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"Bolsonaro é um representante ideológico das milícias"
Reportagem Especial

"Bolsonaro é um representante ideológico das milícias"

BRUNO PAES MANSO | Cientista político com formação em jornalismo e economia, o pesquisador lançou livro no qual analisa as origens das milícias e como elas se refletem no cenário atual

"Bolsonaro é um representante ideológico das milícias"

BRUNO PAES MANSO | Cientista político com formação em jornalismo e economia, o pesquisador lançou livro no qual analisa as origens das milícias e como elas se refletem no cenário atual
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Autor do recém-lançado A república das milícias (Todavia), Bruno Paes Manso recupera o fio historiográfico que ajuda a entender como os "esquadrões da morte" dos anos de 1960 e 1970 resultaram nas milícias atuais, que dominam amplas faixas de território no Rio de Janeiro, exercendo uma tirania que agora ameaça se replicar por outras regiões.

Para o estudioso, esse é o risco que o Brasil corre hoje: converter-se num estado miliciano. Doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP), com formação também em jornalismo e economia, Manso mapeia as razões pelas quais esses grupamentos criminosos conquistaram tanto poder, determinando quem pode ou não circular pelos territórios sob seu domínio. Segundo ele, o fortalecimento das milícias se relaciona diretamente com o descontrole das polícias militares por todo o Brasil.

O pesquisador considera que, hoje, o maior desafio do Estado brasileiro é libertar as periferias das grandes cidades do que chama de "tiranias territoriais". Responsável também por um estudo aprofundado sobre a origem do Primeiro Comando da Capital (PCC), Manso se detém sobre o cruzamento entre a origem da família do presidente Jair Bolsonaro e as milícias no Rio de Janeiro. Segundo ele, Bolsonaro "é um representante ideológico" do milicianismo.

O POVO - Seu livro é um mergulho na formação e organização das milícias no Rio de Janeiro e suas conexões com a política. Que retrato emerge dele?

Bruno Paes Manso - Eu sou um "estrangeiro", tenho esse olhar estrangeiro caindo numa cena muito diferente, mas acho que o retrato do Rio é um retrato da gravidade da perda de controle das instituições policiais. É como a democracia fica sujeita a uma série de riscos quando se perde o controle dessas instituições sob a justificativa de que essa violência aplicada pelos policiais de alguma forma traz algum tipo de benefício na guerra contra o crime. Essa é a grande falácia que foi vendida e acabou dando muito poder aos policiais, que conseguiram ganhar dinheiro e fazer muitos negócios trabalhando com esse medo da população, desconstruindo e fragilizando as instituições democráticas do Rio. Então acho que é um retrato muito assustador, que o Rio vive de forma mais intensa e dramática, mas que hoje serve de alerta para todo o Brasil e todos os estados brasileiros, diante dos riscos que vivemos.

O ponto em comum da cena carioca com outros estados são polícias descontroladas, crentes no papel da violência para ganhar uma certa legitimidade e impor uma suposta autoridade diante do crime, que acaba sendo tolerada pelos governadores, e, diante desse passe para fazer esse tipo de arbitrariedade, ganhando dinheiro com negócios criminais e se tornando uma quadrilha

O POVO - O termo milícia já era muito usado no país, mas ganhou uma frequência espantosa a partir de 2018. Há características específicas da milícia, traços típicos dessa organização?

Bruno Paes Manso - Milícias são grupos paramilitares que surgiram no Rio e ganharam características fortes da cena da cidade. O vocabulário foi criado lá e serve muito para explicar a realidade do Rio de Janeiro, com uma história de 50 anos de violência, de aproximação da polícia com a contravenção e o crime, que ajuda a entender o modelo. Nesse caso, até por causa dessa história do narcotráfico e do varejo do tráfico de drogas na cidade ser um tipo de venda e domínio muito ostensivos nas comunidades, ligados ao porte de armamentos pesados, o controle do território sempre foi fundamental nessa conquista.

