ela sentia-se em condições para continuar a entrevista. “Estamos bem, Ryan. Estou um local com uma estrutura segura”, respondeu e seguiu a entrevista.

5. Abandonou a igreja por não concordar com posição sobre LGBTs

No início deste texto, citei que Jacinda era de família mórmon, pois bem, ela rompeu com a religião por discordância sobre questões envolvendo minorias. Durante entrevista ao jornal local "New Zealand Herald", Jacinda afirmou que deixou de frequentar a igreja porque não concordava com o posicionamento da congregação, contrária à união homoafetiva.

Apesar do rompimento e de atualmente não ter um religião declarada, defende o direito de que as pessoas devem ser livres para ter suas crenças sem perseguição.

Apesar de tudo, política

Embora tenha uma imagem majoritariamente boa perante a mídia, Ardern, como toda a classe política, não está imune a críticas. Dentre elas, algumas das mais contundentes estão relacionadas a postura da agência de serviços sociais de sua gestão, que segundo denúncias estaria maltratando crianças “maori”, povo nativo da Nova Zelândia.

Segundo matéria do início deste ano, publicada pelo jornal The Guardian, a agência de serviço tutelar cometeu “violações sem precedentes de direitos humanos” contra crianças dessa comunidade.

Um inquérito realizado pelos maori apontou que funcionários do governo teriam realizado inúmeras tentativas de tirar um bebê de sua mãe pouco depois do nascimento. Mais de mil famílias foram entrevistadas e segundo o inquérito o caso não é isolado.

Naida Glavish, liderança maori a frente da investigação classifica o ato como um “recorte racial” e diz que a comunidade teme ter os filhos tomados por agentes do governo.

Em resposta às acusações, o Ministério das Crianças disse que casos de crianças Maori são desafiadores e complexos e que os críticos não levam em conta o bem estar dos menores. Jacinda não comentou o caso.

Primeira ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern
Foto: REPRODUÇÃO INSTAGRAM
Primeira ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern

Outra questão negativa que Jacinda teve que enfrentar no início do governo foi uma onda de comentários sexistas sobre sua aparência e habilidade de governar o país enquanto mãe de uma recém-nascida, inclusive dentro do próprio partido no qual atua.

Atualmente, a cena política da Nova Zelândia é afetada por escândalos de doações de caráter duvidoso envolvendo o vice-primeiro-ministro, Winston Peters, o que gerou cobrança a Ardern para retirá-lo dos quadros ministeriais.

Entretanto, Jacinda disse que não o faria até que seja comprovado alguma ilegalidade. A Nova Zelândia tem nova eleição geral prevista para setembro deste ano e a mídia local, juntamente com opositores, cobra o governo, aproveitando o cenário para questionar uma eventual reeleição de Jacinda.

Outra tensão pré-pandemia que repercutiu foi uma cobrança de Ardern feita em fevereiro deste ano ao primeiro-ministro australiano, Scott Morrison, sobre deportação de criminosos nascidos na Nova Zelândia.

Ardern disse que a Austrália deporta criminosos nascidos em solo neozelandês, mas que passaram a maior parte da vida na Austrália, puramente para se livrar do problema. "Não deporte seu pessoal e seus problemas", disse ao colega durante reunião anual em Sydney.

Com mais altos do que baixos em seus pouco mais de 10 anos de vida política, o fato é que Jacinda acumula à sua trajetória um alto nível de desempenho governamental.

* Vídeo gravado na segunda quinzena de abril. Declaração de Ana Buri, 25, cearense nascida em Horizonte, que vive na Nova Zelândia há 4 anos, sobre o período de quarentena no país e desempenho da primeira-ministra que afirma ter erradicado a Covid-19 em seu território.

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