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Ocupação das escolas estaduais em 2016: o que mudou de lá pra cá
Reportagem Especial

Ocupação das escolas estaduais em 2016: o que mudou de lá pra cá

Um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) resultou em investimentos nas escolas, de acordo com a Secretaria da Educação do Estado. Alunos chegaram a ser investigados por possíveis danos aos equipamentos públicos, mas o procedimento foi arquivado por falta de elementos

Ocupação das escolas estaduais em 2016: o que mudou de lá pra cá

Um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) resultou em investimentos nas escolas, de acordo com a Secretaria da Educação do Estado. Alunos chegaram a ser investigados por possíveis danos aos equipamentos públicos, mas o procedimento foi arquivado por falta de elementos
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No dia 25 de abril de 2016 tinha início a greve de professores da rede estadual do Ceará. Ao todo, foram 107 dias reivindicando o reajuste salarial de 12,57%. Somado ao tempo de duração, outro fator fez com que o movimento se tornasse algo grande: as ocupações em escolas estaduais. Inflamados pela greve dos professores, alunos ocuparam escolas pedindo, inicialmente, melhorias na infraestrutura e alimentação, tornando-se protagonistas na luta por educação pública de qualidade.

Os movimentos, que já aconteciam nos demais estados do Brasil, inspiraram as ocupações nas escolas do Ceará. Com a primeira escola cearense ocupada em 28 de abril, logo outras aderiram ao movimento, na Capital e no Interior. O Centro de Atenção Integrada à Criança e ao Adolescente (Caic) foi a primeira, no Bom Jardim.

Matheus Lopes, 21, estudante de Letras da Universidade Federal do Ceará (UFC), fez parte do movimento em 2016, quando estava no terceiro ano na Escola de Ensino Médio Governador Adauto Bezerra. De acordo com o jovem, tudo foi decidido democraticamente. “Nós decidimos em assembleia estudantil que iríamos nos organizar dentro de cada instituição para deflagrar nossa greve estudantil, juntamente, com o processo de ocupação”, afirma.

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Segundo o estudante, a princípio, foram unificadas as reivindicações dos professores com as dos alunos. “A principal [pauta] era melhoria na estrutura dos prédios das escolas, pois a condição em algumas realmente era preocupante, inclusive houve a queda de parte de um muro da quadra de uma das escolas durante a ocupação”, conta. Ele ainda lembra da falta de pincel para o quadro branco e merenda para os alunos. 

Durante o processo de ocupação houve intervenções policiais. “Em muitas escolas, era uma relação extremamente violenta, como viaturas circulando a escola”, relembra. Dentre as dificuldades, ele também cita a falta de recursos, como a alimentação, para se manterem dentro dos equipamentos. “Acho que eu perdi uns cinco quilos. No AB [Adauto Bezerra] nós tínhamos que cozinhar para 60 pessoas, porque, além dos ocupantes, nós também alimentávamos quem frequentava a programação da ocupação”.

 Ocupação do Adauto Bezerra foi decidida em assembleia estudantil(Foto: Reprodução/Facebook Ocupa Adauto)
Foto: Reprodução/Facebook Ocupa Adauto Ocupação do Adauto Bezerra foi decidida em assembleia estudantil

Além de ocupar, os alunos se preocupavam em criar uma programação para estudantes, comunidade e pais. Eram realizados eventos como palestras, saraus e luaus, fazendo com que os estudantes ganhassem o apoio da população. Só na página do “Ocupa Adauto” eram mais de 3 mil curtidas.

Ao fim da greve dos professores, em julho, as ocupações também foram sendo encerradas. Entretanto, no Adauto Bezerra, o movimento continuou, o que causou uma série de complicações e inflou uma organização chamada “Desocupa AB”. Antes heróis, o movimento de ocupação passou a ser visto como vilão por parte dos alunos, que pediam que a ocupação fosse encerrada para retornarem aos estudos. Mesmo com resistência, a ocupação na escola foi encerrada.