É diferente de São Paulo, onde o domínio do território nunca foi tão importante para os negócios. Mas no Rio, sim. Essa ostensividade e autoridade territorial sempre tiveram um peso grande nas facções. E a milícia passou a disputar território a partir dos anos 2000 e a ser mais um grupo nessa guerra dos tronos, nessa disputa por espaço. Nesse sentido, a milícia se tornou um modelo de negócio criminal apoiado por policiais militares e paralimitares, com a participação de civis, que exerce uma espécie de autoridade delegada pelo Estado para que consigam exercer um monopólio local do uso da força, na mediação dos conflitos e de cobrança de taxas por extorsão, tanto dos moradores quanto dos comerciantes, mas também na organização de mercados locais que produzem diversos tipos de rendas criminosas para esses grupos.

Essa é uma configuração muito própria do Rio de Janeiro. Só que esse termo começou a ser usado de forma muito constante em diversos estados do Brasil. No Ceará e no Nordeste, onde converso com muita gente na região, mas também no Norte, esse termo ficou popular, muitas vezes as pessoas usam milícia de forma genérica e isso gera uma dúvida sobre até que ponto as milícias estão sendo replicadas. Acho que, acima de tudo, o ponto em comum da cena carioca com outros estados são polícias descontroladas, crentes no papel da violência para ganhar uma certa legitimidade e impor uma suposta autoridade diante do crime, que acaba sendo tolerada pelos governadores, e, diante desse passe para fazer esse tipo de arbitrariedade, ganhando dinheiro com negócios criminais e se tornando uma quadrilha.

O que vemos é que podem existir diferentes tipos e modalidades de milícias. Podem ser mais próximas aos grupos de extermínio, matando para comerciantes. Podem ser mais próximas dos vigilantes, que defendem o bairro por meio de assassinatos - no Norte tem muito isso. Podem ser matando em defesa de seus próprios negócios específicos, de acordo com as regras das comunidades locais, como no caso do Pará, que tem grupos militares vendendo drogas, no ramo do roubo de carro e outros tipos. O que talvez seja o grande risco que os estados brasileiros vivem é essa perda de controle das polícias, que passam a agir sob uma alegada defesa do interesse coletivo contra o crime, mas que começam a ganhar dinheiro diante desse passe para usar a violência para os seus próprios interesses criminais e seu próprio lucro.

O POVO - O livro traça uma genealogia das milícias, dos esquadrões da morte até agora. Sempre houve essa componente política na atividade miliciana ou isso é uma marca posterior, um aperfeiçoamento das atividades desses grupos?

Bruno Paes Manso - No Rio de Janeiro, esse componente político é muito evidente desde sempre, ao menos desde quando era capital federal e concentrava todos os conflitos políticos e as grandes discussões nacionais no Brasil antes dos anos de 1960, quando surge o primeiro esquadrão da morte. Ainda sob o governo de Juscelino Kubistchek, com os primeiros policiais matadores que se vendem como "exterminadores de bandidos", uma época de governo civil, pré-ditadura, houve uma tentativa de prestar contas com os comerciantes que reclamavam dos riscos que existiam. Depois temos o período da ditadura. Desde essa época, os militares já tinham uma aproximação muito intensa com os bicheiros, os contraventores etc. Num tempo em que a PM não tinha o papel que passaria a ter depois, eles dependiam muitas vezes de troca de informação com os "apontadores" de jogo do bicho porque eles estavam nos territórios. Essa aproximação sempre existiu.

Quando a ditadura se fortalece no pós-1964, o crime também começa a assolar as cidades e a causar muito medo entre os moradores. O extermínio, no vácuo do combate às guerrilhas e dos métodos desenvolvidos no DOI-Codi, também passa a ganhar força e a ser tolerado como uma tentativa de solucionar esse problema, como se os extermínios dos bandidos deixassem todo mundo mais seguro, com uma certa tolerância das autoridades locais. Isso muda muito a partir dos anos de 1980, porque temos uma grande transformação no mercado criminal com a chegada do tráfico de drogas e da cocaína. Nos anos 1970, os cartéis de Medellín e Cali transformam a cena da droga, e as grandes cidades passam a ser um mercado importante, além de ponto de passagem de mercadorias. O crime passa a se financiar de uma outra forma e a movimentar muito mais dinheiro para compra de armas e para resistir às incursões policiais.

Nesse ambiente, essa visão de que a violência poderia ser usada para combater o crime era tolerada e aceita diante da dificuldade de lidar tanto com medo da população quanto com a solução desse tipo de problema, que era muito complexo. Por isso sempre houve uma ligação política grande, porque os políticos faziam vistas grossas, não apenas no Rio e São Paulo, mas noutros estados também, o que tornou o Brasil um país com uma das polícias mais violentas mesmo durante o período democrático.

Sempre houve uma ligação política grande (com as milícias), porque os políticos faziam vistas grossas, não apenas no Rio e São Paulo, mas noutros estados também, o que tornou o Brasil um país com uma das polícias mais violentas mesmo durante o período democrático

O POVO - E como foi o salto desse cenário para o surgimento das milícias?

Bruno Paes Manso - Isso começa a mudar a partir de 2002, quando as milícias se organizam na zona oeste do Rio, com a complacência dos prefeitos e governadores da época, que aceitavam o discurso desses policiais que diziam estar se organizando nos territórios onde suas famílias moravam como uma resistência ao risco de serem invadidos por facções e o tráfico de drogas. Na época, César Maia e outros políticos chegaram a mencionar a autodefesa comunitária, que seria o termo próprio de milícias. Então, nesse percurso, houve tolerância com a violência policial, e a partir do momento em que você tolera isso ou perde o controle sobre os excessos da polícia, essa violência vai ser usada em benefício dos próprios interesses da corporação. Isso acaba sendo um caminho quase fatal, os policiais que matam passam a usar desse privilégio que as autoridades lhes concedem para lucrar e ganhar dinheiro com a própria possibilidade de matar. Essa visão muda um pouco a partir de 2007 e 2008, com a CPI das milícias, mas a situação já estava tão degringolada, e o avanço desse modelo de negócio já tão acelerado, que não houve riscos de retrocesso ou de mudança.

Apesar de muitos milicianos presos, as possibilidades de gerar receita para esses grupos, como o controle de transporte alternativo, venda de gás e "gatonete", permaneciam, o dinheiro continuava rodando. Por mais que algumas pessoas fossem tiradas de circulação uma ou outra hora, sempre tinha um novo para substituir com a conivência dos batalhões, das delegacias e das próprias autoridades de segurança, que nunca tentaram assumir a gravidade do problema e repensar o modelo policial. Sempre foi empurrado com a barriga, com alguma maquiagem ao longo do tempo, como se fosse possível enganar a população e manter os negócios milicianos a todo vapor, como se não houvesse mais capacidade das instituições de comprar briga com as corporações que vinham lucrando há décadas com o crime. É um cinismo e uma certa hipocrisia a tentativa de ludibriar as pessoas, fazê-las acreditar que as coisas continuam bem, só que a coisa acabou fugindo ao controle. E o que a gente viu é que agora os próprios governos do Rio estão sujeitos à autoridade desse crime, não conseguem mais dar um basta ou propor uma reforma profunda nas polícias porque os governadores não têm condições políticas para isso.

O POVO - Vê algum risco de exportação desse modelo de milícias para outros estados do Brasil, principalmente no que diz respeito a controle de territórios?

Bruno Paes Manso - Acho que é um risco real. No Ceará, mas não apenas aí, isso já vem acontecendo, a dificuldade de alguém do grupo rival passar a outro território, um domínio mais ostensivo também acontece em estados do Norte. Esse risco aumenta quanto maior a fragilização das instituições democráticas e quanto maior o descontrole das forças policiais, porque os próprios policiais passam a exercer também um protagonismo nessa disputa e a disputar como uma outra quadrilha esse mercado do crime.