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“Nossa escolha foi continuar até conseguirmos ao menos ser ouvidos [pelo Governo]”, lembra Matheus Lopes, 21, hoje estudante de Letras da Universidade Federal do Ceará (UFC). “Foi inviável que algumas escolas permanecessem ocupadas, isso já demonstra o quanto o sistema educacional é desigual. Foi bem difícil, passamos dias sem doações, sem apoio, porém até o dia de sermos ouvidos estivemos resistentes”, complementa.

Termo de Ajuste de Conduta

Ao fim da ocupação, o Governo assinou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), firmando um acordo com pontos trazidos pelos estudantes. Entre eles, a necessidade de reforma em escolas e uma contribuição a mais na merenda escolar, além da criação de uma lei de participação de crianças e adolescentes na gestão democrática das escolas estaduais e a garantia de equipamentos nos laboratórios de informática.

Confira o documento completo:

Antes disso, em maio de 2016, o Governo anunciou o repasse imediato de R$ 32 milhões para serem aplicados na reforma das escolas estaduais e R$ 17,5 milhões para compra de novos computadores. Além disto, foram liberados R$ 6,4 milhões para complementar a merenda escolar e R$ 21,43 milhões para compra de notebooks prometidos para estudantes que atingiram nota mínima no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e Sistema Permanente de Avaliação da Educação Básica do Ceará (Spaece) dos anos de 2013 e 2014.

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De acordo com Anna Karina Cavalcante, professora de História da rede estadual, o TAC feito entre Seduc e estudantes caiu no esquecimento. “Hoje as escolas continuam com salas superlotadas, algumas escolas com problemas bastante sérios, sem lanche de qualidade, sem laboratórios, sem biblioteca”, afirma.

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Apesar dos problemas, ela afirma que houve redução dos projetos apresentados na portaria de lotação, que moveu o início do movimento. “Foi uma vitória política para professores e estudantes, por ter evitado mais cortes. Porém, foi mais uma experiência de luta de classes entre quem defende a educação pública e quem a quer reduzida a mero depósito de jovens”, pontua.

Pós-ocupação

Após a ocupação, alunos ocupantes chegaram a ser investigados. O estudante Matheus classifica o ato como abusivo, afirmando que houve represálias e que alguns foram até mesmo buscados em casa por viaturas. Ele conta que graças às entidades de proteção ao adolescente que auxiliaram judicialmente, o processo não teve continuidade. “Já que era ilegal, o processo foi interrompido”, pontua.

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A professora Anna Karina recorda que uma relação de alunos foi entregue para a Polícia indiciar jovens que de alguma forma participaram da luta. "Muitos foram chamados com seus responsáveis, o que veio enfraquecer o sentimento de vitória, pois passou a ser encarado como caso de Polícia", conta.

Ela lembra que os estudantes foram acusados de depredação ao patrimônio e foram questionados se alguém era "organizado", se recebia influência de organizações políticas ou até mesmo se algum dos estudantes eram feministas. "O que demonstra o caráter de perseguir e condenar alunos por ideologia contrária à 'ordem vigente'. Perseguição ideológica clara", aponta.

Cerca de 320 estudantes foram citados em aproximadamente 30 procedimentos policiais, segundo o Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (Cedeca). Instaurados pela Delegacia da Criança e do Adolescente (DCA), eram referentes à investigação de supostos danos ocorridos durante as ocupações.

O Cedeca e sua equipe jurídica acompanharam os depoimentos de estudantes de uma das escolas, o que levou a observarem caráter criminalizante aos movimentos sociais. Era frequente a pergunta sobre uma liderança do movimento ou se existiria organizações políticas participando.

De acordo com Marina Araújo, coordenadora do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (Cedeca), ao prestar assistência jurídica aos jovens, o Cedeca cumpriu a missão institucional de promover os direitos de criança e adolescentes. 

Marina considera que as ocupações foram um grande exercício do direito à participação de adolescentes para garantir o direito à educação, compreendendo o adolescente como sujeito ativo no processo de construção da educação

“Em diálogo com esses sujeitos e sujeitas, [o Cedeca] tentou apoiar essa experiência, prestando assistência jurídica aos estudantes e na luta ao direito à educação de qualidade”, conclui.