Se a gente não tem uma estratégia de governo e uma estratégia de Estado para minar essas tiranias territoriais, a gente corre o risco de ficar sujeito a ver as próprias instituições se fragilizarem e perderem legitimidade, como aconteceu no Rio e como precisamos reverter. Nesse sentido, me parece fundamental identificar os tiranos dos territórios, que ameaçam pela violência e pelo assassinato a população em geral, porque estabelecem uma lei do silêncio e uma série de sujeições. São figuras muito danosas para a democracia. O maior desafio hoje das instituições é libertar as populações de periferia dessas tiranias territoriais. Isso é um ponto muito estratégico das políticas de segurança pública, que ficam muitas vezes pegando o pequeno traficante para fazer número e enchendo as prisões, mas as pessoas mais tóxicas para esses territórios são aqueles criminosos que podem ser fardados ou que ganham dinheiro com narcotráfico e que impõem a sua autoridade territorial para toda a população do bairro.

A polícia vem cada vez mais assumindo esse papel. Os paramilitares, em contraponto à tirania do crime, exercem a própria tirania porque é mais confiável e uma possibilidade de levar ordem trabalhando com esse medo que as pessoas têm do crime. É um risco muito grande de fragilização das instituições democráticas a partir dos territórios.

Se a gente não tem uma estratégia de governo e uma estratégia de Estado para minar essas tiranias territoriais, a gente corre o risco de ficar sujeito a ver as próprias instituições se fragilizarem e perderem legitimidade, como aconteceu no Rio e como precisamos reverter. Nesse sentido, me parece fundamental identificar os tiranos dos territórios, que ameaçam pela violência e pelo assassinato a população em geral, porque estabelecem uma lei do silêncio e uma série de sujeições

O POVO - Como a trajetória da família Bolsonaro se cruza com o desenvolvimento desses grupos milicianos no Rio de Janeiro?

Bruno Paes Manso - O Bolsonaro é um notório defensor da violência como uma forma de autoridade, sempre fez parte do discurso dele essa ideia de que a violência faz com que as pessoas obedeçam e uma autoridade se impõe pelo uso da violência. Ele sempre defendeu o assassinato por parte da polícia, falava que quem defendia direitos humanos defendia bandido etc. Sempre viu a violência como um instrumento de ódio, mas com um discurso meio folclórico para o qual durante muito tempo a gente não deu tanta bola. Era um deputado nanico no Congresso, mais um a fazer um discurso populista de extermínio de bandidos. Mas foi conseguindo ganhar um peso com o sobrenome da família e elegeu os filhos. Primeiro, o Carlos, eleito vereador ainda com 17 anos, e o Flávio, eleito em 2002 deputado estadual, com 22 anos.

Bolsonaro começa a colocar em prática o plano de um pai protetor de garantir a carreira e o sustento financeiro dos filhos elegendo os filhos para cargos legislativos com o sobrenome. Só que, quando Flávio assume, em 2002, vindo de um condomínio na Tijuca, onde foram criados superprotegidos, como garotos de classe média, Bolsonaro aproxima Fabrício Queiroz para estar ao lado do filho. Queiroz era uma pessoa que tinha uma lealdade ao Bolsonaro e um respeito muito grande, uma pessoa por quem botava a mão no fogo, tinha uma confiança muito grande.

(Bolsonaro) é um representante ideológico desse tipo de postura e de ação, não apenas homenagens a policiais matadores foram feitas ao longo de toda a carreira... O próprio Jair Bolsonaro falava que queria que o grupo de extermínio da Bahia fosse exportado para o Rio. Essa clareza e sinceridade na defesa da violência paramilitar bandida, se a gente olhar para trás, o Bolsonaro nunca negou

O POVO - Queiroz foi uma espécie de tutor do Flávio?

Bruno Paes Manso - Não tutor, ele é o cara que faz a mediação, lá no começo do mandato do Flávio, com a base eleitoral do Jair e da família, que são os militares, os policiais, os policiais civis, o Exército. O Queiroz é que conhecia toda essa rede, que era a base de apoio popular do Flávio, que era um garoto, a única ligação dele com a polícia era o pai. Faz esse meio de campo. A partir de 2006, sim, o Queiroz é contratado para o gabinete do Flávio e passa ser o grande nome das articulações políticas, trazendo e contratando uma série de funcionários que, anos depois, vão desencadear o problema da "rachadinha".

Queiroz tem um papel grande na articulação, que vem sendo mostrada até agora pelas investigações, no esquema de sustento da família a partir da verba de gabinete parlamentar dos filhos e do pai, ao que parece. Enquanto fazia esse papel, ao mesmo tempo tinha todas essas ligações com a polícia. Sempre foi um "linha de frente" do 18º batalhão, que era o batalhão que permitiu que as milícias crescessem, a partir dos anos 2000. O Queiroz trabalhava lá e tinha uma série de suspeitas e acusações vinculadas a extorsões que ele praticava contra criminosos, homicídios que praticou ao longo da carreira, um deles com Adriano Magalhães da Nóbrega, também policial do 18º, vindo do Bope.

Eles criam esse laço de parceiros de guerra, essa coisa bem masculina, de soldados aliados. Depois se separam, cada um vai para um batalhão. Adriano vai para o 16º e é acusado de um homicídio, de extorsão de uma série de moradores de uma comunidade e de assassinato de uma testemunha, que o leva a ser preso em flagrante. Ele é condenado no júri, mas o júri acaba sendo anulado e depois ele é solto. Nesse momento, a família Bolsonaro passa a defendê-lo ostensivamente, o próprio Bolsonaro chega a defender Adriano da Nóbrega em plenário, enquanto a ex-mulher dele é contratada no gabinete do Flávio. Só que o Adriano se torna um dos maiores criminosos da história do Rio de Janeiro.

A partir de 2005 (ele tem um vínculo histórico e familiar com o bicho), passa a ser contrato para ser um mediador de alguns matadores numa briga de bicheiros, de filhos em disputa pelo espólio do pai. O Adriano é contratado por um dos lados para ser um matador e segurança. Assim, vai ganhando expertise e contratando outras pessoas para participar desses assassinatos e atuar para outros grupos também. O Ronnie Lessa, acusado de ser o assassino da Marielle Franco (morta em março de 2018), vai trabalhar como um desses seguranças.

Além de ser matador especializado na contravenção, Adriano passa a expandir seu ramo de negócio e entra na milícia do Rio das Pedras, com a venda e comércio de imóveis. Um dos sócios do Adriano no Escritório do Crime se associa depois a um dos principais traficantes do Rio, no Morro do Dendê, abrindo uma outra vertente de negócios, que é a narcomilícia, uma aliança do tráfico com os milicianos. Ele era então uma pessoa muito temida na polícia do Rio, as pessoas sabiam que Adriano tinha esse papel.

Apesar de toda essa ligação com os piores tipos do crime do Rio de Janeiro, a mãe dele é contratada para o gabinete de Flávio em 2016. Durante esse período em que ele fica foragido e mesmo depois de Bolsonaro ter sido eleito presidente, eles compartilham a defesa, esse vínculo permanece por muito tempo. É possível apontar algum tipo de ligação da família Bolsonaro com as milícias? Eu diria o seguinte: ele, diretamente, não foi identificado em nenhum momento com isso, nem a polícia identificou nem eu cheguei a ouvir alguém dizer isso. Me parece que eles não ganham dinheiro das atividades milicianas nos territórios. O Flávio não vai ganhar dinheiro com venda de gás nem é sócio de nenhum negócio desse tipo. Eles são representantes ideológicos desse grupo. Todo o núcleo duro do gabinete político da família é vinculado a esses negócios, ganham dinheiro com eles e são protagonistas desses negócios.