Questionado pelo O POVO sobre a alegação de alunos que teriam sido interrogados a respeito de ideologias, o Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE) informou, sem mais detalhes, que o procedimento para responsabilização criminal dos estudantes envolvidos na ocupação de escolas em 2016 foi arquivado por falta de elementos para responsabilização individual de cada jovem pelos supostos atos infracionais.

O POVO entrou em contato com a Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS), que indicou o envio do caso ao Poder Judiciário e que, desde 2016, “não tem mais nada com a Polícia Civil”.

O que foi feito entre 2016 e 2020

O POVO entrou em contato com a Seduc questionando sobre o cumprimento do TAC assinado em 2016. A pasta garante que desde então têm sido realizados investimentos na infraestrutura das escolas existentes, na construção de novas unidades, na capacitação dos funcionários e de servidores e na alimentação escolar de forma geral - principais demandas dos estudantes na época.

A Secretaria aponta investimento em escolas de tempo integral como uma das ações para que os alunos da rede estadual finalizem a educação básica com sucesso. Em 2020, 38% da rede passou a funcionar desta forma. Ou seja, das 728 escolas da rede estadual, 277 atendem em tempo integral. Dessas, 155 são de Ensino Médio Regular em Tempo Integral (EEMTI) e 122 são Escolas Estaduais de Educação Profissional (EEEPs).

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A gestão estadual desenvolve, ainda, o projeto "Enem Chego Junto, Chego Bem", que presta suporte aos estudantes durante o processo de Enem, desde o período de inscrições com a obtenção de documentos e preparação dos alunos até o ingresso no ensino superior. Segundo dados da Seduc, entre 2015 e 2018, o número de alunos aprovados subiu de 10.035 para 20.207. Ou seja, mais de 50%.

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"No ano de 2016, ocorreu um movimento de reivindicação por parte dos estudantes. Os compromissos gerados a partir desse movimento estão em constante atualização. A Secretaria trabalha com o propósito de fortalecer o diálogo com seus alunos e toda a comunidade escolar, além da melhoria do ensino e da aprendizagem", afirmou em nota.

Pandemia

Desses novos desafios "em constante atualização" citados pela pasta, um deles tem a ver com a pandemia do novo coronavírus. Marina Araújo, coordenadora do Cedeca, aponta ao O POVO as problemáticas com a inclusão digital. "A luta por educação de qualidade, que foi a luta dos estudantes em 2016, continua a ser um grande desafio. Não só para o estado do Ceará, mas para o Brasil. Atualmente tem sido implementadas medidas de ensino não presenciais. Isso tem impactado no direito à educação e no principio das condições de igualdade de acesso e permanência de ensino", pontua.

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O acesso a computador ou tablet, além da internet em casa, são pontos básicos para se realizar as aulas remotas de forma inclusiva. "Seriam condições básicas para se manter ensino na modalidade à distância com dignidade", aponta.

De acordo com a Seduc, logo após o Decreto do Governo do Ceará para a suspensão de atividades presenciais, foram elaboradas diretrizes para orientar as escolas sobre como proceder no período de pandemia, a fim de garantir a continuidade do ano letivo e minimizar prejuízos no processo educacional. Cada unidade de ensino construiu um Plano de Atividades Domiciliares, que são computadas como parte das 800 horas letivas obrigatórias.

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Para isso foram pensadas estratégias para atender aos que têm acesso às tecnologias e aos que precisam de outros suportes, sendo o livro didático a principal ferramenta para as aulas remotas. Para os alunos que não têm acesso à internet, professores elaboraram atividades impressas ou aulas por meio de rádio. Houve ainda uma parceria com a TV Ceará (TVC) para a transmissão de aulas de diferentes matérias, de segunda a sexta-feira, às 14h.

A Seduc também aponta as plataformas Aluno Online, Professor Online, Google Sala de Aula (Google Classroom) e parceira, por meio de chamada pública, com 12 plataformas de ensino, que oferecem gratuitamente apoio na organização das atividades de educadores e estudantes.

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"Nesse período de pandemia, as iniciativas têm sido atualizadas, cotidianamente, a partir das realidades de cada unidade escolar, através de adaptações das suas metodologias, oportunizando, por exemplo, momentos de diálogo com os estudantes, professores e gestores", conclui em nota.

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