Made with Flourish

O POVO - O senhor falou em "representação ideológica" das milícias, algo que está presente no mandato de Bolsonaro, mas também no dos filhos, com as homenagens que ofereceram.

Bruno Paes Manso - Não apenas isso. Há toda uma relação direta do núcleo duro do gabinete com eles, mas também o histórico de defesa das milícias e da violência policial, que é o que permite o fortalecimento das milícias. Por isso digo que é um representante ideológico desse tipo de postura e de ação, não apenas homenagens a policiais matadores foram feitas ao longo de toda a carreira. Muitas vezes, depois de eles serem acusados de crimes, o Flávio ia lá e homenageava, crimes escandalosos, ou seja, como se falasse que pode matar porque é policial, um discurso que dá força para a milícia. Mas também tentando apresentar projeto de lei para regulamentar as milícias.

O próprio Jair Bolsonaro falava que queria que o grupo de extermínio da Bahia fosse exportado para o Rio. Essa clareza e sinceridade na defesa da violência paramilitar bandida, se a gente olhar para trás, o Bolsonaro nunca negou. Sempre falou isso abertamente e sempre foi muito honesto nessas apologias criminais que fazia. Mesmo assim, continuou seguindo carreira política e sempre se colocou como o representante ideológico. Quando assume a presidência, tenta flexibilizar os controles para homicídios de policiais e continua tentando emplacar projetos de lei para flexibilizar o controle das polícias, que é o que favorece as milícias. Não apenas flexibilizando o controle da violência policial, como também flexibilizando o controle da fiscalização de armas de fogo de calibre pesado, de fuzis, que é o que torna um desafio imenso para a segurança do Rio. E por isso o Congresso teve que impor alguns limites a essa sanha, mas ele continua fazendo a defesa do que permite com que esses grupos se fortaleçam.

O POVO - Apesar dessas ligações, Bolsonaro vence as eleições de 2018 e esse projeto que encampa a violência chega ao poder. Acha que ele se elege presidente apesar disso ou exatamente por isso?

Bruno Paes Manso - Acho que o tema das milícias foi muito pouco debatido na eleição presidencial. Passou ao largo do debate. A partir da Lava Jato e da série de denúncias que passam a correr durante quatro anos diariamente nos jornais, o país chega às eleições de 2014 com a percepção de que os políticos não prestam e que a democracia e os políticos da Nova República só serviram para roubar e por isso o Brasil estava numa crise.

Em 2018, chegamos com esse baixo astral e a sensação de que seguíamos no caminho errado. Quando há um discurso antipolítica, que foi o que acabou acontecendo diante desse excesso de histórias que vieram à tona em decorrência de todas as relações promíscuas que os partidos políticos tinham com os financiadores de campanha; quando esse discurso desacredita da política e, desacreditando, acaba com qualquer tipo de autoridade legítima para exercer o poder, o eleitor passa a acreditar na polícia e na violência como forma de restabelecer essa autoridade.

Bolsonaro acabou, por acidentes históricos, sendo representante dessa autoridade violenta que seria capaz de resgatar a ordem perdida com a fragilização das instituições da Nova República. Aquela figura folclórica, que falava coisas que nem os militares tinham coragem de falar durante a ditadura; aquela figura que defende abertamente a tortura e justifica a tortura, coisa que nem os próprios militares, quando faziam e torturavam, tinham coragem de assumir: Bolsonaro defende isso abertamente. Essa figura trágica, apologista de crimes, acaba sendo vista como representante da possibilidade desse resgate de autoridade por meio da violência.

Bolsonaro é um deles, o próprio Exército pega carona, mas também os promotores, os punitivistas, aqueles que defendem prisão, cadeia e punição, todos eles passam a ser vistos como uma boia de salvação para grande parte das pessoas, a despeito da incompetência, dos limites e de tudo que a história deles representava. Todo mundo preferiu fingir que não estava prestando atenção a esse passado.

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